Na terceira e última entrevista da série sobre o Centro de Referência LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros,Transexuais, Queers e Intersexuais), os entrevistados são Sidney Aurum, estudante de Serviço Social, e o advogado Júlio Mota, integrantes do programa de extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) sob coordenação do professor Marco José Duarte.
No mês no qual é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, tanto Sidney quanto Júlio reiteraram a importância do respeito ao uso do nome social e dos espaços de acordo com a identidade de gênero. Ambos também mencionaram os entraves devidos a não gratuidade do processo de retificação do registro civil no Estado de Minas Gerais.
“O Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça dispôs que cabe a cada Estado e ao Distrito Federal definirem sobre as taxas cartorárias, o que ainda não foi realizado em Minas Gerais. Portanto, a inércia do Estado gera mais um entrave na retificação”, afirma o advogado.
Confira as entrevistas na íntegra:
Portal da UFJF – Quais são as informações necessárias às pessoas trans que desejam realizar a retificação do registro civil?
Júlio Mota: “O Conselho Nacional de Justiça dispôs que cabe a cada Estado e ao Distrito Federal definirem sobre as taxas cartorárias, o que ainda não foi realizado em Minas Gerais”
Júlio Mota – A partir da entrada em vigor do Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as pessoas trans passaram a ter o direito de alterar o nome e o gênero diretamente no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, não sendo mais necessário ingressar com um processo judicial. Para que essa alteração seja feita, é necessário que a pessoa seja maior de 18 anos e apresente diversos documentos que estão especificados no provimento do CNJ. Essa lista conta com 17 documentos, o que se torna um entrave. Sabemos que muitas pessoas trans não têm acesso à informação e são muitas as certidões exigidas. São documentos difíceis de serem achados em diversos sites de tribunais de justiça e isso requer, no mínimo, que se tenha acesso à internet. Não basta simplesmente chegar ao cartório e solicitar a retificação. Além dos documentos, a pessoa trans, ao solicitar a retificação, não pode estar cumprindo nenhuma condenação penal ou ter uma ação penal em execução. É importante ressaltar, ainda, que todos esses documentos precisam estar atualizados. Por exemplo, quando você vai fazer a sua retificação, é preciso levar a certidão de nascimento atualizada e a emissão da certidão atualizada tem um custo.
Portal da UFJF – Qual o custo total do processo de retificação do registro civil?
Júlio Mota – No Estado de Minas Gerais, na maioria das vezes as retificações não são feitas de forma gratuita. Existem algumas exceções em alguns municípios em que a Defensoria Pública de Minas Gerais atuou para que o direito à gratuidade seja garantido, promovendo mutirões de retificação. O Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça dispôs que cabe a cada Estado e ao Distrito Federal definirem sobre as taxas cartorárias, o que ainda não foi realizado em Minas Gerais. Portanto, a inércia do Estado gera mais um entrave na retificação. Antes, quando a retificação era feita de forma judicial, as pessoas trans faziam jus à concessão do benefício, conseguiam a gratuidade judiciária e retificavam o prenome e o gênero sem os custos dos emolumentos cartorários. Hoje, mais especificamente em Juiz de Fora, as pessoas trans não têm o direito à gratuidade efetivado pelos Cartórios de Registro de Pessoas Naturais. Isso é um entrave enorme, porque boa parte da população trans não tem acesso ao mercado de trabalho formal, ou seja, não consegue recursos para fazer a retificação. Então, ainda que a decisão do Conselho tenha possibilitado a retificação do prenome e do gênero fora do processo judicial, muitas pessoas trans não têm seu direito efetivado por conta do alto custo do procedimento.
Portal da UFJF – O que seria necessário para que o processo de retificação do registro civil de pessoas trans se tornasse gratuito? Há alguma expectativa nesse sentido?
Júlio Mota – Isso depende de regulamentação do Tribunal de Justiça de Minas (TJ/MG). O movimento do TJ/MG nesse sentido é muito tímido. Algumas organizações têm feito pressão, mas na verdade não é interessante, para os cartórios, que o serviço seja prestado de forma gratuita. Ainda mais quando o valor é alto, variando de R$ 400 a R$ 700, dependendo do caso. O valor é bem alto, especialmente quando se considera que uma pessoa trans é que terá que arcar com esse gasto.
Portal da UFJF – Fale-nos, por favor, sobre a importância da retificação do registro civil para pessoas trans.
Júlio Mota: “O nome é de extrema importância para convivermos em sociedade, para nos reconhecermos e para nos fazermos reconhecer”
Júlio Mota – O nome é um direito de toda pessoa. É um direito da personalidade. O nome é o elemento principal pelo qual nós somos identificados na sociedade. A falta do nosso nome nos nossos documentos nos gera diversos constrangimentos, e muitas das vezes também sofrimento psíquico. O nome é de extrema importância para convivermos em sociedade, para nos reconhecermos e para nos fazermos reconhecer. É uma das características principais do ser humano. Quando nos é negada essa retificação, seja pela lista extensa de documentos ou pelo alto valor do procedimento, ainda que de forma administrativa, os direitos humanos estão sendo lesados, a dignidade da pessoa humana está sendo lesada.
Portal da UFJF – Conte-nos sobre a importância do CeR-LGBTQI+ e do trabalho jurídico desenvolvido aqui.
Júlio Mota – O CeR-LGBTQI+ é de extrema importância para as pessoas trans, porque se tornou um local, um ambiente, no qual podemos trocar informações. Não conseguimos isso nos outros lugares, mesmo que por meio da internet. Não conseguíamos ter informações precisas sobre os procedimentos que precisamos fazer, seja para a retificação, para cirurgia, para tratamento hormonal. O CeR-LGBTQI+ virou o local, para fazermos essa troca de informações. Em relação ao serviço jurídico prestado pelo Centro, qualquer pessoa trans pode vir até aqui. Nós prestamos assessoria jurídica, explicamos como ter acesso às certidões necessárias para retificação. Fazemos toda a assessoria nesse sentido, inclusive quando a pessoa tem direito à gratuidade de alguns documentos que estão na lista do Provimento 73.
Portal da UFJF – Há alguma questão que você queira acrescentar?
Júlio Mota – Uma questão muito importante e positiva é a não obrigatoriedade da apresentação de laudo psicológico, psiquiátrico, para a retificação do registro civil. Muitas pessoas trans ainda acreditam na obrigatoriedade. Na verdade, é facultada às pessoas trans a apresentação desse documento ou qualquer outra documentação que comprove a realização de cirurgia de redesignação sexual. Tais documentos não são mais necessários.
Portal da UFJF – Fale-nos, por favor, acerca da importância do respeito ao uso do nome social.
Sidney Aurum – O respeito ao uso do nome social é muito importante. Nem todo mundo consegue fazer a retificação do registro civil. Não é só pela questão financeira. Existem várias outras coisas que podem impedir a retificação. Por exemplo, existem documentos que você só consegue em determinados lugares, em determinados sites. Se você não sabe como ter acesso a esses documentos, você não conseguirá retificar mesmo tendo dinheiro. Outra possibilidade, para não retificar e preferir o uso do nome social, pode ser estar “no armário” em certos ambientes. No ambiente familiar, por exemplo. O nome social garante a cidadania, a permanência das pessoas trans nos lugares. O nome é algo muito importante. Precisamos de políticas que combatam a transfobia. Quando há políticas que garantem o combate à transfobia nos espaços públicos, nas instituições, ficamos mais seguros, porque sabemos que não seremos desrespeitados. E, mesmo que nesses espaços haja desrespeito, sabemos que existe um aparato para impedir que isso ocorra.
Portal da UFJF – E quanto à importância do respeito ao uso dos banheiros de acordo com a identidade de gênero?
Sidney Aurum: “Não são as pessoas trans que devem ser punidas por causa das pessoas cis. Enquanto ficam nessa de proteger as mulheres cis dos homens cis, estão fazendo com as mulheres trans sofram violências nos banheiros masculinos”
Sidney Aurum – É muito importante também. É uma necessidade básica de qualquer ser humano. Atualmente, tem havido muita polêmica a respeito disso, com vários vídeos de meninas trans sendo expulsas de banheiros públicos. Isso tem viralizado na internet. Tem toda uma discussão por causa disso. Muitas pessoas cis acham, tem essa ilusão, que, se for garantido o direito das pessoas trans de usarem os banheiros, homens cis vão assediar mulheres cis. Isso não tem que necessariamente acontecer. E, caso aconteça, não são as pessoas trans que devem ser punidas por causa das pessoas cis. Enquanto ficam nessa de proteger as mulheres cis dos homens cis, essas pessoas estão prejudicando as mulheres trans, estão fazendo com que sofram violências nos banheiros masculinos. Tem quem defenda que sejam criados banheiros específicos para pessoas trans, sendo que essa ideia é de segregação. Se isso for feito, só vai reforçar o preconceito contra as pessoas trans. Como uma pessoa não-binária, e eu vejo outras pessoas não-binárias na mesma situação, é justamente essa dualidade: um banheiro feminino e outro masculino. Tem lugares públicos nos quais há um único banheiro fechado e uma pia do lado de fora. O banheiro, mesmo não sendo compartilhado, ainda será dividido, um para homens e outro para mulheres. É desconfortável isso. No banheiro masculino, as pessoas têm medo de sofrer violência. No feminino, fica um negócio muito estranho para pessoas não binárias também. As pessoas cis nos olham e indagam: ‘você não é mulher, por qual motivo está aqui?’. Eu acho que seria muito importante que os banheiros não fossem separados por gênero, fossem apenas banheiros.
Portal da UFJF – São frequentes os casos de violência contra pessoas trans em banheiros públicos….
Sidney Aurum: “É uma coisa assustadora. Querem impor o uso do banheiro de acordo com o gênero designado ao nascimento, e isso desrespeita as pessoas trans”
Sidney Aurum – É pesado, complicado. É uma coisa assustadora. Querem impor o uso do banheiro de acordo com o gênero designado ao nascimento, e isso desrespeita as pessoas trans. Para evitar essa violência, muitas pessoas trans deixam de usar os banheiros públicos. Eu conheço muitas pessoas trans que têm problemas renais, no sistema urinário, por causa disso. A violência por conta do uso dos banheiros é uma coisa diária, que acontece a todo momento com as pessoas trans. É um direito básico usar o banheiro de acordo com a identidade de gênero, para fazer algo que todo ser humano precisa fazer, mas isso nos é muitas vezes negado.
Portal da UFJF – Fale-nos, por favor, um pouco sobre a não-binariedade.
Sidney Aurum – A sociedade na qual vivemos, historicamente, conhece dois gêneros: masculino e feminino. Às mulheres são atribuídas determinadas características como, por exemplo, nascer com uma vagina, usar brincos e a cor rosa. Os homens precisam nascer com pênis, jogar futebol, usar azul. É assim que a sociedade trata a questão, mas esses não são os únicos gêneros existentes. Existem vários outros gêneros que saem dessa dicotomia homem e mulher. Tudo o que está fora disso são os gêneros não-binários. Muita gente acredita que a não-binariedade é algo novo, é um modismo. Isso não é fato. Nas sociedades indígenas, por exemplo, antes da colonização, já havia cinco gêneros diferentes. É algo muito antigo que, devido à colonização européia, eurocêntrica, machista, patriarcal, acabou sendo apagado. Só que as pessoas não-binárias não deixaram de existir. Por conta disso, dessa tentativa de apagamento, muita gente nem sabe que a não-binariedade existe. Há muito desconhecimento sobre o assunto.
O Centro de Referência LGBTQI+ (CeR LGBTQI+) fica na Avenida Barão do Rio Branco 3.372, no Alto dos Passos.
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Outras informações: (32) 3218-6996 – Centro de Referência LGBTQI+