Os versos da cantora, compositora e artivista preta Bia Ferreira que abrem esta matéria ganham força com os depoimentos de egressos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que tiveram suas histórias ligadas à implementação das políticas de ações afirmativas. No primeiro semestre de 2006, Rafael Pereira da Silva tinha 22 anos e entrou  no curso de Jornalismo da UFJF pelas cotas voltadas para estudantes de escolas públicas. Silva foi o primeiro da sua família a fazer um curso superior, tendo, posteriormente, primos e amigos que seguiram a mesma trajetória.

A história do ex-aluno se confunde com a de muitos brasileiros. Negro, estudou em escola estadual, depois fez dois anos do Curso Preparatório para Concurso (CPC) da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) e, à época, não entendia muito bem como funcionaria o sistema implementado, de fato, naquele ano após decisão do Conselho Superior (Consu) da UFJF. Por conta da falta de informação, o atualmente jornalista e revisor de textos não optou pelas cotas raciais.

“Não sabia como funcionaria. Achei que as vagas para os estudantes negros seriam muito concorridas. Mas, quando saíram minhas notas, se tivesse tentado a vaga na modalidade de cotas raciais, daria até para passar em Medicina! Eu estava muito bem preparado”, relembra ele, que finalizou a graduação no ano de 2011, fez especialização, finalizou o mestrado em 2015 e, em 2020, se tornou doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A UFJF foi a primeira universidade federal do estado de Minas Gerais a aprovar o sistema de cotas em 2004. Metade das vagas deveriam ser destinadas a alunos de escolas públicas, sendo que 25% das mesmas seriam reservadas a candidatos autodeclarados negros. No ano seguinte, o Consu fixou os percentuais de vagas para cada grupo de acesso, sendo o aumento gradual até se atingir o percentual definido. Em 2006, 30%; no ano seguinte, 40%; e, finalmente, em 2008, 50%. A medida incluía o Vestibular e o Programa de Ingresso Seletivo Misto (Pism). Poderia se candidatar via sistema de cotas estudantes que tivessem cursado, pelo menos, sete séries em escolas públicas (incluindo o fundamental e todo o ensino médio).

Apesar das resoluções propostas, em 2006, somente 18,6% das vagas oferecidas na UFJF foram preenchidas por alunos de escolas públicas e apenas 3,9% dos estudantes se autodeclararam negros. Já em 2013, um ano após a aprovação da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, que tornava obrigatória a reserva de 50% das vagas nas universidades federais para alunos oriundos do ensino público, o percentual de estudantes que utilizaram as cotas aumentou para 47,8%, com 25,5% se autodeclarando negros. 

Cota não é esmola, é política de inclusão e equidade

Segundo o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em novembro de 2019, pessoas negras ganham 42,5% menos do que brancas. O rendimento médio mensal de brancos é de R$ 2.796; e o de negros, R$ 1.608. A diferença é observada em todos os níveis de instrução, e ainda mais na ocupação formal e entre pessoas com formação superior. O levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) também revelou que quase 70% dos cargos gerenciais são ocupados por brancos.

Os dados revelam a importância da implementação do sistema de cotas como forma de reparação histórica. É o que apontou o professor Cléber Santos Vieira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), no quinto encontro do Curso Ações Afirmativas e Heteroidentificação, promovido pela Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf) da UFJF no dia 3 de junho. Os objetivos de reparar a exclusão do povo negro das universidades e, consequentemente, do mercado de trabalho, e de combater o racismo fazem parte do se que denomina políticas de ações afirmativas. “Ação afirmativa é uma terminologia utilizada para definir as iniciativas públicas ou privadas que têm como finalidade alterar realidades sociais estruturalmente marcadas por desigualdades”, definiu o docente da Unifesp, em live realizada com a mediação do diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira.

Durante o encontro, Vieira ainda apresentou a definição do termo, segundo o pesquisador Adilson Pereira dos Santos em seu livro “Gestão Universitária e a Lei de Cotas”, publicado em 2020. “Ação Afirmativa se destina à integração de grupos sociais excluídos ou que apresentem históricos de desigualdades. Quando promovida pelo Estado, pode ser considerada como uma política pública redistribuitiva, que procura estabelecer a alocação mais igualitária dos bens sociais. Aplicada à educação, trata-se de uma política compensatória, que se inscreve no campo da luta contra as desigualdades educacionais para grupos desfavorecidos”.

A fala do professor da Unifesp ganha sentido com o depoimento da fisioterapeuta Carla Karoline Pires Generoso, que entrou na UFJF em 2007 via cotas raciais para estudantes de escola pública. Filha de pai porteiro e mãe empregada doméstica, o pensamento de Carla a respeito da universidade era o mesmo de muitos jovens negros, filhos de classe média baixa, que não tinham acesso ao ensino superior público: “achava que a universidade pública era só para pessoas brancas e ricas, que tinham estudado em escolas particulares”.

O estímulo de Carla para ingressar na UFJF veio da mãe, que concluiu os estudos por meio de supletivo e se formou em curso de técnico de enfermagem após os 40 anos. “Ela é minha fonte de inspiração e determinação para a vida. Com ela, surgiu a vontade de trabalhar com o cuidado com o próximo na área da saúde. E, ao acompanhar uma tia minha que teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) aos 36 anos, a vontade de ser fisioterapeuta foi crescendo”, lembra.

Carla já estava em seu terceiro vestibular quando tomou a decisão de tentar os programas de ingresso via cotas raciais para estudantes de escolas públicas. Segundo ela, faltava-lhe base sobretudo nas disciplinas de Exatas, o que a impedia de conseguir nota para a entrada em um curso concorrido. “Enxerguei nas cotas a possibilidade de disputar vaga com pessoas que tiveram o mesmo acesso à educação que eu, diferente da maioria dos estudantes oriundos de escolas particulares, que têm mais preparo para pleitear uma vaga”, explica. Na sua turma no curso de Fisioterapia, apenas ela se autodeclarava negra, outros dois alunos não se reconheciam como pretos e outros 17 eram brancos. “Isso me assustou muito no começo da faculdade, pois ainda não me sentia no direito de estar e de ser pertencente àquele espaço. Não me reconhecia nas pessoas. Isso só veio com o passar do tempo.”

Novas experiências a partir de 2012

Após a determinação da Lei 12.711, o ano de 2013 marca o ingresso de muitos estudantes negros, de escolas públicas e com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo na UFJF.  Uma delas é Vitória Pereira de Almeida, natural de Belo Horizonte e criada na pequena São Brás do Suaçuí, município que possui menos de 4 mil habitantes. No ensino fundamental, ela conta que estudou na única escola municipal de sua cidade e, no ensino médio, fez o curso técnico em Edificações no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IFMG), em Congonhas. Vitória ingressou no curso Bacharelado Interdisciplinar do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF em 2013, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Após a graduação no primeiro ciclo, se formou como bacharel em Design, em 2019.

Naquele ano já era perceptível a maior diversidade na instituição – realidade diferente da vivida por Rafael e Carla. Dos cerca de 20 alunos, cinco eram negros. “Parecia que a maioria das pessoas pretas entraram na Universidade no mesmo ano que eu.” Com a aprovação, porém, veio também o desafio financeiro da permanência – algo diretamente ligado à política de ações afirmativas. “Meu curso era bem caro para a minha realidade. Minha primeira lista de materiais, que não tive como comprar, era praticamente o preço do meu aluguel”, relembra Vitória.

Para ela, chamava atenção a diferença socioeconômica entre os alunos e as dificuldades impostas àqueles que não podiam se dedicar integralmente ao curso. “Vi pessoas pretas trabalhando em call centers, lojas de shopping, estágios abusivos. Muitas vezes, meus amigos, e eu mesma, nos desdobramos para entregar nossos trabalhos, que só conseguíamos fazer de madrugada por conta dos horários de trabalho.” Por outro lado, lembra de colegas viajando para o exterior em um final de semana. “Era uma realidade bem diferente pra mim, muito impactante. Por muitas vezes, achei que não merecia estar ali”, recorda Vitória, reforçando a importância das bolsas e auxílios oferecidos pela Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (Proae) da UFJF. 

“Fui bolsista desde o meu primeiro ano na faculdade. Recebi auxílio moradia, alimentação, transporte, bem como as bolsas de permanência. Até terapia fiz por lá. Foi assim que consegui me manter estudando, mesmo em situações difíceis, como quando quase tranquei a faculdade, pois meu pai foi demitido. Mas deu certo.” E deu certo mesmo. Hoje, Vitória trabalha como designer de produtos no Grupo SBF, que firmou um acordo inédito com a Nike para expansão das lojas Nike Store no Brasil.

“Todo o contraste socioeconômico que percebi na Universidade me fez compreender o que o racismo estrutural fez comigo e minha família. Atualmente, minha maior motivação é auxiliar e vibrar com a conquista de outras pessoas pretas em espaços que elas jamais imaginariam alcançar, como eu tenho tentado alcançar”, vibra a designer de produtos da Nike Brasil.

Para além da formação acadêmica, reflexões sobre identidade

Tanto Vitória quanto Carla e Rafael se consideram bastante reflexivos sobre as questões das pessoas negras no Brasil. Sobretudo no que diz respeito às cotas, ao racismo e à ocupação dos espaços. Para Carla, as discussões em torno da revisão da Lei de Cotas ainda são motivos de apreensão, bem como a situação das pessoas negras no Brasil. “As cotas são de grande importância para que pessoas como eu, pretas e filhas da classe média baixa, possam fazer o curso que tanto sonham. Elas são de uma importância histórica, fazem com que os mais jovens possam reconhecer seus iguais nas profissões que escolheram. Mas, ainda que elas existam, e espero que, por enquanto, não acabem, a situação do ensino básico é cada vez mais discrepante em relação à educação acessada pelos brancos de classes média e alta nas escolas particulares. Acredito na educação como caminho de inclusão, acesso em todos os sentidos, visto que nós, negros, sofremos com tamanha desigualdade na educação”, reforça a fisioterapeuta.

Já Rafael finaliza lembrando a importância da representatividade negra nas universidades. “Em 2006, havia poucos negros na UFJF. Minha turma tinha uns 30 alunos e apenas quatro ou cinco eram negros. Entre os meus veteranos, lembro de dois ou três no máximo. Porém, ao longo da minha trajetória acadêmica, fui percebendo o aumento gradativo de negros e negras na graduação, e posteriormente, na pós-graduação, tanto na UFJF quanto em outras instituições. Participei de vários eventos acadêmicos em universidades públicas e era evidente que uma transformação da cor, cultura e origem dos alunos estava ocorrendo, e tudo isso se deve à implementação da política de cotas”, afirma Rafael. O jornalista ainda completa: “Temos milhares de jovens que ingressam nas universidades hoje e que poderão, assim como eu e tantos outros, transformar a vida de suas famílias, tendo uma profissão, um salário mais digno.”

Confira a primeira matéria da série:

Cotistas são 47% na UFJF; percentual de negros triplica em dez anos