Vivemos um tempo de excepcionalidade com a pandemia provocada pelo novo coronavírus e os seus desdobramentos. O avanço da doença covid-19 também tem salientado inúmeras desigualdades que permeiam as sociedades, dentre as quais o racismo.
Nos dicionários, o racismo é definido como o preconceito, a discriminação, o comportamento hostil, direcionados a quem possui uma raça ou etnia diferente, se refere à segregação racial.
No Brasil, país no qual os negros foram escravizados por mais de 300 anos e a população indígena foi dizimada, é frequente tratarmos das relações raciais, excluindo do foco os brancos, ou seja, os autores/promotores desses processos mencionados.
Esse cenário tem sido transformado, especialmente no meio acadêmico, a partir do acesso de pesquisadores e pesquisadoras negros (pretos e pardos) às universidades. Eles e elas reivindicam uma mudança de perspectiva na análise da temática racial, através dos estudos críticos da branquitude.
“A branquitude tem que ser compreendida como uma construção social, que valoriza a identidade branca numa estrutura racista, onde estes detêm privilégios, sejam eles simbólicos ou materiais, e uma de suas características é a de não ser pensada, pois criou-se uma naturalização dessa relação de dominação e privilégios”, aponta o diretor de Ações Afirmativas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor da Faculdade de Educação, Julvan Moreira de Oliveira.
Em entrevista ao Portal da UFJF, Oliveira, que é doutor e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), fala sobre a importância dos estudos críticos da branquitude; a vulnerabilidade da população negra produzida pelo racismo estrutural; e a cobertura midiática em tempos de pandemia.
Confira na íntegra:
Portal da UFJF – No Brasil, a covid-19 tem tornado ainda mais evidentes inúmeras desigualdades que permeiam a nossa sociedade, dentre as quais o racismo. Fale-nos, por favor, da importância dos estudos sobre a branquitude para a desconstrução do racismo estrutural.
Julvan Moreira de Oliveira – Os pesquisadores e pesquisadoras de relações étnico-raciais no Brasil, na qual eu me coloco, ao estudarmos as principais vertentes do pensamento racial em nosso país, identificamos uma profunda relação na construção da identidade brasileira. Eu gostaria de dizer com isso que o Brasil foi pensado, especialmente com o início da República, por intelectuais que desenvolveram uma sociedade estruturada na dominação étnico-racial de um grupo sobre outros. Isso pode ser observado numa primeira vertente, entre o final do século XIX e a década de 20 do século XX, que reuniu autores que defenderam a exclusão de negros e indígenas na constituição da identidade nacional, valorizando apenas a cultura ocidental. Em seguida, em meados da década de 1930, surge outra vertente que apontará como identidade brasileira a “mistura das três raças”, colocando como nossa marca a “mestiçagem” e a existência de uma suposta “democracia racial”. Uma terceira vertente surgiu entre as décadas de 1940 e 1950, com a defesa de que as desigualdades entre brancos e negros no Brasil, por exemplo, se davam mais por questões econômico-sociais do que étnico-raciais, ou seja, para essa vertente os negros são discriminados por serem pobres e não por serem pretos ou pardos.
“Raça é determinante nas relações sociais” – Julvan Oliveira
Por fim, há uma quarta vertente que aponta e compreende que “raça” é determinante nas relações sociais. Um dado importante, penso, é que nas três primeiras vertentes identificadas por mim, os pesquisadores são todos brancos que estudam a sociedade brasileira e pesquisam as culturas negras, enquanto objetos. E, aqui, há uma série de argumentos científicos desenvolvidos a partir do ponto de vista do branco, o ponto de vista do qual o branco se via e via os outros, como negros e indígenas. Eu compreendo a construção da branquitude exatamente aqui, este local de elaboração das ideologias e das identidades culturais, profundamente marcadas pelas “normativas raciais”, em que o branco é o superior, assim como a cultura ocidental (religião, arte etc.) e o não-branco é o inferior, assim como as culturas não-ocidentais, sejam elas as africanas e afro-brasileiras e indígenas.
“Compreendo a construção da branquitude exatamente aqui, este local de elaboração das ideologias e das identidades culturais, profundamente marcadas pelas normativas raciais” – Julvan Oliveira
O início da desconstrução dessa ideologia só começou no Brasil com uma quarta vertente de pensadores, que iniciaram estudos com ênfase nas questões da identidade e religiosas, rompendo com as visões universalizadoras de humanidade, valorizando exatamente as diversidades e as diferenças. Resumindo, a branquitude tem que ser compreendida como uma construção social, que valoriza a identidade branca numa estrutura racista, onde estes detêm privilégios, sejam eles simbólicos ou materiais e, uma de suas características é a de não ser pensada, pois criou-se uma naturalização dessa relação de dominação e privilégios.
Portal da UFJF – Algumas notícias sobre a maior vulnerabilidade de negros (pretos e pardos) à covid-19 têm sido publicadas por veículos de comunicação. Você tem acompanhado essas publicações? Na sua avaliação, qual a importância de se mencionar o racismo estrutural nas publicações do gênero de modo a desconstruir a ideia de que o problema resume-se a uma questão biológica?
Julvan Moreira de Oliveira – O Movimento Negro sempre fez a denúncia de que o racismo levava à pobreza de negros, levando-os a terem piores condições de trabalho, de moradia, de alimentação, implicando diretamente na saúde dessa população. Essa denúncia esteve presente nas Entidades Negras que se organizaram politicamente no país nos primeiros anos do século XX, especialmente na Imprensa Negra, como “O Menelick”, de 1915, e o “Clarim d’ Alvorada”, de 1924, desembocando na criação da Frente Negra Brasileira, fundada em 1931, e declarada ilegal e dissolvida pelo golpe que instalou o Estado Novo em 1937. Em 1944, teríamos a retomada dessa luta, com a criação do Teatro Experimental do Negro, que buscava o resgate da cultura negra, violentada e desfigurada pelo racismo. Em 1966, o regime militar impediu o Teatro Experimental do Negro de participar do Festival Mundial de Artes Negras, no Senegal, levando Abdias Nascimento a publicar uma “Carta Aberta a Dacar”, denunciando o Ministério das Relações Exteriores. Em 1968, após a realização de um ciclo de debates no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Abdias é perseguido pela Ditadura Militar, obrigando-se a ficar exilado até 1981.
“O Movimento Negro sempre fez a denúncia de que o racismo levava à pobreza de negros, implicando diretamente na saúde dessa população” – Julvan Oliveira
Essa denúncia contra o racismo estrutural retoma com as principais entidades negras que surgiram no final da década de 1970 e início dos anos 1980. Surgiu com o Movimento Negro Unificado, em 1978, com o Grupo de União e Consciência Negra, em 1981, e os Agentes de Pastoral de Negros, em 1983. Eu gostaria de registrar que alguns militantes dessas entidades negras irão entrar como estudantes em várias universidades, fazendo pós-graduações e formando o primeiro quadro de pesquisadores negros que colocaram a temática nessas instituições. Esse grupo de intelectuais negros se organizaram a partir do início dos anos 1980, criaram a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, levando as temáticas do negro para as diversas áreas, da saúde, do trabalho, do direito ou justiça, da educação etc. E, nessa luta, podemos apontar a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, em 2007. A dificuldade da implementação de tal política se dá por esse racismo estrutural na sociedade brasileira, da qual a branquitude tem sua marca profunda, impedindo que tais temáticas sejam estudadas, discutidas e implementadas.
“A dificuldade da implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra se dá pelo racismo estrutural na sociedade brasileira” – Julvan Oliveira
Portal da UFJF – A mídia brasileira tem acompanhado a evolução dos números da pandemia no país e no mundo. Somos informados constantemente, por exemplo, das situações de países europeus, como Espanha e Itália, e asiáticos, como a China. Por outro lado, pouquíssimas informações são divulgadas acerca dos países africanos. O que isso nos diz sobre a sociedade brasileira?
Julvan Moreira de Oliveira – Anteriormente eu afirmei que se pensou na construção de uma identidade brasileira excluindo as culturas africanas e indígenas, com a valorização apenas da cultura ocidental. O Brasil possui atualmente, segundos dados de 2017 da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio], 54,9% da população que se autodeclarou negra, sendo 46,7% parda e 8,2% preta. Ou seja, mesmo com uma população em que a maioria descende de diversos grupos étnicos e culturais africanos, esse país negou e invisibilizou essa origem. A marca desse racismo não estava somente nas relações escravagistas que impuseram ao negro um trabalho servil, está também na negação de falarem as suas línguas, de cultuarem suas divindades, de se organizarem e até de terem seus nomes e sobrenomes em suas línguas.
“Mesmo com uma população em que a maioria descende de diversos grupos étnicos e culturais africanos, o Brasil negou e invisibilizou essa origem” – Julvan Oliveira
Qual negro brasileiro atual tem um sobrenome em suas línguas africanas? Isso é uma forma da destruição de uma identidade étnica, do orgulho de pertencer a um grupo. O ataque a uma identidade étnica têm efeitos cruéis, efeitos psicológicos, no equilíbrio bio-psíquico, na autoestima, além de gerar doenças biológicas. Frantz Fanon estudou muito bem como se dá esse processo de adoecimento, especialmente em sua obra “Os condenados da Terra”, com tradução e publicação pela editora da UFJF. Fanon nos alertou que a base de nossa sociedade é a violência, se manifestando em todas expressões simbólicas e materiais. Essa violência é tão cruel, violência de um racismo que procura destruir uma identidade negra, que não há como desconsiderar a negação de uma ancestralidade africana por parte de negros. Não é sem sentido que encontremos pessoas negras, em sua maioria pobres e de periferia, atualmente em diversas denominações religiosas pentecostais e neopentecostais, atacando as religiões de matrizes africanas, agredindo pessoas do candomblé e umbanda, destruindo os templos religiosos afro. É uma profunda contradição, encontrar negros perseguindo expressões culturais africanas e afro-brasileiras. Mas é fruto dessa violência. Daí, é justificável não termos informações sobre a covid-19 no continente africano. O que é a África?
Portal da UFJF – Você poderia indicar, por favor, conteúdos (vídeos, livros, sites, perfis em redes sociais) para pessoas brancas interessadas em compreender mais e melhor sobre a própria pertença étnico-racial?
Julvan Moreira de Oliveira – As minhas indicações não são direcionadas somente para as pessoas brancas, mas também para as pessoas negras. Eu penso que os principais estudos sobre branquitude são os de:
– Maria Aparecida Silva Bento (Cida Bento), com a sua tese de doutorado “Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”, disponível na biblioteca de teses da USP; e o livro “Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil”.
– Lia Vainer Schucman, com os livros “Entre o ‘encardido’, o ‘branco’ e o ‘branquíssimo’: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana” (fruto de sua tese, disponível na biblioteca de teses da USP) e “Famílias Inter-raciais: tensões entre cor e amor”.
– Ana Helena Ithamar Passos, com o livro “Um estudo sobre branquitude no contexto de reconfiguração das relações raciais no Brasil – 2003-1013” (fruto de sua tese de doutorado, disponível na banca de teses PUC-RJ)
– Liv Rebecca Sovik, com o livro “Aqui ninguém é branco”.
– Lourenço da Conceição Cardoso, com a tese “O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil”, disponível no banco de teses da Unesp e a dissertação “O branco ‘invisível’: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (período: 1957-2007)”, também disponível na internet. E o seu livro, organizado conjuntamente com Tânia Mara Pedroso Muller, “Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil”.
– Vron Ware, com o livro que organizou, “Branquidade: identidade branca e multiculturalismo”.
– Dagoberto José Fonseca, com o seu livro “Você conhece aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira” (fruto de sua dissertação de mestrado).
– Marcelo dos Santos Campos, com a sua dissertação, “’Hoje é dia de Branco’: a branquitude de médicos de família de Juiz de Fora – MG e a equidade racial no cuidado em saúde”.
Vídeos:
– “Qual o lugar do branco na luta antirracista?”, com Lia Vainer Schucman.
– “Brancos aprendem a ser racistas por construção social”, TV Folha com Lia Vainer Schucman.
– Espelho, Canal Brasil, Entrevista com Cida Bento.
– Tem um vídeo chamado “Unequal Opportunity Race”, que é bastante ilustrativo dessas desigualdades entre brancos e negros, especialmente se quisermos conversar sobre meritocracia.
Portal da UFJF – Há alguma questão que você queira acrescentar?
Julvan Moreira de Oliveira – Compreendendo a branquitude como essa construção social de uma sociedade estruturada em raças, onde alguns detêm privilégios em detrimento de outros, eu poderia apontar alguns exemplos cotidianos dessa relação. Há várias intelectuais negras e pesquisadores negros que publicam diversas obras, no entanto elas são desconsideradas. Várias pessoas negras têm publicado muitas coisas e que não são consideradas. Aí, aparece uma pessoa branca, diz aquilo que negros e negras já diziam há décadas, e são valorizadas, consideradas como grandes pesquisadores, têm suas obras publicadas etc.
“É muito comum isso entre nós, esse privilégio branco que o transforma num intelectual, quando aquilo que diz já foi anteriormente falado por diversos negros” – Julvan Oliveira.
É muito comum isso entre nós, esse privilégio branco que o transforma num intelectual, quando aquilo que diz já foi anteriormente falado por diversos negros. Do privilégio dos negros com a preocupação que a polícia tem com a nossa segurança. Não há um negro ou negra neste país que não tenha tido experiências nesse sentido. Eu posso revelar várias comigo. Numa delas, eu não esquecerei nunca. Estava numa fila em uma bilheteria de um teatro no centro de São Paulo, para comprar meus bilhetes, quando se aproximaram dois policiais pedindo os meus documentos. Eu estava praticamente no centro da fila, com várias pessoas à minha frente e várias depois de mim, e observei no momento que eu era o único negro na fila, justamente com quem os policiais vieram pedir documento? Eu argumentei sobre e eles se defenderam que era para a minha segurança. Ou seja, esse privilégio, somente nós negros temos e em qualquer espaço social, nos bancos, nos restaurantes, nas lojas. E, também nos nossos espaços culturais. Eu estou cansado de ir em shows no Cine-Theatro Central e em outros teatros em São Paulo, com apresentações de artistas negros ou negras e a presença de negros entre o público é ínfima. A explicação não se dá somente pelo valor dos ingressos, pois com o mesmo valor pessoas negras gastam em outras atividades. É que esse espaço não é o nosso espaço, isso pode não ser falado explicitamente na atualidade, mas foi construído por esse racismo à brasileira, dissimulado, latente. Quantos espaços onde se tem apresentações de expressões culturais afro-brasileira, como congada e samba, existe a ausência de negros? É mais comum do que se imagina. Talvez a branquitude não perceba, mas eu como negro, ao ir nesses espaços me sinto extremamente incomodado, pois os meus não estão presentes, os meus não estão comungando do mesmo espaço, da mesma música, da mesma comida. Isso dói demais, ao menos em mim vem provocando uma dor muito profunda. Isso não é diferente na área da Saúde.
“Já temos algumas pesquisas e várias reportagens mostrando o atendimento diferenciado entre mulheres brancas e negras” – Julvan Oliveira
Já temos algumas pesquisas e várias reportagens mostrando o atendimento diferenciado entre mulheres brancas e negras no momento do parto, em que, por exemplo não se dá anestesia às negras que recebem o corte no períneo. Há relatos e relatos sobre isso. Não é coincidência que mulheres negras são as que mais morrem na gravidez e nos partos. O racismo é um determinante social de saúde no Brasil. A branquitude vai dizer que a questão é econômica-social e não racial. Mas negros têm tido uma percepção bem diferente, desde o atendimento inicial até o acesso aos medicamentos. Há uma metástase racista estrutural que atinge pessoas por causa de sua raça, cor, cultura ou origem étnica. Eu não acredito que isso seja motivo para desanimarmos, pois minha geração e a geração mais jovem não temos o direito de nos entregar, em respeito às gerações negras anteriores que deram suas vidas para as poucas conquistas, mas importantíssimas, que tivemos até aqui, e lutarmos para a construção de uma sociedade onde as relações raciais sejam o mais igualitária possível.
Saiba mais:
O que nos diz o cenário político brasileiro?
Covid-19: modelo de segurança pública e situação dos presídios brasileiros
Covid-19: Célia Xakriabá alerta sobre risco de extermínio de indígenas
“Polarização cria falso dilema entre saúde econômica e preservação da vida”
“Atendimento à população em situação de rua evidencia desafio à Saúde Pública”
“Descaso com condição social é evidência da sociedade de classe e racista”
“Promoção da saúde e de condições dignas de vida devem ser projeto de nação”
“A vulnerabilidade atinge especialmente negros e pobres”
“Tragédias evidenciam necessidade de existência e atuação do Estado”
Outras informações: imprensa@comunicacao.ufjf.br