O estado de alerta mundial em virtude da pandemia da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, tem levantado reflexões acerca de vários aspectos da vida em sociedade. Um deles diz respeito ao conceito de saúde psíquica e emocional ou saúde mental, em destaque, especialmente, a partir das orientações epidemiológicas sobre a necessidade de isolamento social.   

Para o professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Fernando Santana, é impossível pensarmos em promoção da saúde, seja física ou mental, sem considerarmos os contextos social, econômico e político no qual vivemos.

Em entrevista ao Portal da UFJF, o docente, doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destacou a importância do investimento público em saúde, educação, ciência e tecnologia; a necessidade de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS); e os riscos da adesão à lógica neoliberal.

Confira a entrevista na íntegra:

“Somos seres produzidos no decorrer de relações sociais, vivendo em um momento histórico”, afirma Fernando Santana. (Foto: UFJF)

Portal da UFJF – Fala-se muito sobre bem-estar psíquico e emocional. Para alguns, a promoção desse bem-estar está desconectada dos contextos social e político. Neste período de excepcionalidade por conta da pandemia da Covid-19,  aponte-nos, por favor, algumas reflexões possíveis sobre o assunto. 

“É imperioso salientar que a maneira como cada sujeito e grupo social enfrenta as situações limite que se erigem estará sujeita a uma série de determinantes sócio-culturais, políticos e econômicos” – Fernando Santana

Fernando Santana – A produção de nossa subjetividade é diretamente relacionada com as condições de vida na qual estamos inseridos. É a partir do encontro com o outro que nos co-produzimos como sujeitos partícipes do mundo. Neste movimento, atuamos nos rumos da história buscando nos inscrever e escrever nossas histórias e a história de toda uma sociedade. Portanto, nossas emoções são diretamente maleáveis às situações do cotidiano que nos exige constantemente a capacidade de resolução de problemas. Entretanto, existem situações limite que podem nos colocar sentimentos de ansiedade, angústia, medo e até mesmo falta de esperança. Observamos certo movimento de resignação, mas também movimentos de revolta frente a determinadas situações da vida.  É imperioso salientar que a maneira como cada sujeito e grupo social enfrenta as situações limite que se erigem estará sujeita a uma série de determinantes sócio-culturais, políticos e econômicos. Assim, em situações limite, que são carregadas de intenso estresse, como o que estamos atravessando, em decorrência da pandemia do Covid-19, poderemos apresentar dificuldades em lidar com o quadro em tela, gerando abalos em nossa saúde psíquica. Lidar com algo que não conhecemos não é simples, bem como enfrentar uma mudança abrupta no modo como organizamos nossas vidas. Sentimentos como medo, angústia, tristeza e a incerteza frente ao futuro podem se colocar como gerentes da situação, o que não é o melhor, mas certamente algo que é, sobretudo, humano.  As estratégias de lidar com a situação imposta pela crise da Covid-19 podem ser diversas, como deslegitimar a gravidade da situação, acreditar que se é imune a tal periculosidade ou desenvolver sensações de pânico e ansiedade. O estresse também pode estar ligado pela incerteza a respeito do que estamos enfrentando. Afinal, é só uma gripe? Somente os idosos são mais afetados? As pessoas que amo estão protegidas?

“Não é possível pensarmos em promoção de saúde, seja ela física ou mental, sem considerarmos o contexto social, econômico e político em que vivemos” – Fernando Santana

Como contribuir para os mais vulneráveis nesta situação? São perguntas que nos jogam em certos dilemas éticos, pois nos implicam como sujeitos em uma questão que é muito maior do que apenas nossos próprios interesses. Nesse sentido, não é possível pensarmos em promoção de saúde, seja ela física ou mental, sem considerarmos o contexto social, econômico e político em que vivemos. Somos seres produzidos no decorrer de relações sociais, vivendo em um momento histórico, com capacidade de produzir nossa vida, mas em relação a uma realidade que nos interpela. Portanto, se esta realidade evoca os elementos acima sinalizados, certamente teremos que desenvolver individual e coletivamente maneiras de melhor enfrentarmos os desafios que se avolumam. Frente a este cenário, tornam-se mais concretas a finitude humana e a necessidade de exercitarmos valores como a solidariedade e a cooperação, que infelizmente são tão raras em meio a uma sociedade capitalista que promove o egoísmo, a competição e meritocracia desumanizadora. Considero que se tratam de elementos que impossibilitam a promoção de saúde física e mental, uma vez que saúde deve ser pensada como a produção de uma vida ética, uma vida onde todas e todos possam efetivamente ter a possibilidade de se potencializar e se concretizar como seres pertencentes ao gênero humano. Algo que ainda não alcançamos! percebemos como somos seres finitos e isto pode provocar sentimentos de mal-estar que precisam ser elaborados. 

“A saúde deve ser pensada como a produção de uma vida ética, uma vida onde todas e todos possam efetivamente ter a possibilidade de se potencializar e se concretizar como seres pertencentes ao gênero humano” – Fernando Santana

Entretanto, acredito que situações de excepcionalidade como a que estamos vivendo, podem contribuir para abrir espaços para sentimentos e práticas de solidariedade, compromisso social, bem como sentido de comunidade em detrimento a um egoísmo galopante que insiste em se fazer reinar sobre nós. Indubitavelmente que práticas egocentradas, em que sujeitos não têm sido capazes de exercer e viver a alteridade são observadas. Isto reflete a sociedade em que vivemos, com ou sem a Covid-19!  Ao mesmo tempo, como sujeitos em construção, a partir da história, pela e com a qual se dá nosso processo de subjetivação, acredito que abre-se espaço para que outras práticas mais gregárias, de cuidado consigo e com o outro possam também se manifestar. Isto só o tempo poderá nos mostrar!

Portal da UFJF – Quais ensinamentos este episódio pode nos deixar quando a questão é saúde psíquica e emocional?

 “Talvez este episódio nos aponte, por exemplo, como necessitamos do outro, do contato social, do convívio, das trocas” – Fernando Santana

Fernando Santana – Acredito que ainda é cedo para dizer pois vamos passar um período de turbulência e incertezas! Mas olhando para outras experiências ainda recentes talvez este episódio nos aponte, por exemplo, como necessitamos do outro, do contato social, do convívio, das trocas. Como estes elementos que são triviais e que nem damos conta, passam a ser altamente valorizados emocionalmente quando estamos na iminência de perdê-los ou diminuí-los, mesmo que temporariamente. Sentimentos de solidão – que podem ser produzidos pelo isolamento forçado – podem ser muito angustiantes, contribuindo, inclusive para elevar índices de depressão e ansiedade, como se viu na China. Algumas pesquisas já realizadas apontaram que houve aumento de 50,7% dos casos de depressão e 44,7% dos transtornos de ansiedade. Além disso, a insônia e o estresse tiverem picos consideráveis. Nesta direção, é muito importante não negligenciarmos este elemento de nossas vidas, especialmente nesta situação. Acredito que investir em redes de contatos, manter o diálogo com outras pessoas, participar de grupos on-line (quando possível) são estratégias importantes neste momento. Ademais, ter cuidado com o tipo de informação que se lê, evitando alarmismos e fake news que podem agudizar os quadros acima sinalizados. 

“Investir em redes de contatos, manter o diálogo com outras pessoas, participar de grupos on-line (quando possível) são estratégias importantes neste momento” – Fernando Santana

É importante ainda percebermos que tal situação reverbera diferentemente em cada sujeito e grupo social. Assim, se possível, podemos contribuir para que crianças sejam melhor informadas, a partir de uma linguagem acessível, sem nenhum tom apocalíptico. Há que se ter também uma preocupação com as/os idosos que são considerados os grupos mais vulneráveis, e, portanto, podem desenvolver mais sentimentos que não contribuem para a promoção de sua saúde mental. Outro aspecto importante é o estigma com aquelas pessoas que contraíram o vírus. Sentimentos de culpa e inadequação podem ser agravados se tivermos uma posição condenatória e preconceituosa. Várias outras doenças já nos ensinaram como o estigma social pode afetar diretamente a saúde mental das pessoas que o sofrem, como é o caso da Aids. Por conseguinte, é muito importante não cairmos na armadilha de culparmos alguém ou uma etnia pelo o que estamos vivendo. É importante que nos cuidemos, mas que também exerçamos a solidariedade e a alteridade junto aos demais como forma de manter nossa saúde.  Nessa direção, avalio que um episódio como este que estamos vivendo só faz acender o alerta máximo de que é preciso investirmos na saúde das pessoas, em especial, buscando construir caminhos onde todas e todos possam efetivamente se expressar e produzir suas subjetividades em sua potência mais elevada. É isto que entendo como promoção da saúde mental!

“É importante que nos cuidemos, mas que também exerçamos a solidariedade e a alteridade junto aos demais como forma de manter nossa saúde” – Fernando Santana  

Portal da UFJF – Há orientações epidemiológicas para o isolamento social. Apesar de nem todas as instituições e empresas estarem seguindo prontamente a recomendação e termos também no país milhões de trabalhadores na informalidade, ou seja, que, ao pararem de trabalhar, não terão como manter a própria subsistência, a tendência, segundo exemplos de outros países, é que tenhamos todos de nos manter em nossas residências, evitando, assim, a propagação do vírus. Há alguma recomendação às pessoas em quarentena no que diz respeito ao bem-estar psíquico e emocional?

Fernando Santana – É muito importante contextualizarmos como este quadro afeta os diferentes segmentos populacionais, a partir do recorte de classe social. Grupos que representam os extratos economicamente mais altos ou médios, tem tido a possibilidade e mesmo o estímulo de não sair de casa e realizar o isolamento, contribuindo para o distanciamento social. Entretanto, para um grande contingente populacional isto não é possível, uma vez que há ainda a necessidade de ir para o trabalho, utilizar o transporte público, contribuindo para aumentar a sensação de medo e insegurança entre esta população. Há um post circulando na internet que diz “La romantización de la cuarentena és privilegio de clase”! Indubitavelmente temos a clareza, a partir das experiências internacionais, vide China e Itália principalmente, da importância do distanciamento social, bem como o isolamento como medida mais drástica. Entretanto, é muito importante entendermos que tal condição significa e representa algo muito distinto a depender de onde e como se vive. O Brasil é um país de extremas desigualdades, e, portanto, indicar o isolamento, pode representar para alguns a necessidade de lidar com certo estranhamento e uma adaptação junto a seus familiares, e, por outro lado, pode obrigar grupos de pessoas a ficaram confinadas em espaços que se deseja muitas vezes evitar.

“É muito importante entendermos que tal condição [distanciamento social] significa e representa algo muito distinto a depender de onde e como se vive. O Brasil é um país de extremas desigualdades” – Fernando Santana

Assim, não acredito que exista uma prescrição única para tentar preservar sua saúde mental nesta situação. Acredito, como salientado acima, que havendo condições, é possível desenvolver estratégias como manter o diálogo online com outras pessoas, conversando sobre diferentes assuntos e não apenas a pandemia da Covid-19, realizar atividades físicas em casa também é importante, tentar criar outras formas de ocupar sua casa e seu tempo certamente serão importantes. 

Portal da UFJF – Há alguma questão que você queira acrescentar?   

“A lógica neoliberal privatista que se expressa no atual projeto de governo em voga não tem compromisso com a qualidade da política pública, que é vista como despesa a ser contingenciada” – Fernando Santana   

Fernando Santana – Gostaria de salientar como este episódio tem mostrado a importância do investimento público na saúde, educação, ciência e tecnologia de nosso país. Em uma conjuntura na qual o conhecimento científico, assim como o trabalho de educadores e profissionais da saúde tem sido completamente desrespeitados, nos deparamos com um cenário onde o caminho para sair desta situação não irá ocorrer sem ciência e o trabalho de profissionais compromissados com saúde do povo brasileiro. A necessidade de fortalecer o SUS nunca foi tão evidenciadas nos últimos anos, em que o sistema passou por um processo paulatino de desfinanciamento. A lógica neoliberal privatista que se expressa no atual projeto de governo em voga não tem compromisso com a qualidade da política pública, que é vista como despesa a ser contingenciada enquanto grande parte da população brasileira encontra-se totalmente desassistida.

“A saúde das pessoas, física e mental, não deve ser tratada como mercadoria a ser comercializada” – Fernando Santana

Assim, a promoção da saúde e a garantia de condições dignas e potentes de vida devem ser percebidas como um projeto de nação, que necessita, no atual modelo que vivemos, do Estado presentes na sociedade zelando e implementando ações de interesse coletivo. Indubitavelmente a saúde das pessoas, física e mental, não deve ser tratada como mercadoria a ser comercializada e vendida a preços que uns podem ter acesso em detrimento de outros. Tampouco diz respeito unicamente à responsabilidade individual em promover saúde, manter-se bem, uma vez que só se pode produzir e expressar saúde na medida em que esta seja compartilhada, possível de ser experimentada por todas as pessoas que conformam o gênero humano. Fora disto, é ilusão! é fake news!!!

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