No dia 20 de novembro é celebrado o Dia Nacional da Consciência Negra, criado em 2003 e oficialmente instituído em âmbito nacional mediante a Lei 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data é dedicada à reflexão sobre a inserção de negros e negras na sociedade brasileira e foi escolhida por coincidir com o dia da morte de Zumbi dos Palmares, um dos principais nomes da luta pela libertação do povo negro do sistema escravista. 

Julvan Moreira: Hoje, mais da metade dos estudantes são oriundos de famílias com até 1,5 salário mínimo. E em sua maioria, jovens negros” (Foto: Carolina de Paula)

A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pioneira no estado de Minas Gerais na implantação das cotas, lança hoje a campanha “Dia da Consciência Negra: Reparar a história para transformar a sociedade”. O intuito é dar visibilidade à introdução do sistema de cotas nos cursos de pós-graduação, fomentar as discussões em torno da necessidade de continuidade da Lei de Cotas, que completa 10 anos em 2022, e voltar o olhar da sociedade para personagens que fazem parte da história e das vitórias conquistadas a partir da instituição obrigatória das cotas nas universidades federais brasileiras.

Formada em 2011 na Faculdade de Fisioterapia da UFJF, Carla Generoso é a segunda pessoa formada em uma família numerosa de negros da Zona Norte de Juiz de Fora. Tendo sido aluna de escola pública a vida toda, ingressou na universidade somente em sua terceira tentativa, no primeiro ano do sistema de cotas, em 2006. “Enquanto a gente não tiver uma educação equânime, em que as pessoas, desde a formação básica, tenham acesso como as pessoas que estudam em escolas particulares, o sistema de cotas é importante. É uma forma de equiparar as desigualdades sociais através do estudo”, comenta Carla. Ela ainda conta que, em sua turma de graduação, havia apenas duas pessoas negras. No entanto, ao voltar para a universidade, em 2015, para ingresso no Mestrado em Saúde Brasileira, na Faculdade de Medicina, percebeu uma grande diferença. “Quando eu voltei, tinha muito mais pessoas negras e que se reconheciam como negras. No mestrado, pude observar que a Universidade tinha uma paleta de cores muito mais presente”, relembra.

Willian Cruz: “A universidade, pelo seu próprio nome, deveria abarcar toda a sociedade na produção do conhecimento.” (Foto: Carolina de Paula)

Para o professor do Departamento de Matemática, do Instituto de Ciências Exatas (ICE), Willian Cruz, a determinação de cotas para os cursos de pós-graduação é uma nova forma de se debruçar sobre as ações afirmativas no que diz respeito à manutenção de alunos e alunas cotistas dentro da Universidade. “A universidade, pelo seu próprio nome, deveria abarcar toda a sociedade na produção do conhecimento. As cotas para a pós-graduação abrem caminho para desenvolver e ampliar conhecimento com aqueles que muitas vezes foram excluídos do processo”, destaca Cruz.

Mestranda em Serviço Social e ingressante no PPG no primeiro semestre de 2021 por meio das ações afirmativas, Polyana Carvalho da Silva, é também formada na UFJF. Apaixonada pela vida acadêmica, durante a graduação foi bolsista de iniciação científica, o que aumentou seu interesse por prosseguir seus estudos na pós-graduação. “O mestrado é uma possibilidade de ascensão e transformação social. Por isso, acredito ser a implantação do sistema de cotas na pós-graduação uma forma de reparação e uma maneira de diminuir as desigualdades educacionais, sociais e econômicas entre brancos e negros”, observa a assistente social, que também foi residente, entre os anos de 2016 e 2018, no Programa Multiprofissional em Saúde do Adulto, no Hospital Universitário (HU), da UFJF.

Consolidação na graduação

A Lei de Cotas, no entanto, prevê uma avaliação do sistema no ano de 2022, que deve ser feita pelo Ministério da Educação (MEC). No entanto, o diretor da Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf) da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, aponta a importância do aumento significativo de grupos minoritários no ambiente universitário. “Hoje, mais da metade dos estudantes são oriundos de famílias com até 1,5 salário mínimo. E em sua maioria, jovens negros”, observa.

Gabriel Braz: “Como preto e retinto, estar e ver outros estudantes negros na graduação é muito representativo, sobretudo na Medicina, que é um curso hegemonicamente branco.” (Foto: Carolina de Paula)

Um deles é o estudante de Medicina Gabriel Braz, 22 anos, que ingressou na UFJF no ano de 2018. Vindo de Cachoeira Alegre, distrito do pequeno município mineiro de Barão de Monte Alto, Gabriel cursou o ensino fundamental como bolsista em um colégio particular. No ensino médio, ingressou no Colégio de Aplicação (Coluni) da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Ele acredita que o sistema de cotas possibilitou sua entrada em um curso extremamente elitista. “Como preto e retinto, estar e ver outros estudantes negros na graduação é muito representativo, sobretudo na Medicina, que é um curso hegemonicamente branco. O discurso biomédico foi fundamental para a exclusão de pessoas negras no passado, através das teorias eugênicas, racistas, anticientificistas. É preciso que mais estudantes negros se formem na área da saúde para que pensemos em escolas médicas e de saúde voltadas para as reais necessidades da população brasileira, que é majoritariamente negra”, afirma.

Cristina Bezerra: “Existia uma grande diferença entre os cursos considerados de elite, em que os negros não tinham entrada, e os cursos considerados menos importantes, nos quais se via a presença de um ou outro negro.” (Foto: Carolina de Paula)

Estudante da Faculdade de Serviço Social entre os anos de 1990 e 1994, a pró-reitora de Assistência Estudantil da UFJF, Cristina Bezerra, lembra que diversidade era um tema pouco discutido naquela época. “Existia uma grande diferença entre os cursos considerados de elite, em que os negros não tinham entrada, e os cursos considerados menos importantes, nos quais se via a presença de um ou outro negro. Eu era uma das poucas alunas negras da minha turma”, rememora a docente, que compõe o quadro de professores efetivos da UFJF desde 1997.

Para Willian Cruz, docente do ICE desde 2018, o sistema de cotas é fruto de uma luta do movimento negro e de todos os coletivos que compõem a Universidade, a cidade e a região do entorno de Juiz de Fora. Porém, ainda é preciso abarcar mais diversidade na produção de conhecimento. Por isso, a extensão das cotas para a pós-graduação é tão importante. “Para o futuro, acredito que a gente possa estar construindo um ambiente mais democrático, mais diverso, termos mais professores negros e negras, mais pessoas de diversas matizes construindo esse universo que é de todos e todas”, finaliza.

Para Cristina Bezerra, as políticas de ações afirmativas não podem ser só uma porta de entrada para os estudantes no ingresso. Afinal, elas já estão presentes na graduação, através das cotas e de outras políticas de assistência estudantil, como auxílio-moradia, auxílio-alimentação e bolsas de vulnerabilidade social. “As pessoas precisam da universidade para garantir uma leitura da realidade com mais elementos críticos. E a universidade, por outro lado, precisa das pautas que só essas pessoas podem trazer”, afirma Cristina, completando que a presença de pessoas negras, LGBTQIA+ e refugiadas traz para a pós-graduação novos objetos de estudo e de pesquisa, garantindo, em mais uma instância, a diversidade de corpos e conhecimentos.

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