Entre o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, celebrado em 11 de fevereiro, e o Dia Internacional das Mulheres, neste 8 de março, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) procurou dar visibilidade aos trabalhos realizados por professoras, técnico-administrativas, funcionárias terceirizadas e alunas que compõem a comunidade acadêmica. Confira todo o material publicado nesta série dedicada a elas.

Durante um mês, por meio da  campanha Universidade: Substantivo Feminino, foi possível discutir o papel das mulheres na educação e na ciência, rememorar aquelas que construíram a história da Universidade, debater o machismo e o racismo que tanto afetam trabalhadoras e estudantes, nos aspectos de suas vidas profissionais e pessoais. Foi necessário ouvir e refletir sobre o que precisa ser modificado para garantir um futuro mais diverso e, ao mesmo tempo, equânime em direitos e oportunidades.

A ideia de comemorar anualmente o Dia Internacional das Mulheres surgiu no início do século XX, após uma jornada de manifestações pela igualdade de direitos civis e em favor do voto feminino, ocorrida em 1909, em Nova York. A data, então, foi sugerida pela professora, jornalista e política marxista alemã Clara Zetkin (1857-1933), durante a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, em Copenhague, na Dinamarca. No entanto, o 8 de março só foi instituído oficialmente em 1975, pelas Organizações das Nações Unidas (ONU).

Para a vice-reitora da UFJF, Girlene Alves da Silva, a data é uma forma de refletir sobre a sociedade que ainda carrega marcas profundas do machismo, do conservadorismo, do racismo e da homofobia. Entre esses temas, ela destaca, por exemplo, a tímida participação feminina na política e em cargos públicos.

 “A ocupação desses espaços vem contribuindo para que a gente compreenda que nós podemos estar em qualquer lugar. Na universidade pública brasileira, a participação da mulher vem aumentando de forma gradual. O cenário já poderia ter mudado, sim, mas percebo nossa contribuição sendo mais valorizada”, aponta Girlene, que também é professora da Faculdade de Enfermagem. Na gestão, como a primeira vice-reitora da UFJF, Girlene faz questão de pontuar a nomeação de mulheres para os cargos de direção e coordenação de setores administrativos e acadêmicos e nas pró-reitorias.

“Como é se sentir mulher? Vocês já pararam para pensar nisso?”

Maria Inês de Almeida sempre provocou suas alunas e pacientes com a pergunta ‘Como você se sente como mulher?’ (Foto: Carolina de Paula)

Docente da Faculdade de Enfermagem por 25 anos, Maria Inês Gomes de Almeida é uma das retratadas pela campanha “Universidade: Substantivo Feminino”. Durante todos os anos em que foi professora da UFJF, ela conta que lecionou a disciplina Enfermagem em Saúde da Mulher, que considera ser um divisor de águas nas trajetórias de alunos e alunas dentro da Faculdade. “Nesta disciplina, fazíamos uma consulta considerando a mulher como um todo, que deve ser respeitada, valorizada. Ensinamos empoderamento, protagonismo feminino através, por exemplo, de um processo de parto ou de um exame preventivo, nos quais é preciso reforçar que a mulher é dona de seu próprio corpo. Isso sempre encantou muito alunas e alunos”, recorda Maria Inês, que ainda foi representante da Universidade no Comitê de Prevenção à Mortalidade Materna, da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), de 1996 até a sua aposentadoria.

Durante essas consultas, uma pergunta era sempre feita às pacientes: “como você se sente como mulher?”. As respostas vinham com dificuldade. E, às nossas leitoras, Maria Inês questiona: “vocês já pararam para pensar nisso?”. A partir dessa pergunta base, a UFJF lança, neste 8 de março, o último podcast e vídeo da série veiculada, respectivamente, na plataforma do Encontro A3, no Spotify, e no canal da Revista A3 da UFJF, no YouTube

O programa, comandado pela jornalista Laís Cerqueira, teve a participação da professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina e ouvidora especializada em ações afirmativas, Danielle Teles; e das pesquisadoras Débora Araújo, do Departamento de Engenharia Elétrica; Rossana Melo, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB); Zélia Ludwig, do Departamento de Física do Instituto de Ciências Exatas (ICE); e Brune Brandão, doutoranda em Psicologia. Através da série, foi possível discutir os desafios da carreira acadêmica, a conciliação da maternidade e da carreira científica, a participação das mulheres trans na pesquisa e conhecer sobre o papel da ouvidoria no combate ao machismo dentro da Universidade.

O combate ao racismo perpassa por todos os ambientes

Adriana Oliveira percorreu muitos caminhos profissionais até conseguir se tornar bibliotecária da UFJF concursada (Foto: Carolina de Paula)

Para além do machismo, outras questões foram retratadas na série e nas entrevistas com as personagens da campanha “Universidade: Substantivo Feminino”. A bibliotecária Adriana Aparecida de Oliveira observa a importância de se debater a presença das mulheres negras dentro do ambiente universitário. Nascida na pequena cidade mineira de Formiga, Adriana perdeu o pai cedo, aos 9 anos de idade, e foi criada pela mãe, que teve que se virar como doméstica, faxineira e cozinheira para criar as quatro filhas. Adriana trabalhou como babá, em fábrica de roupas, em escritório de contabilidade e professora particular. Até que conseguiu passar em seu primeiro concurso público para o cargo de bibliotecária na Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais.

O fato de ver pessoas negras ocupando tais cargos é uma forma de incentivar outras pessoas a tentarem o mesmo.

Posteriormente, Adriana ingressou como servidora da UFJF, onde trabalha há quase 30 anos. “Fazer concurso público foi a busca por um trabalho estável, que pudesse me dar como retorno a possibilidade de ajudar a minha família”, comenta, destacando ainda ser preciso que mais pessoas negras, sobretudo mulheres, ocupem cargos públicos, visto que a paridade entre negros e brancos dentro da universidade ainda está longe de existir. “O fato de ver pessoas negras ocupando tais cargos é uma forma de incentivar outras pessoas a tentarem o mesmo. Os jovens nos olham e acreditam que também são capazes, assim como eu me espelhei em pessoas negras que venceram dificuldades e conseguiram ocupar seus espaços”. 

“Nós não estamos sós”

Com uma história de vida muito difícil, Andréia viu no trabalho na UFJF a oportunidade de deixar seu agressor (Foto: Carolina de Paula)

A funcionária terceirizada Andréia Cláudia Matias, há quatro anos, entrou pelos portões da Universidade contratada como copeira reserva, cobrindo férias, na Pró-Reitoria de Infraestrutura e Gestão (Proinfra). A doçura da “tia do café”, como ela conta ser chamada por seus companheiros e companheiras de trabalho, contrasta com a dureza de sua história de vida. Separada há dois anos, com duas filhas já formadas e uma filha de seis anos, Andréia sofreu, ao longo de 27 anos com as agressões do ex-marido e um relacionamento extremamente abusivo. E foi literalmente dentro da UFJF que sua vida começou a mudar. “Em um determinado dia, meu ex-marido me bateu muito, de tão bêbado que ele estava. Saí da minha casa e vim para a Universidade, pedi ajuda a um vigilante que trabalhava na Proinfra. Estava machucada, meu corpo todo doía”, relata.

Existem muitas Andréias por aí, gritando, pedindo socorro todas as noites. O que aconselho às mulheres é que elas não se calem, peçam ajuda

No dia seguinte, duas colegas perceberam que Andréia não estava bem. “Chorei muito com elas e ambas mobilizaram uma rifa, arrecadaram dinheiro para que eu pudesse pagar um cheque caução para alugar uma casa. Consegui sair daquela tortura por conta da UFJF, que me amparou e acolheu”, exalta Andréia, que foi abandonada pelo pai e pela mãe aos 9 anos de idade e, com essa mesma idade, foi abusada sexualmente por três homens. Uma história dura e cruel, assim como a de várias outras meninas e mulheres negras de nosso país. “Existem muitas Andréias por aí, gritando, pedindo socorro todas as noites. O que aconselho às mulheres é que elas não se calem, peçam ajuda às colegas de trabalho. Sempre terá alguém disposta a ajudar. O que nos mata é o silêncio. Nós não estamos sós”, reforça Andréia.

Impactos da violência e das desigualdades de gênero

Casos como o da funcionária Andréia Matias são uma triste realidade brasileira. Segundo levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na véspera do Dia Internacional das Mulheres, o Brasil segue como um dos países com maior índice de violência contra a mulher, com um dado alarmante de um crime ocorrido a cada sete horas. O número de estupros contra mulheres aumentou 3,7% em 2021 em relação a 2020, totalizando 56.098 casos no ano passado. 

A professora Marcela Beraldo, pesquisadora de desigualdades de gênero, aponta o grande impacto da maternidade na produção científica (Foto: Carolina de Paula)

Professora de Antropologia do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UFJF, Marcella Beraldo de Oliveira é uma das pesquisadoras nacionais e coordenadora regional do projeto “Judicialização da Violência de Gênero e Práticas Alternativas”, com vigência entre 2018 e 2021 e que teve como foco mapear e descrever mecanismos e práticas de promoção de justiça, de reparação moral e de medição em casos de violência de gênero, comparando os sistemas de justiça de Brasil e Argentina. Entre os resultados da pesquisa, está a análise da lei 9.099, de 1995, que compreendia os crimes de violência doméstica junto aos de menor potencial ofensivo.

“Temos três marcos: a criação da Delegacia da Mulher, na década de 1980; depois, temos a lei 9.099, que não é específica para crimes de gênero, tratando-os como de menor potencial ofensivo mas que acabou tendo impacto grande nos casos que entravam na Delegacia. Em resposta a isso, tivemos a lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha (instituída em setembro de 2006 e que visa criar mecanismos mais eficientes para coibir a violência contra a mulher), para ir contra essa classificação de menor potencial ofensivo”, informa a professora, em live realizada em abril de 2021, na apresentação dos resultados do projeto. 

Para além das pesquisas na área de violência contra a mulher, Marcella também estuda o impacto da maternidade na produção acadêmica das mulheres. “A maternidade é uma revolução na vida de qualquer mulher e impactou muito na minha produção científica. Quando fui mãe, passei a fazer a reprodução da vida, o trabalho que chamamos de economia do cuidado, que está permeada em 90% pela mão de obra feminina”, explica Marcella, que utiliza uma foto sua, grávida, na plataforma Lattes, uma forma de demarcar o espaço das mulheres que são mães no ambiente universitário.

“A maioria das universidades brasileiras não têm políticas de apoio às mulheres quando elas são mães. Tive um buraco na minha produção científica justamente nessa época da vida. Na Suécia, por exemplo, elas têm um ano de licença dos cargos de chefia e nem precisam dar aulas, para que elas possam cuidar dos filhos, o que, segundo o mercado capitalista, é uma perda de tempo produtivo”, aponta Marcella.

Para ela, tanto a Universidade quanto os companheiros de trabalho precisam ter mais atenção para essas questões. “Sonho com políticas institucionais que avaliem as desigualdades entre mulheres e homens dentro da universidade. Precisamos olhar para essas diferenças, aquelas que causam desigualdades, tanto para professoras, quanto para alunas de pós-graduação, que geralmente não conseguem defender suas teses e dissertações ao terem seus filhos”.

Inclusão e diversidade: um sonho de universidade

A aluna Carolina de Moraes sonha com um futuro no qual todas as mulheres possam viver de forma plena, conquistando seus objetivos (Foto: Carolina de Paula)

Personagem da campanha, “Universidade: substantivo feminino”, Carolina Monteiro de Moraes, estudante do Instituto de Artes e Design (IAD) representa muitas mulheres que ainda são minoria no ensino superior. Com paralisia cerebral, deficiência descoberta aos cinco meses de idade, ela tem suas funções cognitivas intactas, mas reconhece que o acesso às pessoas com deficiência é negado desde o início da formação, não só pela falta de apoio familiar como também pela ausência de estrutura e conhecimento do ambiente escolar, que não permite a alunas e alunos terem um tratamento adequado às suas condições. 

“Temos muito que oferecer, tanto como mulheres quanto como portadoras de necessidades especiais. Tenho amigas que me pedem conselhos sobre como conseguir mais acesso ao meio acadêmico e as aconselho a perseguirem seus sonhos, a exigirem seus direitos”, afirma Carolina, que, no auge de seus 23 anos, tem muitos sonhos. Entre eles, o de uma maior inclusão social: “Sonho que todas as mulheres, independente de serem portadoras de necessidades especiais, de sua cor, classe social, orientação sexual ou identificação de gênero possam viver de forma plena, conquistando seus objetivos com maior igualdade e respeito”, finaliza.