O mundo vive um momento de alerta em virtude da pandemia da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus. Este tem sido também um período de disputas de narrativas entre duas abordagens: a economicista e a social. 

Na avaliação da professora titular do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Cláudia Viscardi, a polarização cria um falso dilema entre “saúde econômica” e “preservação da vida”, porque a História nos mostra a possibilidade de solucionar ambas as questões concomitantemente. 

A pesquisadora, doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutora pelas universidades Manchester Metropolitan, de Lisboa e Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), alerta que é hora de médicos, cientistas, economistas, gestores públicos e demais quadros capacitados, se reunirem e pensarem em um projeto de curto, médio e longo prazos”, para conter a crise.

Ainda conforme aponta Viscardi, é imprescindível termos um plano “para recuperação de nossa economia, do emprego e da renda dos cidadãos. Precisaremos de um novo Plano Marshall [principal ação dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial].”   

“Na economia, injetar com critério, recursos públicos para garantir a sobrevivência dos trabalhadores e dos agentes econômicos”, defende Cláudia Viscardi (Foto: Twin Alvarenga/UFJF)

Confira a entrevista na íntegra:

Portal da UFJF – O mundo vive um momento de alerta em virtude da pandemia da Covid-19, provocada pelo novo coronavírus. Este é também um momento de disputas de narrativas, especialmente entre duas abordagens: a economicista e a social. Comente, por favor.

Cláudia Viscardi – Infelizmente, em uma sociedade polarizada como a nossa, até uma pandemia pode ser politizada, dividindo a sociedade entre aqueles que defendem a “saúde econômica” e outros que defendem a “preservação da vida”. Nota-se que este é um falso dilema, pois todos querem a preservação da vida e o equilíbrio econômico e é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Neste momento, o isolamento é fundamental para garantirmos um crescimento mais suave da doença, que fatalmente ocorrerá. Mas vivemos em um país em que um grande percentual da população não dispõe de infraestrutura para isolar-se, não tem água encanada, não tem internet e não tem como comer. Considero este tipo de campanha pelo “ficar em casa” muito focado nas classes médias e altas. Quais as alternativas ofereceremos às comunidades? O que fazer com o aumento da violência contra a mulher que poderá ocorrer? Como manter as famílias fora das ruas, quando a rua é o seu ganha pão? O que fazer com os moradores de rua?

“É preciso que o Estado intervenha de forma a conferir recursos mínimos para a sociedade sobreviver ao isolamento” – Cláudia Viscardi

Manter o isolamento sem um olhar voltado para a economia do país só garante o bem-estar de quem tem como ficar isolado. Então é preciso sim pensar na situação econômica. Garantir a sobrevivência dos autônomos, dos desempregados, dos proprietários das pequenas, grandes e médias empresas, do largo setor que se encontra na informalidade. Temos também que pensar o que faremos para preservar nossa economia. É hora de médicos, cientistas, economistas, gestores públicos e demais quadros capacitados, se reunirem e pensarem em um projeto de curto, médio e longo prazo. Vamos manter o isolamento? Sim, é mais que necessário. Mas para isso é preciso que o Estado intervenha de forma a conferir recursos mínimos para a sociedade sobreviver ao isolamento, nem que para isso tenha que recorrer à emissão sem lastro, à venda de títulos públicos, ao comprometimento do ajuste fiscal, ao gasto de suas reservas. Mas ao mesmo tempo, temos que ter um plano de médio prazo para recuperação de nossa economia, do emprego e da renda dos cidadãos. Precisaremos de um novo Plano Marshall [principal plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial].

Portal da UFJF – O que a História Econômica nos ensina acerca de períodos de excepcionalidade como este?

Cláudia Viscardi –Não sou especialista em História Econômica. Mas observo como leitora atenta o que foi feito e o que vem sendo feito por outras nações. Tanto após a I e II Guerras, quanto após as crises de 1929 e a de 2008, houve um considerável aumento dos gastos públicos para proteger não só os mais frágeis socialmente, como para a recuperação de bancos e empresas. Destaque-se que o estado de bem-estar social que tanto admiramos – pelo menos alguns de nós – ocorreu exatamente como resultado da devastação gerada pela II Guerra Mundial. Agendas neoliberais ortodoxas nunca funcionaram para o bem coletivo em nenhum lugar do mundo. Veja o quadro brasileiro.

“Após a I e II Guerras e as crises de 1929 e a de 2008, houve um aumento dos gastos públicos para proteger os mais frágeis socialmente e a recuperação de bancos e empresas” – Cláudia Viscardi

Já estávamos em recessão antes do vírus. Nossas indústrias estavam com capacidade ociosa e os empresários, muito deles endividados, não investiam. O consumo das famílias estava muito depreciado. A solução passava, no meu entender, pelo investimento público e não pela manutenção desta receita recessiva. Agora então, mais que nunca. É consenso hoje, mesmo entre economistas liberais, que a intervenção estatal se faz urgente e necessária. Mas para que isto ocorra com equilíbrio e com êxito, é preciso que seja bem planejado, que escolhas acertadas  sejam feitas. A curto prazo, é liberar recursos para os desvalidos, para os sem renda, para os pequenos empreendedores e muito recurso para a compra de respiradores, testes, novos leitos de UTIs, etc. É preciso que se faça um planejamento para as diferentes etapas que passaremos. Nossa “sorte” é que outros países passaram por isso e temos informações que a China por exemplo, não tinha quando a epidemia surgiu. É importante dar voz e vez a quem tem capacidade de tomar as decisões mais apropriadas.

Portal da UFJF – As estratégias adotadas para conter a pandemia, proteger a população e a Economia variam dentre os países mais afetados pela crise. No entanto, há uma forte orientação de agentes públicos para o isolamento social, ou seja, para a contenção da curva de contágio e, consequentemente, para redução do número de vítimas. Como você avalia as ações adotadas pelo Governo Federal brasileiro até o momento?

Cláudia Viscardi –Vejo a resposta governamental em fases distintas. No campo da saúde, acho que em um primeiro momento o Brasil, liderado pelo Ministro Mandetta, se preparou bem ao criar e divulgar protocolos, ao conscientizar a população, ao planejar junto a estados e municípios as alternativas de enfrentamento. Devemos destacar que o Brasil é um país continental e que precisa de ações regionalizadas. A Constituição de 1988 descentralizou o atendimento à saúde, e hoje possuímos uma extensa malha de atendimento pelo SUS que cobre todas as principais regiões do país. Além disso, temos laboratórios de primeira linha e muita experiência acumulada no combate de epidemias. Nossa população não é ainda tão idosa e tivemos tempo para planejar nossas ações neste campo. Acho que fomos bem até aí. Tínhamos como passar bem por esta tempestade. Em um segundo momento, no entanto, quando o vírus começou a se espalhar pelo Sudeste e a Covid-19 era uma realidade, por razões políticas, que até então nada tinham a ver com a pandemia, o Presidente convocou uma manifestação e nela compareceu, mesmo após suspeita de ter contraído o vírus nos EUA. As disputas políticas entre os três poderes, que vinham se acirrando em torno do orçamento impositivo, foram “contaminadas” pelo coronavírus e entramos num terceiro momento que acho hoje o anúncio do caos. 

“Estamos na entrada de uma tempestade e o piloto não sabe o que fazer, usando a velha metáfora do avião” – Cláudia Viscardi

Estamos na entrada de uma tempestade e o piloto não sabe o que fazer, usando a velha metáfora do avião. As respostas erráticas do governo federal produziram muitas incertezas. Primeiro criou-se um falso dilema: as esquerdas falam em preservação da vida e as hostes bolsonaristas em salvar a economia, como se uma coisa fosse independente da outra. Quem criou esta polarização? A quem ela serve? A Bolsonaro, pois só assim ele sabe governar. Ele transformou a doença em mais uma oportunidade de manter o seu controle sobre um setor da população, para garantir não só sua permanência, como uma eventual ida para o segundo turno em 2022. Sua fala catastrófica na TV fez com que aumentasse o fluxo de pessoas nas ruas, além de ter ampliado os conflitos entre governadores e a presidência, o que não víamos há muito em nosso modelo de federalismo. Hoje temos um Ministro da Saúde calado e obediente, um Presidente que ouve o que Trump fala e repete no dia seguinte sem nenhum senso crítico, governadores que veem a crise como uma janela de oportunidades para 2022, um ministro da economia que anunciou pouco e não fez até agora nada, um vice à espera da vacância do cargo e o povo perdido, sem saber o que fazer. No momento em que estamos mais próximos à tempestade, estamos totalmente desamparados.

Portal da UFJF – No cenário internacional há, na sua avaliação, alguma estratégia que deva ser destacada?

Cláudia Viscardi –Inglaterra e Holanda tentaram apostar neste isolamento vertical que agora Bolsonaro defende que façamos. Consiste em isolar apenas o grupo de risco e deixar que todos se contaminem para criação de imunidade. A ideia parecia boa, mas a projeções feitas para ambos os países mostraram expectativas muito altas de mortalidade e incapacidade do sistema público de fazer face à demanda. Ambos os países abandonaram o plano. Então o que temos hoje é: isolar, aumentar testes, aumentar o número de equipamentos, leitos, profissionais de saúde e, na economia, injetar com critério, recursos públicos para garantir a sobrevivência dos trabalhadores e dos agentes econômicos. Todos os países, em maior ou menor grau, têm feito assim.

Portal da UFJF – Há alguma outra questão que você considere importante acrescentar?

Cláudia Viscardi – Gostaria de trazer uma mensagem mais otimista, mas no momento, não a tenho. Acho que teremos alguns ganhos após passada esta fase. Só espero que ela não seja tão ruim como imagino. Para os que podem, permaneçam em casa e sejam solidários. É o que podemos fazer no momento.

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