O mundo está em alerta para conter a pandemia da Covid-19 e diversas medidas têm sido adotadas por diferentes países para tentar minimizar os danos provocados pela doença. Uma das questões postas é: pode este episódio nos ensinar exclusivamente sobre saúde? Na avaliação do professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Paulo Roberto Figueira Leal, a resposta é não. Segundo ele,  o coronavírus é possibilidade de múltiplos aprendizados sobre questões que envolvem as sociedades contemporâneas. 

Leal, que é mestre e doutor em Ciência Política, conversou com o Portal da UFJF sobre o assunto. Na entrevista, o professor e pesquisador fala sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS);  a imprescindibilidade de o Estado atuar na ponta dos serviços públicos gratuitos, como saúde e educação; e os riscos provocados pela Emenda Constitucional do Teto de Gastos.  

Confira a entrevista na íntegra:

“Não haveria nenhuma possibilidade de resposta à crise sem a existência de um aparato de saúde pública” – professor Paulo Roberto Leal (Foto: UFJF)

Portal da UFJF – Situações como a que vivemos na atualidade  exigem do poder público inúmeras medidas para proteção das populações. O que pandemias, como a do coronavírus, podem nos trazer de reflexão acerca dos modelos de Estado e seus impactos?

“O que seria dos brasileiros mais pobres, numa crise de pandemia como a do coronavírus, se, por exemplo, não existisse o Sistema Único de Saúde (SUS)?” – Paulo Roberto Leal

Paulo Roberto Figueira Leal – Num momento do debate político nacional em que o setor público parece ser demonizado por parcelas da opinião pública, tragédias como essa evidenciam a necessidade de existência e de atuação do Estado. O que seria dos brasileiros mais pobres, numa crise de pandemia como a do coronavírus, se, por exemplo, não existisse o Sistema Único de Saúde (SUS)? Como imaginar a possibilidade de atendimento a milhões de pessoas sem cobertura privada de saúde se não tivéssemos tomado, na Constituição de 1988, a decisão de construir esse Sistema Único de Saúde inspirado no NHS britânico? Não haveria nenhuma possibilidade de resposta à crise sem a existência de um aparato de saúde pública e universal minimamente estruturado. Mas, para que o Estado possa cumprir a determinação que lhe incumbe a Constituição, precisamos também de governantes capazes de defender os valores da Carta Magna. A dimensão da atual crise do Brasil talvez se deva fortemente ao fato de que alguns dos atuais ocupantes das posições políticas mais relevantes do país – vide a Presidência da República – não estejam à altura do desafio.


Portal da UFJF –  Em termos políticos, como você avalia as medidas propostas pelo governo federal até o momento? E as medidas propostas em âmbitos estadual (Minas Gerais) e municipal (Juiz de Fora)?

“Num país com o grau de desigualdade social do Brasil, é insensato tolher a capacidade do Estado em atuar na ponta dos serviços públicos gratuitos” – Paulo Roberto Leal 

Paulo Roberto Figueira Leal – Estados e municípios estão tentando adotar ações que, em grande medida, deveriam estar sendo coordenadas pelo governo federal. Quando o próprio presidente da república fala da pandemia como “histeria” e age contrariamente às recomendações médicas (vide sua participação nas manifestações de rua da extrema-direita no último domingo), fica evidente que o principal ente público do país – a União – está ajudando menos do que deveria ou, em alguns casos, está mesmo atrapalhando.

 

Portal da UFJF –  Em dezembro de 2016, o Legislativo Federal aprovou a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que alterou a Constituição Brasileira de 1988 para instituir o Novo Regime Fiscal. Trata-se de uma limitação ao crescimento das despesas do governo brasileiro durante 20 anos, alcançando os três poderes, além do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União. A referida EC também limita investimentos em saúde pública, ou seja, investimentos no Sistema Único de Saúde, o SUS. Na sua avaliação, sentiremos mais intensamente os impactos dessa decisão neste momento?

“Que outros países do mundo adotam um critério tão rigososo para o crescimento do gasto público, amarrando-o por 20 anos? Nenhum.” – Paulo Roberto Leal 

Paulo Roberto Figueira Leal – A crise evidencia o que vários analistas já tinham afirmado durante todo o debate para aprovação do teto de gastos, em 2016: aquela medida era insustentável e, brevemente, asfixiaria a capacidade de ação do Estado brasileiro. Num país com o grau de desigualdade social do Brasil, é insensato tolher a capacidade do Estado em atuar na ponta dos serviços públicos gratuitos (saúde e educação, por exemplo). Demonizou-se o gasto estatal e a ação do setor público de tal modo que, em casos como o atual, ele está menos preparado para atuar do que deveria. Que outros países do mundo adotam um critério tão rigososo para o crescimento do gasto público, amarrando-o por 20 anos? Nenhum – e isso deveria ser suficiente para demonstrar o equívoco da decisão.

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