A pandemia de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, é uma situação inédita para todas as gerações existentes atualmente em qualquer parte do mundo. E essa afirmativa diz sobre a radicalidade das experiências vivenciadas neste contexto por cada um de nós.
Ocorre que, não bastassem o ineditismo e a gravidade da enfermidade amplamente disseminada, brasileiras e brasileiros precisam lidar com a instabilidade política num país marcado por extremas desigualdades de raça, classe, gênero, acesso à saúde, dentre outras.
Nesta quinta-feira, dia 16, o Governo Federal promoveu mudança na gestão do Ministério da Saúde, principal responsável pela administração do Sistema Único de Saúde, o SUS, do qual dependem integralmente 75% da população do Brasil.
O Portal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ouviu oito pesquisadores da instituição sobre o assunto. As entrevistadas e os entrevistados atuam em diferentes áreas do conhecimento, como Ciência Política, Comunicação, História e Saúde. Ao grupo – integrado por Cláudia Viscardi, Danielle Teles, Fernanda Thomaz, Marco Duarte, Paulo Roberto Leal, Raul Magalhães, Sérgio Camargo e Wedencley Alves – foi apresentada a questão: quais as possíveis consequências da instabilidade política – mudança do gestor do Ministério da Saúde – no controle da pandemia provocada pelo novo coronavírus no país?
Confira abaixo as respostas na íntegra:
Cláudia Viscardi – Doutora em História Social pela UFRJ
Claro que a mudança de um gestor no auge de uma crise sanitária é muito ruim. Com todos os problemas que tinha o Ministro Mandetta, sua gestão, na minha avaliação, era mais positiva que negativa, sobretudo diante do panorama nacional, extremamente dividido em relação às alternativas de resolução da crise. Mandetta conseguia manter boa relação com governadores e prefeitos, que são os diretamente responsáveis pela gestão da saúde e mantinha também boa articulação com os outros poderes do Estado. É difícil projetar resultados imediatos da mudança, porque pouco sabemos sobre o novo Ministro. Mas é difícil imaginar que alguém que não tenha reconhecida experiência na gestão pública, sobretudo com o nosso SUS, tenha o preparo ou a sensibilidade para resolver uma das crises que se anuncia como a maior de nossa História. Ademais, Mandetta foi demitido por discordar do presidente em relação à necessidade incontestável do isolamento horizontal. Temo que o novo Ministro seja incapaz de fazer valer suas crenças – anteriormente se manifestou favorável ao isolamento – e, o que é pior, tenha dificuldades em coordenar nacionalmente o combate à crise. Faço votos para que eu esteja errada.
Danielle Teles – Doutora em Saúde pela UFJF
É difícil conseguir mensurar e elencar todas as consequências. Estamos vivenciando uma pandemia sem precedentes dentro de um contexto socioeconômico que já se anunciava caótico e diante de um sistema de saúde que vem agonizando e lutando para resistir. A batalha contra o coronavírus, por si só, é um imenso desafio, mas ganha outros contornos no Brasil. A mudança da pasta coloca em risco toda a continuidade das ações e estratégias planejadas com um prejuízo maior aos grupos sociais e sujeitos mais vulneráveis. É como trocar os quatro pneus de um carro com ele andando em alta velocidade e de forma desgovernada. Toda mudança de gestão envolve tempo, e tempo é o que não temos neste momento. A covid-19 não nos permite ter o privilégio de ter tempo para fazer uma transição séria, montar uma nova equipe de trabalho e um novo planejamento. É premente a necessidade de agilidade, tendo o SUS como o principal instrumento e o reconhecimento de que ele é mais que assistência, estamos falando de ciência, pesquisa, tecnologia, inovação, produção de insumos, vigilância sanitária e epidemiológica. Envolve ainda ter como princípio básico a defesa da vida. Qual a interlocução e compromisso do novo ministro com o SUS? Ele tem experiência com gestão pública? Quais os valores e concepções ideológicas e políticas? A reflexão dessas respostas nos apontam para um horizonte nada promissor.
Fernanda Thomaz – Doutora em História Social pela UFF
Apesar do novo ministro estar alinhado com as ideias de Bolsonaro, é importante pensar que uma mudança desse tipo em meio a uma pandemia é minimamente desestabilizadora. Não há sociedade que aguente! Infelizmente, vejo que tudo isso gerará um cenário ainda mais destruidor do que já estamos vivendo, sobretudo quando levamos em consideração as antigas declarações do novo ministro: priorizar os jovens em detrimento dos idosos e o isolamento restrito aos infectados e pessoas próximas deles, etc. Essa mudança no Ministério da Saúde parece que fez renovar a mensagem do governo que “temos que voltar ao trabalho”. Tudo isso levará à multiplicação de infectados e mortes. Nós já sabemos que os mais prejudicados serão os pobres, negros, indígenas e daí por diante. Imagine uma diarista que em cada dia trabalha numa casa diferente, como esta pessoa conseguirá se proteger? Ou mesmo as pessoas que passam horas em transportes públicos lotadíssimos para chegar nos seus respectivos empregos, como evitariam a contaminação? As consequências serão assustadoras porque estas mesmas pessoas vão procurar o Sistema Único de Saúde e disputarão leitos e respiradores para sobreviver.
Marco Duarte – Doutor em Serviço Social pela UERJ
Quando se analisa a Política de Saúde, remete-se ao SUS e toda uma história para ser dita, desde a emergência do movimento da Reforma Sanitária, em contexto de Ditadura e a defesa intransigente da saúde como direito social, como posto na Constituição e Lei Orgânica da Saúde (LOS), que completará 20 anos. A implantação do SUS não foi imune aos ditames neoliberais, haja visto o embate político, no âmbito do Estado, entre as forças representadas pelos interesses privatistas e os defensores de um sistema público e universal. As consequências: subfinanciamento, corte de verbas, parcerias público-privadas, interesses econômicos distantes das necessidades em saúde, precarização do trabalho em saúde etc., além da Emenda Constitucional (EC) 95 que congelou o teto de gastos, depois do golpe, apoiado pelo Mandetta. O coronavírus tomou de assalto a gestão pública do SUS com todos os seus retrocessos, inclusive pelo Mandetta. Esse mudou o discurso, ao ponto de ser substituído pelo Teich, marcadamente privatista. Essa mudança, frente à pandemia e seu agravamento, foi irresponsável mais uma vez, reafirmando a lógica, frente ao SUS, de sobrepor um discurso econômico diante da vida da população, no momento em que se aprofundam as contradições da sociedade já marcada pelas desigualdades, opressões e exploração humanas, em particular, para os mais vulnerabilizados, que terão um exponencial aumento em número de contágios e óbitos, pois são os que mais sofrem os efeitos desta conjuntura de crise política, econômica e sanitária.
Paulo Roberto Leal – Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ
Em crises gravíssimas, como a que vivemos agora, seria desejável que as políticas públicas pudessem dispor de alguma estabilidade e previsibilidade – não nos esqueçamos de que já morreram comprovadamente até hoje (fora a provável imensidão de casos subnotificados) quase dois mil brasileiros e, segundo os especialistas, ainda não chegamos ao pico de infectados e de mortos. É de perdas de vidas que estamos falando – se isso não merecer total prioridade, o que mereceria? Trata-se de mais uma ação irresponsável do presidente da República – dentre muitas outras. Se a demissão de Henrique Mandetta se deu porque o novo ministro, Nelson Teich, mudará as políticas, isso implicará tirar o Brasil da posição francamente majoritária adotada no mundo, recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelos principais especialistas. Isso pode representar enormes riscos de que a epidemia saia completamente do controle. Se, ao contrário, o novo ministro mantiver relativamente inalteradas as políticas adotadas até agora, trata-se de perguntar por que Mandetta foi demitido. Neste caso, ficará evidente que a mudança não tem nenhuma relação com o combate à pandemia, mas sim a cálculos eleitorais do presidente – o que seria vergonhoso, num contexto de crise sanitária, humanitária e econômica do porte desta que vivemos. Em qualquer das duas hipóteses, fica evidenciado que não é razoável trocar o ministro às vésperas do momento mais crítico da pandemia.
Raul Magalhães – Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ
Mandetta teve uma atuação bastante deficiente, concordava com os cortes de verbas para a saúde, nunca defendeu o SUS e era altamente simpático à expansão dos sistemas privados na área. Na gestão da pandemia, ainda faltam testes que não foram providenciados a tempo, faltam respiradores, crescem constantemente as suspeitas de subnotificação e não há qualquer estratégia clara para enfrentar o espalhamento do vírus nos setores mais pobres. Mandetta caiu devido ao esgotamento do papel ambíguo que lhe cabia de fingir que cumpria protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS), enquanto o capitão Bolsonaro convocava todos a quebrar o isolamento. Esse contraditório e anticientífico “teatro do absurdo” não pôde mais ser levado adiante, além de resultar num efeito que Bolsonaro não esperava: a maior parte da população “sensata” se identificava e apiedava do ministro, alimentando as psicopatias do presidente, que vê rivais em toda parte. Ao ministro que entra, Nelson Teich, mesmo que seja um gestor mais competente (o que não é difícil), tem o dilema de concordar, ou não, com uma absurda política de flexibilização do isolamento, que não tem chances de salvar a economia e que com toda certeza aumentará os números de contágio e de mortes. O paradoxo está pronto, pois se Teich acertar colide com o irracionalismo do presidente, se errar a conta é paga em assombrosas estatísticas de morte, então só há mais crise no horizonte.
Sérgio Camargo – Doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp
Se o Governo antimoderno, antidemocrático, antipopular e antiSUS é a própria essência da instabilidade, são possíveis três cenários: 1) Submissão do novo Ministro ao Presidente, retorno dos indivíduos às atividades laborais cotidianas, disseminação máxima do vírus e incremento exponencial do número de casos e de óbitos. Neste cenário de matriz utilitarista, sacrificam-se idosos e vulneráveis como processo de “seleção natural”, em benefício da imunização dos demais cidadãos, mediante livre circulação de indivíduos e patógenos; 2) Manutenção das tensões entre racionalidade científica do Ministério (recomendações técnicas) e racionalidade terraplanista sanitária do Presidente (“likes” nas redes sociais), a reproduzir o impasse original. Haveria alguma atenuação no incremento dos óbitos por meias-medidas técnicas da meia-gestão sanitária favoráveis ao SUS, combatidas pelo Executivo no limbo entre um quase distanciamento social de baixa adesão popular e um quase achatamento da curva pandêmica; 3) Inflexão do Presidente que, persuadido pelo bom-senso ou pela coerção dos Poderes Legislativo, Judiciário e Forças Armadas, acataria recomendações e dirigiria os esforços para fortalecer o SUS, viabilizar o cuidado, controlar a transmissibilidade, o adoecimento e os óbitos, e mitigar, mediante um conjunto de políticas públicas sanitárias, econômicas e sociais, o sofrimento dos nacionais.
Weden Alves – Doutor em Linguística pela Unicamp
O fato de um dos princípios organizativos do Sistema Único de Saúde (SUS) ser o de descentralização e comando único (cada esfera de governo é autônoma em suas decisões, mas deve respeitar todos os princípios gerais) nos protege um pouco das desordens do Governo Federal. Embora não totalmente, porque, por ser um sistema único e estarmos diante de um caso de pandemia, o Ministério da Saúde acaba sendo um interlocutor imprescindível. Os prejuízos dessa instabilidade política, dessa falta de percepção do que seja a gravidade desta crise sanitária por parte da Presidência, que inclusive vem estimulando a desobediência civil em relação às medidas de mitigação, são algo a conferir em breve. Mas é importante ressaltar que mesmo o ministro anterior estava longe de ter uma atuação eficiente nesta crise. O atraso no fornecimento de material de proteção às unidades estaduais e municipais, a não unificação dos leitos (públicos e privados), a não liberação de verbas à altura dos riscos que estamos enfrentando, tudo isso foram falhas que provavelmente continuarão ocorrendo…
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