Segundo relatório do Fundo de População das Nações Unidas, as mulheres representam 70% dos profissionais na linha de frente na luta contra o coronavírus (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

“Estávamos lidando com algo desconhecido. Tínhamos medo também. A maioria das pessoas estavam pensando em trabalho remoto, e nós nos colocávamos fisicamente à disposição. Para nós, que somos enfermeiros, isso tem muito significado.” O relato da coordenadora de curso da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Érika Andrade, retrata um sentimento compartilhado por milhares de profissionais de saúde que, de um dia para o outro, tornaram-se peças principais no combate a um vírus letal e, até então, desconhecido.

Cuidar de pacientes infectados, administrar medicamentos em meio a um mar de incertezas, lidar com os colapsos do sistema de saúde e enfrentar o medo e a angústia dos familiares. Essa era a rotina enfrentada por muitos profissionais no combate ao vírus – uma realidade marcada pela predominância dos rostos femininos.

Segundo o relatório “Covid-19: Um Olhar para Gênero”, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA na sigla em inglês), no mundo, elas representam 70% dos profissionais na linha de frente na luta contra o coronavírus. No Brasil, conforme o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), 65% dos seis milhões de profissionais do setor são do sexo feminino – em áreas como fonoaudiologia, nutrição e serviço social elas ultrapassam 90% de presença, e são de 80% em enfermagem e psicologia.

É justamente esse o cenário da terceira reportagem da série especial “Mulheres que constroem a UFJF” – realizada pela Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf), Pró-Reitorias e demais Diretorias da Gestão Superior da UFJF: a atuação de profissionais que estiveram na linha de frente contra a pandemia da covid-19 e trabalharam ativamente na Universidade.

A coordenadora do curso de Enfermagem, Érika Andrade, foi responsável pela coordenação da vacinação no campus. (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

Uma dessas personagens é a própria Érika, mencionada no início da matéria. Ela foi responsável pela coordenação da vacinação no campus; ação realizada juntamente com a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF). No final da campanha, foram realizadas 53.263 aplicações de doses nos postos montados na instituição. 

De acordo com a pesquisadora, a participação da UFJF em colaboração com o município foi promovida devido à necessidade de fortalecer a mão de obra profissional para atuar na vacinação em Juiz de Fora, com o objetivo de aplicar o imunizante de forma mais rápida e segura. “O drive-thru surgiu nesse momento. Nós fizemos uma chamativa na Faculdade de Enfermagem, para que as pessoas se colocassem à disposição, sendo um grupo marcado predominantemente por mulheres, justamente porque o nosso curso já tem essa característica”, comenta. 

O período foi significativo para a docente não apenas em sua carreira profissional, mas também na vida pessoal: Érika descobriu que estava grávida. “Eu me esforcei para estar em todas as frentes. Para mim, como mulher, foi um momento muito marcante e difícil quando descobri a gravidez e precisei me afastar das atividade

s fisicamente. Havia essa contradição: estava experienciando a vida enquanto lutava contra uma doença e enfrentava a morte.”

Diante desse cenário, a professora ressalta a importância da mulher ter uma rede de apoio, especialmente em seu ambiente de trabalho, como foi o caso da Universidade. “Sentimos que, de alguma forma, estamos fortalecidas. Sabemos que a sociedade ainda enfrenta essas questões de gênero, mas nunca duvidamos de seguir em frente, porque estamos em um ambiente que compreende isso e nos apoia. Em certa medida, isso nos impulsiona, especialmente em uma sociedade ainda muito machista e patriarcal.”

Realização de testes 

A docente Vanessa Cordeiro esteve à frente do Centro de Estudos em Microbiologia (Cemic) durante a pandemia.
(Foto: Carolina de Paula/UFJF)

Além da campanha de vacinação, outra ação crucial realizada na UFJF foi a condução de testagens para a doença em dois laboratórios localizados no campus: o Centro de Estudos em Microbiologia (Cemic), no Instituto de Ciências Biológicas (ICB), e o Laboratório de Biologia Molecular da Faculdade de Farmácia.

“Essa iniciativa surgiu do desejo da Universidade de contribuir com a saúde pública do estado, conduzindo esses testes e aproveitando os recursos e os profissionais já capacitados da instituição”, explica a professora e coordenadora do Cemic enquanto centro colaborador, Vanessa Cordeiro Dias. 

Para a pesquisadora, o projeto deixou diversos legados, destacando-se a assistência à saúde. “Fornecer testes de qualidade de forma acessível durante a pandemia foi uma oportunidade para muitos que, de outra forma, não teriam condições de arcar com esses exames. Além disso, contribuiu para a formação de recursos humanos, tanto em iniciativas de pesquisa quanto de extensão e ensino. Em resumo, esses foram os principais legados desse projeto.”

Vanessa observa também que a condução dos testes de diagnóstico molecular da covid-19 durante a pandemia permitiu a colaboração entre servidores técnicos-administrativos em educação (TAEs) e docentes nos laboratórios, formando equipes mistas compostas por mulheres e homens, tanto no ICB, quanto na Faculdade de Farmácia. É uma evidência de que avanços foram alcançados por meio das lutas e reivindicações das mulheres no passado.

 “Ao longo desses 63 anos da UFJF, podemos observar que as mulheres estão cada vez mais conquistando espaços, não apenas no ensino, mas também na pesquisa, na extensão e até mesmo na assistência à saúde, como evidenciado recentemente nos laboratórios de diagnóstico da doença durante a pandemia e, agora, nos dois centros colaboradores em parceria com o governo do estado na realização de testes para diversas viroses de interesse público.”

Doutoranda e TAE da UFJF, Livia Silva, atuou na realização dos testes no Laboratório de Biologia Molecular da Faculdade de Farmácia. (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

Lívia Silva, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas (PPGCF) e TAE da UFJF, também contribuiu na realização dos testes no Laboratório de Biologia Molecular. A participação nos trabalhos derivou em sua pesquisa de doutorado, supervisionada pelo professor Frederico Pittella Silva, do PPGCF. O estudo envolve o desenvolvimento de um reagente para facilitar o diagnóstico da doença.  

Segundo a doutoranda, a motivação para o início do projeto surgiu no início da pandemia, quando havia uma alta demanda por testes e os kits de diagnóstico disponíveis eram importados e caros. “Então, surgiu a ideia de desenvolver um reagente próprio para extração de ácido nucleico, que se tornou parte do meu doutorado. Foram testadas 51 formulações até chegar à ideal.”

Atualmente, o reagente é comercializado e utilizado em outros laboratórios públicos, incluindo o de Biologia Molecular da Faculdade de Farmácia, para testes de dengue, zika, chikungunya, covid-19 e outros vírus respiratórios.

Atuação no Busco Saúde

Outra ação realizada pela UFJF foi a implementação de uma nova ferramenta no auxílio ao monitoramento dos sintomas: a plataforma Busco Saúde. O sistema foi desenvolvido pela coordenadora do Grupo de Modelagem Computacional Aplicada da UFJF, Priscila Capriles, em colaboração com outros pesquisadores.

Na visão de Sandra Tibiriçá, o monitoramento pelo Busque Saúde foi fundamental para um retorno seguro das atividades no campus. (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

A ferramenta foi desenvolvida com o propósito de facilitar o registro e monitoramento dos sintomas relacionados à doença, permitindo aos usuários entrarem em contato com profissionais qualificados por meio de canais de teleorientação. Além disso, a plataforma também desempenhou um papel crucial no encaminhamento e distribuição de pacientes aos locais de atendimento em seus respectivos municípios, com o objetivo de mitigar aglomerações e longas filas de espera.

Com base em informações obtidas junto ao Busco Saúde, a professora e coordenadora do Programa de Extensão de Educação Permanente para a Atenção Primária à Saúde (APS) e o Laboratório de Habilidades da Faculdade de Medicina da UFJF, Sandra Tibiriçá, coordenou, juntamente com a professora Marise de Oliveira, uma equipe de profissionais dedicada ao monitoramento de sintomas relacionados à COVID-19 na comunidade universitária, bem como ao registro de casos confirmados entre discentes, docentes, TAEs e terceirizados.

Na visão de Sandra, o monitoramento foi fundamental para um retorno seguro das atividades no campus e para oferecer apoio às pessoas que estavam doentes, muitas delas longe de casa. O objetivo da equipe era auxiliar os doentes, conforme os sintomas e, assim, direcioná-los para os equipamentos de saúde adequados. 

A pesquisadora ainda destaca a participação feminina neste projeto, formado majoritariamente por mulheres desde a sua criação. “Neste sentido, é possível observar que o Busco Saúde possui uma estrutura detalhada e cuidadosa, características que são muito valorizadas no universo feminino. Além disso, é interessante notar que, em uma pandemia como esta, com essa magnitude, as mulheres da Universidade não se esquivaram, mas sim enfrentaram a doença de frente para combatê-la”, observa Sandra.

Para Waneska Alves, participação feminina é fundamental para o fortalecimento do SUS (Foto: Reprodução de vídeo)

Parceria com secretarias de saúde
A professora do Departamento de Nutrição do campus avançado em Governador Valadares (UFJF-GV), Waneska Alexandra Alves, é outro exemplo de destaque à frente da pandemia. Desde 2008, Waneska atua no ensino da epidemiologia, inicialmente para o curso de Medicina e atualmente para os cursos de Nutrição, Odontologia e Farmácia. Sua dedicação à compreensão das dinâmicas de saúde pública a levou a mergulhar em projetos de pesquisa e extensão voltados para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), com foco particular na realidade local e regional.

A chegada da covid-19 trouxe novos desafios, e Waneska não hesitou em se envolver ativamente no combate à crise sanitária. Desde o início da pandemia, ela trabalhou em estreita colaboração com as autoridades de saúde municipais e estaduais, contribuindo para a elaboração de planos de contingência e apoiando o enfrentamento à doença por meio da análise de dados e formulação de estratégias de intervenção.

“Durante minha atuação no comitê de enfrentamento da pandemia, em colaboração com a Secretaria Estadual de Saúde, enfrentei desafios intensos e significativos. Isso incluía trabalhar sob pressão para analisar rapidamente os dados diários e fornecer informações para as reuniões frequentes que tínhamos. Foi um período de grande desgaste emocional e físico, tentando apoiar minha família enquanto atendia às necessidades emergentes da população que estávamos enfrentando, onde sabia que poderia contribuir e ajudar”, relembra Waneska. 

Após 11 anos de trabalho em Governador Valadares, a professora acredita que sua jornada a tornou mais resiliente e gerou um sentimento de determinação para persistir. Para Waneska, a qualidade do Ensino Superior e o fortalecimento do SUS são necessidades primordiais. A docente defende, ainda, que esse impulsionamento do sistema público de saúde deve contar com a participação feminina. 

“Quando penso nas perspectivas futuras, imagino um ambiente no serviço público de saúde que promova a equidade de gênero, onde as mulheres sejam ouvidas e respeitadas em seus sentimentos, pensamentos e ideias. Visualizo uma construção coletiva saudável, que respeite as diferenças e enfrente as desigualdades e iniquidades de gênero”, finaliza.

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