Mais de quatro décadas depois da experiência em Tefé, no estado do Amazonas, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) encarava mais uma jornada de disseminação do conhecimento e estímulo ao desenvolvimento regional. No final de 2012, a instituição desembarcava em Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, para iniciar as atividades do segundo campus avançado de sua trajetória.
Só que a história de uma universidade federal na cidade começa bem antes. Uma instituição de ensino superior gratuita era um sonho antigo dos valadarenses, que em 1989 quase se tornou realidade. É que naquele ano foi promulgada a constituição do estado, que criou a Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). A expectativa é que um campus fosse criado em Governador Valadares, mas conforme narra o servidor Ivan Bretas em sua dissertação de mestrado sobre o campus, “uma série de disputas políticas” acabaram levando a universidade para Montes Claros.
O desejo de uma universidade pública na cidade voltou a ganhar fôlego em 2003, mas se intensificou mesmo com a criação, em 2007, do Programa de Apoio à Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), ao qual a UFJF aderiu no mesmo ano. O Reuni previa mais recursos para as instituições públicas de ensino superior, destinados principalmente à ampliação de vagas.
A partir daí começou uma verdadeira maratona de reuniões e negociações que duraram cerca de cinco anos e resultaram na aprovação da proposta do campus avançado pelo Conselho Superior (Consu), em fevereiro de 2012. Em novembro do mesmo ano, a UFJF abria as portas pela primeira vez em Governador Valadares a 750 estudantes, distribuídos em nove das dez graduações que compõe a configuração atual do campus [à época, ainda não havia o curso de Educação Física, que só foi criado em 2014]. Junto com esses alunos vieram também 27 professores e seis técnicos administrativos.
Os primeiros estudantes a gente nunca esquece
As valadarenses Jenniffer Beatriz da Costa Machado e Natália Oliveira Dias estavam entre as centenas de jovens que adentraram pela primeira vez as salas de aula do campus. Ambas cursaram Ciências Econômicas e se tornaram as primeiras profissionais formadas pela instituição na cidade.
Machado, que hoje é empreendedora, conta que a UFJF-GV foi vital em sua trajetória. “Assim como eu, muitas pessoas não tinham e ainda não têm condições de arcar com o custo de uma faculdade particular, que é muito alto”. Por isso, segundo ela, uma universidade pública na cidade representou a “oportunidade de realizar o sonho de concluir o ensino superior e ainda em uma instituição de qualidade”.
Oportunidade também é a palavra que define a importância da UFJF-GV para Dias. Na opinião da egressa, que hoje é servidora pública, a implantação do campus serviu para “diminuir a desigualdade na região”, já que muitos deixam de ingressar em uma universidade por motivos como a distância em relação à família e dificuldades para custear as despesas com a graduação, o que foi o caso dela. “A UFJF foi minha chance de alcançar meu curso superior, pois meus pais não tinham condições de pagar o curso para mim”, explica Dias.
O médico Roni Duque é um dos 34 egressos da primeira turma de Medicina, que colou grau em setembro de 2018. Morador de Governador Valadares, ele sabe muito bem a importância da universidade no leste mineiro. “A nossa expectativa enquanto cidadão era e continua sendo grande em relação a existência de uma instituição pública de qualidade na região do leste de Minas Gerais. Afinal, foi talvez a única região em que, àquele tempo, ainda não havia uma universidade pública além das proximidades da capital, o que produzia grande evasão de poder intelectual, econômico e social para os grandes e tradicionais polos de educação do estado e país. Todos os cursos de preparação para vestibular e ensino médio eram voltados para exportar estudantes para outras cidades e durante muito tempo essa foi a realidade da nossa cidade e região”, explica.
Ainda segundo Duque – que atualmente trabalha em uma das unidades de estratégia de saúde da família do município – são visíveis os avanços provocados pela universidade em Governador Valadares. “Foi e continua sendo fantástico olhar e perceber como nossa cidade mudou e irá mudar com o campus. Os benefícios não se limitam apenas àquela lógica de ‘não precisar sair de casa’, mas a todo o avanço cultural, social e econômico que agora todo o valadarense faz parte e que durante muito tempo ficou estagnado em nossa cidade. Nada é mais o mesmo, e tenho certeza que mudou pra melhor, somando às instituições que aqui já existiam e acrescentando tudo o que somente uma universidade federal pode trazer para uma cidade tão carente de conhecimento, massa crítica e desenvolvimento socioeconômico e cultural”, frisa o médico.
Servidores pioneiros
O professor do Departamento de Ciências Contábeis, Geová José Madeira – falecido em agosto deste ano – sempre se orgulhou de ser o primeiro docente do campus a tomar posse. Em um depoimento concedido para o documentário “6 anos da UFJF-GV na visão dos pioneiros”, lançado em novembro de 2018 pelo projeto História em Movimento [responsável pelo acervo histórico do campus], ele falou sobre os anos iniciais na universidade:
“Eu tenho muito orgulho em dizer isso sempre para os meus alunos em sala de aula. Tive que sair daqui para buscar conhecimento na capital e, por ironia do destino, em 2012, eu volto para a região trazendo na minha mala um projeto de uma universidade pública e de qualidade, porque apesar de sermos um campus em desenvolvimento nós somos precursores de uma instituição já estabelecida, em pleno funcionamento, com muita qualidade e com muita competência. Eu tenho muito orgulho de fazer parte desta equipe de pioneiros”, afirmou Madeira.
Quem também estava nesse primeiro grupo de professores empossados era Ângelo Márcio Leite Denadai. Com raízes em Governador Valadares, ele concluiu a graduação em uma faculdade particular da cidade, mas teve que se mudar para dar sequência à sua formação. Por isso, recebeu com muito otimismo a notícia da implantação de uma universidade pública na cidade, já que dava para unir duas coisas: voltar para perto da família e contribuir para a formação de outros profissionais da região. E ao longo desses oito anos ele viu centenas de jovens deixarem os bancos universitários direto para o mercado de trabalho. E assistiu também ao que ele qualifica como uma “reviravolta” no ensino superior na cidade:
“O campus promoveu uma profunda mudança no município. A universidade federal, somada ao instituto federal, contribuiu para promover uma reviravolta no que diz respeito ao ensino na cidade. Surgem inúmeras possibilidades, tanto para os nossos estudantes, pois colocamos novos profissionais no mercado, quanto para o próprio mercado, que fica mais capacitado para atender as demandas locais”, pontua Denadai.
O docente também destaca os efeitos positivos da UFJF na economia local. “Temos uma alteração na dinâmica do município, que tem que se adaptar para receber esse volume de pessoas [referindo-se a estudantes e servidores que vieram de outras regiões para Governador Valadares por conta da universidade]. E o comércio cresceu muito, o mercado imobiliário cresceu muito, a construção civil, o comércio de um modo geral. Eu conheci duas Valadares: uma antes e uma depois da universidade”, afirma.
Ana Maria dos Santos Moreira é a primeira técnica de laboratório do campus. Ela tomou posse com outros cinco servidores que compõem o grupo dos primeiros TAEs a ingressarem na UFJF-GV. “A universidade sempre foi um sonho para os valadarenses. Quando se falou na possibilidade da UFJF vir para Governador Valadares muitos não acreditaram que isso fosse acontecer. Eu acreditei e quis fazer parte desta conquista”, afirma Moreira.
Só que além de compor o quadro de servidores da universidade que, nas palavras dela, “trouxe possibilidades, crescimento e abriu portas para o futuro de muitos jovens” da região, a TAE ainda tem mais motivos para comemorar. É que graças à instituição que ela tem ajudado a se consolidar em Governador Valadares, dois sobrinhos de Moreira têm a oportunidade de “fazer o curso superior com qualidade e gratuito na própria cidade”. Eles cursam nutrição e medicina no campus.
As primeiras pesquisas e projetos de extensão
Quando assumiu o cargo de professor na UFJF-GV, Ângelo Denadai trouxe na bagagem um projeto já aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e que se tornaria a primeira atividade de pesquisa científica desenvolvida no campus. Trata-se de um dispositivo para descontaminação de ambientes aquáticos que posteriormente se mostraria muito útil na remoção do minério de ferro presente no Rio Doce por conta do rompimento da barragem de Mariana.
Para as experiências do projeto de Denadai, a universidade precisou adquirir um reator em um medidor de partículas, equipamentos que constituíram a base da infraestrutura de pesquisa do campus, sendo amplamente utilizados até hoje em várias outras iniciativas científicas.
Já as ações voltadas para a comunidade do Vale do Rio Doce começaram a ser implementadas em 2013. No início daquele ano, cerca de 15 projetos inauguraram a extensão do campus. Reinaldo Duque Brasil Landulfo Teixeira foi um dos primeiros extensionistas da UFJF-GV, com um trabalho voltado para segurança alimentar e agricultura urbana. O professor, que também fez parte daquela primeira turma de docentes do campus, conta que “mesmo antes de registrar o projeto já estava em campo conhecendo as comunidades, fazendo contato com lideranças locais e em reuniões com movimentos sociais e entidades da agricultura familiar”.
De lá para cá, Teixeira já desenvolveu uma série de outras iniciativas de extensão, todas elas com foco na preservação ambiental e na divulgação da cultura e saberes dos povos tradicionais da região, como indígenas e ribeirinhos.
Principais desafios e perspectivas
“O desafio de gerir um campus fora de sede é enorme”, garante Peterson Marco de Oliveira Andrade. Professor do Departamento de Fisioterapia, desde maio de 2015 ele atua como diretor-geral da UFJF-GV – inicialmente na condição pro tempore, substituindo o antigo ocupante do cargo, Flavio Iassuo Takakura; em seguida, eleito para a função; e atualmente pro tempore novamente.
A principal dificuldade, na avaliação de Andrade, é a falta de uma estrutura física própria. As obras de construção no terreno onde inicialmente seria instalado o campus estão paralisadas e sem qualquer previsão de retomada. Por conta disso, a universidade é obrigada a funcionar em imóveis alugados espalhados por vários locais da cidade, compartilhando espaços com outras instituições.
Apesar da questão da infraestrutura, o diretor garante que ao longo desses “oito anos de luta de muita gente” foram grandes os avanços em termos de estrutura administrativa, organização de processos e, principalmente, formação de equipes. “Tínhamos um campus com servidores sem experiência. Isso já não ocorre hoje, pois já avançamos em vários aspectos e ainda ajudamos o campus sede em algumas frentes de trabalho. Ou seja, já atuamos em uma relação recíproca de cooperação”, explica.
Todos esses avanços, claro, geram reflexos na qualidade do serviço prestado pela universidade. “Sou testemunha do desenvolvimento do campus nestes oito anos. Observei muitos avanços e presenciei muitas conquistas dos estudantes, professores e técnicos em várias ações, desde as notas do Enade até premiações nacionais e internacionais pela comunidade acadêmica”, comemora Andrade.
O sentimento é o mesmo do egresso Roni Duque. “Foram e continuam sendo grandes os desafios para a melhor estruturação e posicionamento do nosso campus no estado e no Brasil. Mas a UFJF-GV já avançou muito desde que me formei e tenho certeza que, com o corpo acadêmico que lá permanece, irá avançar ainda mais. Temos a responsabilidade de apoiar, sustentar e batalhar constantemente para que o sonho da uma instituição pública de qualidade possa continuar sendo uma realidade ainda melhor para as próximas gerações de Governador Valadares e região”, destaca.
Sobre as dificuldades enfrentadas pelo campus, o saudoso Geová Madeira era enfático. “Nada melhor do que olhar no retrovisor. Ele existe para mostrar que você está indo para frente e que para frente está muito melhor do que aquilo que você já deixou lá atrás”.
E o que a gente enxerga quando olha para trás é um caminho de muito sucesso, que já resultou na formação de quase 700 estudantes. Isso sem falar nos mais de três mil jovens oriundos de cerca de trezentos municípios brasileiros que frequentam os cursos de graduação do campus atualmente em busca do tão sonhado ensino superior.
Além disso, ao longo desses oito anos, o campus ainda conseguiu implementar cinco programas de mestrado e dois de doutorado, formando, como bem definido pela professora Lúcia Fraga, “os primeiros doutores da terra, na terra”.
Aqueles 15 projetos de extensão aprovados no início de 2013 já somam quase cem, beneficiando moradores de pelo menos 37 bairros de Governador Valadares. A população, aliás, é a principal beneficiada pela universidade por meio do acesso gratuito a serviços como as clínicas de Fisioterapia e Odontologia, o Núcleo de Práticas Jurídicas, a Farmácia Universitária e o Núcleo de Estudos Econômicos.
E para contornar o problema da falta de uma estrutura física própria, a UFJF tem se empenhado na aquisição e construção de novos espaços. Em dezembro de 2018, a universidade comprou o prédio onde funcionava uma faculdade particular de Governador Valadares. E no bairro Santa Rita, um imóvel de quase três mil metros quadrados, cujas obras estão em andamento, vai abrigar as atividades dos cursos de Farmácia e Nutrição. Em outra região da cidade, no São Pedro, um imóvel vai acomodar o Departamento de Ciências Básicas da Vida (DCBV).
Isso é apenas um pouco do que enxergamos no retrovisor. Mas a viagem continua. Então é hora de olhar para frente e acelerar, porque ainda tem muita estrada de uma educação pública e de qualidade a ser percorrida.