Nesta segunda-feira, a celebração do Dia da Visibilidade Trans comemora 20 anos no Brasil. Tempo de recordar as lutas e celebrar conquistas obtidas pela população trans, que continua a travar uma série de batalhas pelos seus direitos, contra o preconceito e contra a violência. A data é celebrada em 29 de janeiro porque, neste mesmo dia, no ano de 2004, foi realizado um ato político histórico liderado por ativistas trans. O evento foi realizado na Câmara dos Deputados, em parceria com o Ministério da Saúde. 

Celebração do Dia da Visibilidade Trans comemora 20 anos no Brasil, com avanço em direitos, mas muitas batalhas a serem travadas na educação, nas relações pessoais e em todos os setores da sociedade (Foto: Pixabay)

País que mais mata
No Brasil, 145 pessoas trans foram assassinadas em 2023. É o que mostra o dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado nesta segunda, 29. Desse total, 136 vítimas são travestis e mulheres trans/transsexuais e nove, homens trans e pessoas transmasculinas. Foi registrado um aumento de 10,7% em relação a 2022, com 131 assassinatos contabilizados. 

Ainda em 2023, foram catalogados dez casos de autoextermínio de pessoas trans em todo o território nacional. Segundo o dossiê da Antra, há subnotificação, devido à ausência de dados oficiais sobre as mortes de pessoas desse grupo. De acordo com o documento, em 2023, o Brasil foi o país que mais matou pessoas trans pelo 15º ano consecutivo. 

Direitos conquistados
Duas décadas depois do ato na Câmara dos Deputados, a população trans conquistou direitos. Entre eles, o uso do nome social em repartições públicas federais, estabelecido pelo Decreto 8.727/16. Candidatos trans a cargos políticos podem usar o nome social – recurso garantido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desde a eleição de 2018. Estudantes trans contam, desde 2014, com o mesmo direito, ao se candidatarem ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

A alteração do nome e do gênero na certidão de nascimento e outros documentos (processo chamado de requalificação civil) sem a necessidade de passar por cirurgia de redesignação sexual é um direito assegurado à comunidade trans por meio de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), aprovada em 2018. 

O Sistema Único de Saúde (SUS) passou também a garantir o direito à cirurgia e o tratamento de redesignação sexual para pessoas trans. 

Nome social
Nome social é a designação pela qual a pessoa transsexual ou travesti se identifica. Em sequência ao decreto do Governo Federal em 2016, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), por meio da Resolução 24/2019 do Conselho Superior (Consu), aprovou o uso do nome social na Instituição, além de outras medidas no âmbito universitário. 

O estudante recém-chegado à UFJF pode fazer o pedido de uso do nome social durante a matrícula. Já os veteranos podem fazer o requerimento por meio do site da Central de Atendimento (CAT). O pedido também pode ser realizado de forma presencial, na sede da CAT, localizada no prédio da Reitoria.

A resolução do Consu determina que, no espaço universitário, pessoas trans estão livres para usar os banheiros, vestiários e demais espaços de acordo com o gênero com o qual se identificam.  

Políticas de permanência
Para a militante na área de Direitos Humanos, Dandara Oliveira, as políticas voltadas à permanência de pessoas trans no ambiente universitário devem ser uma constante. 

Dandara Oliveira é a primeira TAE travesti preta da história da Universidade, além de socióloga e mestre em Serviço Social (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

“Eu acredito que a gente precisa de uma política multissetorial. Defendo que é necessária uma conversa com outros setores da UFJF, inserindo a comunidade trans nos debates. Precisamos ampliar o olhar e inserir na discussão a diversidade sexual e de gênero, de modo que se consiga educar toda a comunidade acadêmica e promover mais ações efetivas a respeito.” 

Dandara é servidora técnico-administrativa em Educação da Faculdade de Medicina da UFJF, sendo a primeira TAE travesti preta da história da Universidade, além de socióloga e mestre em Serviço Social, também pela instituição. Para ela, mesmo com os avanços conquistados pela população trans, existe uma cobrança em se adequar a um modelo cisgênero, uma vez que os corpos trans não são aceitos por completo.

“Existem essas cobranças. Tudo dentro dessa adequação à cisgeneridade. Eu acho que avançamos bem. Eu jamais sonharia estar aqui hoje quando eu tinha 20 anos. Cheguei a pensar que ia morrer com 30. Porém, eu consegui sonhar e ocupar esse e outros lugares. É importante que a sociedade venha a naturalizar os corpos trans, nos respeitar do jeito que somos.”

Acolhimento
O estudante de Enfermagem, Felipe Borges, está grávido de sete meses e vem sendo atendido pelo Hospital Universitário (HU-UFJF). Atualmente, é o único homem trans grávido a receber acompanhamento médico gestacional na unidade. O aluno é atendido por médicos, residentes e acadêmicos do curso de Medicina. 

“Tem sido muito bom. Eles têm me acompanhado bem de perto durante esse período da minha gestação e sempre me trataram com muito respeito, isso é muito importante e significativo para mim.” O desejo de ser pai sempre esteve presente na vida do jovem antes mesmo de passar pela transição. Em meio às dificuldades impostas pela transfobia existente na sociedade, Felipe Borges conta que vai ensinar seu filho a ter respeito e empatia. “Meu filho vai aprender que é necessário entender a realidade do próximo sem julgamentos. Vou ensiná-lo a defender as minorias, defender aquilo que eu sempre defendi a minha vida toda.”

“Eu diria que os nossos corpos estão presentes, mas eles são muito transparentes. Quando a gente traz questões mais pertinentes à nossa vivência, é algo tido como um desvio da norma, como se fosse uma coisa politizada.” (Gabina, estudante de mestrado em Artes, Cultura e Linguagens)

Gabina é estudante de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens (PPGACL). Ela começou a passar pelo processo de transição em 2022. A autoaceitação foi o primeiro passo – em meio à pandemia, a acadêmica teve disforia de gênero, processo em que a pessoa não se sente confortável com as características masculinas ou femininas de seu corpo. “Eu diria que os nossos corpos estão presentes, mas eles são muito transparentes. Quando a gente traz questões mais pertinentes à nossa vivência, é algo tido como um desvio da norma, como se fosse uma coisa politizada.” 

Mesmo com as dificuldades surgidas após o processo de transexualização, a receptividade e o acolhimento existentes na UFJF fizeram Gabina se sentir pertencente e integrada ao espaço. “Passei bastante tempo pensando se era ou não uma pessoa trans. Foi um período muito pesado. Depois que eu cheguei à conclusão de que sim, a transfobia internalizada acaba mudando de sentido. Comecei a fazer todos os procedimentos necessários e fui muito bem acolhida aqui”, conta a aluna, que pretende ser professora. 

Limites socioculturais
Por sua vez, o estudante Rodrigo Silva (nome fictício usado para preservar a privacidade da fonte que não quis se identificar) é atendido pelo Falatrans, projeto de extensão da UFJF voltado ao atendimento psicológico de pessoas travestis e transexuais. Segundo o aluno, receber o atendimento tem significado se entender e se posicionar em relação à sua identidade de gênero. Ele avalia que as pessoas trans precisam lidar com diversos limites socioculturais e aprendizados sobre outras formas de ser e viver.

“Espero que profissionais envolvidos no ambulatório de acolhimento de transexualização e nas pesquisas acadêmicas sobre transgênero estejam engajados politicamente para somar forças em mudanças legislativas que impactam o direito do ser humano ao próprio corpo e os direitos da mulher em poder decidir se é o momento certo ou mesmo se quer ter filhos e qual ou quais procedimentos quer fazer, independente de mudança de gênero.”

Além disso, defende a realização de palestras sobre alterações hormonais como forma de tirar dúvidas de pessoas que estão iniciando a transição, além de aproximar o público geral da vivência de pessoas trans. Para o acadêmico, outra medida necessária é a criação de uma disciplina sobre a temática na Universidade.  “Idealmente, acredito que a criação de uma disciplina específica que promova a integração e conscientização da diversidade pode ser um caminho para mitigar os riscos, o preconceito e a ansiedade relacionada aos desafios da transição.”

Serviços e projetos da UFJF

Jude Oliveira, integrante do GT Trans, que luta por um movimento social dentro da Universidade voltado para a luta pela inclusão da população trans (Foto: Arquivo pessoal)

Uma gama de projetos voltados à comunidade trans é oferecida no âmbito da UFJF. O Falatrans tem o objetivo de oferecer atendimento psicológico e psicanalítico gratuitos a pessoas trans e é formatado como um espaço de escuta e de fala. O projeto é direcionado à população trans de Juiz de Fora e região e desenvolvido no âmbito do Departamento de Psicologia da UFJF. 

Os atendimentos são realizados no Centro de Psicologia Aplicada (CPA), localizado no Instituto de Ciências Humanas (ICH). Para agendar uma sessão, é preciso entrar em contato com o CPA por telefone, deixar o nome e o contato. Posteriormente, um dos integrantes do projeto retornará a ligação para agendar o início do atendimento. O telefone do CPA é (32) 2102-3121. 

Já o Hospital Universitário (HU-UFJF-Ebserh) possui atendimento especializado no processo transexualizador. O HU conta ainda com procedimentos nas modalidades ambulatorial e hospitalar. Os pacientes recebem consultas multiprofissionais e médicas, prescrição de hormonioterapia, exames laboratoriais e de imagem. Dentre as cirurgias oferecidas, estão a histerectomia (remoção do útero), ooforectomia (remoção de um ou dos dois ovários), construção de neovagina – em conjunto com a equipe de Urologia, mamoplastia de aumento, mastectomia, entre outros. 

A equipe de multiprofissionais é formada pelas áreas de Enfermagem, Psicologia, Assistência Social, Fisioterapia, Ginecologia, Urologia, Endocrinologia, Cirurgia Plástica e Psiquiatria. Para ter acesso ao serviço, é preciso que a pessoa seja primeiramente atendida em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). O profissional que fizer esse atendimento pode encaminhar o paciente para a marcação na agenda de acolhimento do Ambulatório de Diversidade de Gênero no HU-UFJF. 

O Grupo de Trabalho Trans (GT Trans), por sua vez, é um projeto formado por alunos com o propósito de levar as demandas da comunidade trans dentro da UFJF para toda a Instituição. De acordo com um dos integrantes do GT Trans, Jude Oliveira, a intenção é construir um movimento social e estudantil dentro da Universidade voltado à luta por melhores condições de inclusão e permanência da população trans na UFJF.

“Queremos buscar os nossos direitos com Reitoria, departamentos, diretórios acadêmicos (DAs) e Diretório Central dos Estudantes (DCE), para que a gente possa mostrar que estamos presentes na Universidade para lutar pelas condições de inclusão e permanência.”

Educação
Recentemente, uma reunião foi realizada entre membros do GT e a Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf). Durante o encontro, foi firmado um compromisso de que as demandas da comunidade trans seriam discutidas em conjunto para que ações de enfrentamento e combate à transfobia cheguem aos demais setores da UFJF, como forma de levar educação sobre o tema para toda a comunidade acadêmica. Os encontros entre o GT e a Diaaf serão realizados periodicamente.

A Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf) conta com a Ouvidoria Especializada para o recebimento de denúncias relacionadas à transfobia ou quaisquer outros tipos de discriminação. A Diaaf é um espaço voltado à promoção de condições para favorecer o acolhimento, a inserção e a permanência de estudantes e trabalhadores LGBTQIAPN+ na UFJF.  É possível entrar em contato com a Ouvidoria Especializada, pelo e-mail ouvidoriaespecializada.diaaf@ufjf.br ou pela Plataforma Fala-Br. A Ouvidoria também realiza atendimentos presenciais e fica localizada na sala 122 do prédio da Reitoria da UFJF. Confira outras informações na página do órgão

Outra iniciativa é o Centro de Referência LGBTQI+ (CeR-LGBTQI+), programa de extensão da UFJF que trabalha com diferentes eixos. Os principais deles são a promoção de apoio psicossocial e jurídico a vítimas de violência e a facilitação do acesso ao processo transexualizador. O Centro ainda conta com um um trabalho informativo em redes sociais e escolas e com a realização de seminários e eventos. O projeto funciona presencialmente na Casa Helenira Rezende (Helenira Preta), da Faculdade de Serviço Social (antigo anexo da Casa de Cultura da UFJF), onde atualmente é a Escola de Artes Pró-Música, na Avenida Barão do Rio Branco, 3372. O telefone de contato é (32) 2102-6314.

Outras informações
Centro de Referência LGBTQI+ (CeR-LGBTQI+) – Site e Instagram
Ambulatório de Diversidade de Gênero – HU-UFJF
Falatrans
Grupo de Trabalho Trans (GT Trans) da Faculdade de Serviço Social
Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas