Lembrado como sinônimo de luta pela liberdade de expressão e pela possibilidade de que os corpos sejam livres dos estigmas sociais, no mês de junho é comemorado o Dia do Orgulho LGBTQIAPN+. Para celebrar a diversidade, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) conversou com alguns mestrandos e doutorandos que pesquisam sobre temáticas relacionadas à comunidade para ampliar os diálogos dentro da Instituição.

O Dia do Orgulho LGBTQIAPN+ – criado e celebrado em 28 de junho em homenagem a um dos episódios mais marcantes na luta da comunidade pelos seus direitos: a Rebelião de Stonewall Inn, em 1969 – trouxe avanços em relação à causa no mundo todo, mas ainda há muito a ser feito sobre oportunidades, educação, saúde e políticas públicas de assistência a essa parcela da população.

No Brasil, entre os anos de 1830 e 2000, em âmbito federal, havia apenas cinco leis que tratavam da temática, entre elas, a que deixou de tratar a homossexualidade como doença.

Com a chegada dos anos 2000, a legislação passou a abranger mais grupos e repensar questões como, por exemplo, a adoção de crianças por pais e mães homossexuais, a permissão para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, os preconceitos contra os LGBTQIAPN+ passaram a ser considerados crimes – mesmo que seja enquadrado junto à lei de racismo, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a oferecer gratuitamente a operação de redesignação de sexo, entre outras mais de 30 leis federais que buscam paridade e inserção da comunidade no campo social.

Apesar do avanço na legislação, muitas causas ainda não foram ganhas pela comunidade LGBTQIAPN+ no contexto brasileiro, em decorrência do conservadorismo de grande parcela da população, que tem ganhado mais vozes no cenário político. Segundo o relatório divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2022, pelo décimo quarto ano seguido, o Brasil continua ocupando o primeiro lugar no desrespeito e na violência contra pessoas trans.

Além disso, dossiê do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, divulgado em 2023, aponta que uma pessoa LGBTI+ foi assassinada a cada 32 horas no Brasil.

“Em 2020, o total de mortes LGBTI+ registradas pelo observatório foi de 237, em 2021 foi de 316, e em 2022, foram 273 casos de crimes de ódio. Mas é importante ressaltar que, apesar desse número já representar a grande perda de pessoas, apenas por sua identidade de gênero e/ou orientação sexual, temos indícios para presumir que esses dados ainda são subnotificados no Brasil. Afinal, a ausência de dados governamentais e a utilização de informações disponíveis na mídia apontam para uma limitação metodológica de nossa pesquisa”, destaca o relatório.

Em um cenário de tantos estigmas, a campanha “Eu estudo LGBTQIAPN+…”, produzida pela UFJF, tem o objetivo de compreender como a educação e as oportunidades se tornam possibilidades para que as reivindicações por reconhecimento, direitos e uma forma para que Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Travestis, Queers, Intersexos, Agêneros e Assexuais, Pansexuais e Não Bináries se encaixem (ou não) em uma forma de se viver no mundo.

Entre os trabalhos desenvolvidos na UFJF, as pesquisas variam e abordam temas como a participação de pessoas intersexuais no esporte, os corpos LGBTs no sistema prisional de Minas Gerais, os vestires lésbicos e bissexuais, a representação e a representatividade de pessoas LGBTQIAPN+, as trajetórias e avanços relacionados à inserção de pessoas transgêneras na sociedade, memórias de pessoas queer durante a pandemia, entre outros assuntos que convergem em direção às vivências e experiências de membros da comunidade.

Nathalia: Partindo do entrelaçamento dos estudos da moda com teorias de gênero, a pesquisa explora o tensionamento da moda enquanto tecnologia de gênero e das práticas de vestir como ferramentas de resistência. (Foto: Carolina de Paula)

Vestires e memórias

Entre as pesquisas desenvolvidas na UFJF, muitos questionamentos se fazem presentes, por exemplo, como lésbicas e mulheres bissexuais se vestiram na história para contribuir para a preservação da memória de modos de vida LGBTQIAPN+ e de suas práticas criativas de existência e resistência no Brasil.

O projeto “Histórias de vestires sáficos: espaços de sociabilidade e construção da aparência”, desenvolvido pela doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens (PPGACL), Natália Epaminondas, observa as imbricações entre gênero e sexualidade na construção da aparência e do vestir de pessoas com práticas sáficas na história recente. “Será baseado em diálogos com interlocutores autoidentificadas no espectro sáfico (lésbicas, bissexuais e outras identidades correlatas) na faixa etária de 55 anos ou mais, se possível acompanhados de seus acervos fotográficos pessoais.”

Partindo do entrelaçamento dos estudos da moda com teorias de gênero, a pesquisa explora o tensionamento da moda enquanto tecnologia de gênero e das práticas de vestir como ferramentas de resistência.

“Esta pesquisa intenciona apontar caminhos de enriquecimento da discussão sobre os mecanismos de produção de gênero no Brasil, além de oferecer instrumentos para os estudos brasileiros de moda e da história do vestuário, com o fim de complexificar e enriquecer suas narrativas com mais pontos de vistas e mais materiais produzidos por narrativas não hegemônicas”, ressalta a pesquisadora.

Além disso, Natália ainda aponta que apesar de haver um número considerável de pesquisas nas áreas de ciências humanas e sociais sobre histórias de grupos de lésbicas no Brasil, não foram encontrados estudos focados na importância das aparências e do vestir para tais grupos, bem como seus experimentos com feminilidades e masculinidades que tensionam os limites das concepções de gênero no país.

Intersexo

Segundo uma estimativa de 2017, do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), entre 0,5 e 1,7% da população mundial é intersexo, o que pode significar até 3,5 milhões de pessoas apenas no Brasil, percentual que se assemelha ao de pessoas ruivas no país. Tais dados fizeram com que a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Bruna Chaves, se interessasse pelo tema.

Bruna Chaves questiona, por meio de sua pesquisa, a presença de pessoas intersexo no esporte, tendo como foco contribuir na luta dessa população por visibilidade e reconhecimento dentro da sociedade (Foto: Carolina de Paula)

Apesar de não ser membro da comunidade LGBTQIAPN+, Bruna questiona, por meio de sua pesquisa, a presença de pessoas intersexo no esporte, tendo como foco contribuir na luta dessa população por visibilidade e reconhecimento dentro da sociedade, e mais especificamente, no desporto.

No desenvolvimento da pesquisa “Pessoas intersexo e os esportes amador de alto rendimento”, a doutoranda explica que o termo intersexo é usado para designar variedades de condições congênitas em que a anatomia, em suas múltiplas camadas – genitais, gonadais, hormonais, cromossômicas e moleculares – não se conformam com o padrão de masculinidade e feminilidade entendidos como típicos para homens e mulheres. “Essas variações intersexuais são chamadas de Diferenças do Desenvolvimento Sexual (DDS) e podem ser descobertas em diferentes fases da vida”, explica Bruna. Outras informações sobre pessoas intersexo podem ser encontradas na Associação Brasileira de intersexo (Abrai).

História de existência e resistência

Maurício: “Memórias das queerentenas: narrativas de vidas LGBTQIA+ de (re)existência e resistência na pandemia de Covid-19 no Brasil” busca compreender como experiências da pandemia de Covid-19 são rememoradas por pessoas LGBTQIA+ (Foto: Carolina de Paula)

Entre os pesquisadores engajados na temática, o doutorando do Programa de  Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom), Maurício João Vieira Filho, tem estudado as discussões sobre gênero, sexualidade e corpos, a partir do ponto de vista comunicacional, como forma de questionar marcadores sociais com base nos acionamentos teórico-políticos da teoria queer

Durante a construção da tese intitulada “Memórias das queerentenas: narrativas de vidas LGBTQIA+ de (re)existência e resistência na pandemia de Covid-19 no Brasil”, Vieira Filho busca compreender como experiências da pandemia de Covid-19 são rememoradas por pessoas LGBTQIA+ ao narrar a própria vida e que sentidos são atribuídos por elas para questões de gênero e sexualidade no contemporâneo. “O interesse em desenvolver essa tese começou em meio ao luto por quase 700 mil brasileiras e brasileiros que morreram em razão das complicações da Covid-19, vítimas da negligência governamental.”

Entre as motivações para a construção da pesquisa, o doutorando considera as vulnerabilidades que se enrijeceram junto às condições de precariedade, o que agravou as dificuldades na vida dos membros da comunidade, como, por exemplo, problemas financeiros, falta de redes de sociabilidade, opressões dentro de casa, dificuldades de acesso ao ensino, à educação e à saúde, entre outros marcadores.

“Eu pesquiso questões LGBTQIAPN+ porque a pandemia de Covid-19 agravou as desigualdades para as pessoas. Estudar as narrativas escritas por elas nesse momento permite perceber como as reivindicações por reconhecimento são demarcadas e como as normas de gênero e sexualidade — e tantas outras que atravessam quem somos — tentam constantemente atribuir como se deve ser e viver no mundo”, pontua.

O doutorando ainda destaca que é imprescindível evidenciar os obstáculos do isolamento social para a comunidade LGBTQIAPN+ e tudo o que foi vivido com a Covid-19. “Estudar esse tema é difícil, mas é um meio de construir redes de potência política e de articular insurgências para problematizar as relações de poder.”

Representação e representatividade

Breno Motta traz um novo olhar sobre em que medida a presença de corpos LGBTQIAPN+ e outros e outras teria influenciado mudanças na forma de tratamento das discussões em torno de sexualidade e gênero em um atração televisiva. (Foto: Arquivo pessoal)

Na contemporaneidade, os conceitos de representação e a representatividade LGBTQIAPN+ têm ganhado espaço em muitas pesquisas e discussões que permeiam os olhares das Ciências Humanas e das Sociais Aplicadas. Diante de um novo cenário, contemplado por corpos, cada vez mais políticos, o mestrando pelo PPGCom, Breno Motta, traz um novo olhar sobre em que medida a presença de corpos LGBTQIAPN+ e outros e outras teria influenciado mudanças na forma de tratamento das discussões em torno de sexualidade e gênero em um atração televisiva.

A pesquisa também traz novos contornos, quando aponta que o programa de TV “Amor & Sexo” criou pontes com a academia universitária ao convidar professores e pesquisadores de instituições públicas de ensino para debater pautas como feminismo, racismo, LGBTQIA+fobia e lançar um olhar mais atento para os grupos ditos como minoritários. “Considero que a minha dissertação é uma maneira de lançar luz à cultura da grande mídia, que pode (e deve) oferecer material que contribua para que as pessoas (re)construam seu senso de classe, de etnia, de raça, de nacionalidade, de sexualidade, de gênero”, enfatiza o mestrando.

Vivências de Transexualidade

“No mestrado resolvi me jogar em um campo de pesquisa que, desde a infância, sempre me intrigou: as vivências da transexualidade. E, deixo isso explicado já na introdução da dissertação, como isso me instigava e me tocava desde criança”, explicou o recém-mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Samuel Moreira de Araujo.

De acordo com uma pesquisa desenvolvida pela Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp), cerca de 1,9% da população adulta brasileira, ou aproximadamente 4 milhões de pessoas, são transgênero e não binárias, o que representa um quantitativo significativo e a construção de uma nova configuração de sociedade. Nesse cenário, a pesquisa As trajetórias escolares de homens trans: da educação básica ao ensino superior teve como motivação conhecer  histórias de homens transexuais de Juiz de Fora e suas vivências ao longo da Educação Básica, nas aulas de Educação Física. 

De acordo com Araujo, a pesquisa mostrou muito mais que somente o contexto dessas aulas, questões sobre nome social, trabalho, banheiro, família, entre outros indicadores. “A dissertação contribuiu para nossa cidade no sentido de mostrar que a realidade de Juiz de Fora não é diferente da maioria do país: a transfobia segue marcando negativamente as vivências escolares dos homens trans. Tivemos avanços em políticas educativas, mas não em sua aplicação e, em alguns casos, grande desconhecimento dos atores educacionais.”

Corpos públicos

Partindo de um ponto de vista de retrocessos sobre direitos humanos no Brasil, em decorrência das políticas de austeridade cunhadas na manutenção da acumulação capitalista, a mestranda em Serviço Social, Sidnelly de Almeida, busca compreender como tem se desenvolvido a política penal brasileira voltada a dissidentes sexuais e de gênero.

A investigação “Corpos Públicos: Por uma analítica da política LGBTQIA+ no sistema penal” analisa a ocorrência de dez óbitos e os mais de sessenta casos de automutilação e tentativas de autoextermínio de pessoas LGBTQIAPN+ na Penitenciária de São Joaquim de Bicas I – popularmente conhecida como Jason Albergaria -, que a partir de julho de 2021 se tornou exclusiva para essa parcela da população privada de liberdade no estado de Minas Gerais.

“A população LGBTQIAPN+ tem sido um dos grupos mais vulneráveis mediante tais retrocessos, na interseccionalidade entre raça, gênero, sexualidade e a privação de liberdade.” E segundo a pesquisadora, a pandemia da Covid-19 intensificou e explicitou “as mazelas institucionais que impactam diretamente a qualidade de vida e a sobrevivência dessa parcela da população”.

Além disso, a mestranda destaca que o trabalho busca provocar novos olhares sobre a privação de liberdade de grupos vulneráveis social e economicamente, possibilitando a emergência de novas perspectivas para atuação junto a pessoas que cometeram algum tipo de crime.

“Não somos corpos públicos, em que o estado possa deixar acontecer o que quiser. É mais que enfrentar o óbito em si, mas confrontar o abandono, a falta de itens básicos e do respeito à identidade e a orientação sexual. Ainda há as muitas violências legitimadas no nosso dia a dia, por isso temos que problematizar a categoria suicídio, principalmente em instituições que nos induzem ao sofrimento extremo o tempo todo”, pontua Sidnelly.

Miss Brasil Gay

Já o mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens (PPGACL), Paulo Rodrigues, pesquisou como o Miss Brasil Gay, existente há mais de 40 anos em Juiz de Fora, foi idealizado pelo cabeleireiro Chiquinho Mota. Durante a dissertação, buscou problematizar como as identidades sexuais e de gênero são construídas no concurso a partir das aparências, das roupas, perfumes, maquiagens, perucas e outros acessórios.

A dissertação Miss Brasil Gay Juiz de Fora: os trajes típicos e suas mulheres imaginadas de 2017 a 2019 traz informações sobre como o evento foi retratado durante o período de análise, mas também tenta compreender, a partir da ideia de “montação” – termo utilizado dentro da comunidade LGBTQIAPN+ -, as referências e como são construídas as imagens de bichas e travestis.

Atualmente, o pesquisador faz doutorado sanduíche na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e observa como a cultura LGBTQIAPN+ brasileira é percebida pela comunidade portuguesa.

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