Estudante de Ciências Econômicas, Thiago da Costa criou um canal durante a pandemia para falar sobre economia inclusiva (Foto: arquivo pessoal)

“Liderança e participação das pessoas com deficiência por um mundo pós-Covid-19 inclusivo, acessível e sustentável” é o tema do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, celebrado neste 3 de dezembro. Proclamada em 1992 pela resolução 47/3 da Assembleia Geral das Nações Unidas, a data promove os direitos e o bem-estar das pessoas com deficiências em todas as esferas da sociedade. A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), desde a implantação do sistema de cotas através da Lei 12.764, de dezembro de 2012, tem na inclusão um dos pilares de suas políticas de ações afirmativas.

Hoje, 234 Estudantes com Deficiência (ECD) ou com Necessidades Educacionais Especiais (NEE) estão matriculados na UFJF. Desses, 76 estão vinculados ao Núcleo de Apoio à Inclusão (NAI), dentre os quais 45 solicitaram algum tipo de assistência (intérprete de libras, acompanhamento acadêmico ou monitoria especializada). Entre eles, está Thiago da Costa, de 32 anos, que cursa o bacharelado em Ciências Econômicas. Thiago teve acesso à Universidade pelas cotas raciais e ingressou na Faculdade de Economia no ano de 2013, quando as cotas por deficiência ainda estavam sendo implementadas.

Podemos elaborar maneiras muito legais de a economia contribuir para uma sociedade mais inclusiva – Thiago da Costa

O estudante, que tem paralisia cerebral, mantém um perfil no Instagram (@economia_inclusiva) e um canal no YouTube, nos quais publica conteúdos que envolvem educação financeira, conjuntura econômica e o conceito de economia inclusiva. “O intuito é ensinar que podemos elaborar maneiras muito legais de a economia contribuir para uma sociedade mais inclusiva”, conta Thiago, que destaca ainda a importância dos professores na sua trajetória acadêmica e nos trabalhos que desenvolve fora das salas de aula. “O professor Alexandre Zanini, por exemplo, conversa bastante comigo e me traz várias ideias. Ele me fez perceber onde está a humanidade das ciências econômicas”, ressalta.

Uma das formas de incentivar a inclusão social são as bolsas de apoio estudantil, que garantem a permanência de alunos e alunas na universidade pública. Thiago da Costa é um dos recebem os benefícios. Ele tem acesso à bolsa, no valor de R$ 400, do Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), do Ministério da Educação (MEC), e ainda o auxílio inclusão digital, na quantia de R$ 100 – recurso criado por conta da pandemia da Covid-19 e que tem por finalidade facilitar o acesso à internet de alunos e alunas. “Através de uma amostragem realizada no início do isolamento social, identificamos que a condição socioeconômica de significativa parcela desse público é bem frágil. As bolsas de auxílio certamente ampliam as oportunidades de permanência desse grupo no ensino superior”, destaca a coordenadora do NAI e professora da Faculdade de Educação (Faced), Mylene Cristina Santiago.

Mylene Santigo destaca os passos importante dados em direção à inclusão, mas reconhece as limitações no ambiente universiário (Foto: Carolina de Paula)

Muito ainda se tem a fazer, além das bolsas e das cotas. Entretanto, para Mylene, alguns passos importantes têm sido dados rumo à construção de culturas, políticas e práticas de inclusão. A tentativa de garantir a participação e o direito à aprendizagem de estudantes com deficiência durante o isolamento social imposto pela pandemia,  por exemplo. Segundo Mylene, alunos e alunas foram protagonistas na exigência de garantia de seus direitos, através da promoção de lives, participação em processos seletivos e na condição de bolsistas do NAI. “Nesse período, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) foi parceiro fundamental para a aproximação com as questões de inclusão e barreiras enfrentadas pelos estudantes com deficiência. Outra notícia positiva, foi a aprovação de um projeto pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) com o objetivo de investigar o processo de aprendizagem e participação dos estudantes com deficiência durante o ERE, o que nos permitirá conhecer e acompanhar as histórias e trajetórias de nossos estudantes de forma mais próxima”, destaca.

Funcionando de forma vinculada à Diaaf e criado a partir da resolução 092/2018, o Núcleo busca a construção e implementação de políticas de ações afirmativas para pessoas com deficiência, Transtorno do Espectro Autista (TEA), Altas Habilidades e Superdotação. Mylene Santiago informa que o NAI oferece suporte para estudantes da graduação e da pós-graduação, técnico-administrativos e docentes. Entre os serviços fornecidos, está a tradução para a Língua Brasileira de Sinais (Libras) de aulas e eventos presenciais ou em formato online. Atualmente, a UFJF conta com 13 tradutores e intérpretes e, desde 2014, oferece o curso de Letras-Libras, que se tornou disciplina curricular obrigatória em todos os cursos de licenciatura, em nível médio e superior, a partir do Decreto do Governo Federal 5.626/2005.

Acesso ao ensino superior

Adriana Capitão disse que a luta pela inclusão é constante, mas percebe o esforço dos professores para se adaptarem às condições dos alunos (Foto: Carolina de Paula)

A UFJF conta com um sistema de ingresso via cotas para pessoas com deficiência, seja ela de qualquer natureza. É preciso apenas que os candidatos aprovados, no momento da matrícula, respondam a um questionário sobre a deficiência declarada e entreguem a documentação prevista em edital para avaliação da Comissão de de Análise de Matrícula da UFJF, órgão formado por equipe multidisciplinar para comprovar a condição e garantir o preenchimento de vagas reservadas às pessoas com deficiência. Todos os candidatos precisam apresentar um laudo médico original impresso, com a devida referência expressa ao código correspondente da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), assim como a provável causa da deficiência.

Já para pleitear vaga em grupo cotista destinado a candidatos surdos ao curso de Letras-Libras, é preciso apresentar, no momento do cadastramento da inscrição, uma cópia autenticada (em cartório ou na UFJF, com apresentação do documento original) de laudo especializado. O documento deve atender aos requisitos do parágrafo único do artigo 2º do Decreto nº 5.626/2005 que considera deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de 41 decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz. Tudo para garantir a legitimidade no ingresso de alunos e alunas.

“A implementação de ações afirmativas para pessoas com deficiência é um compromisso político que o Estado assume, assim como toda a sociedade, na defesa dos direitos dessas pessoas que, pelas condições de vulnerabilidade, são vítimas de discriminação e exclusão”, afirma o diretor da Diaaf, Julvan Moreira de Oliveira. Para a professora Mylene Santiago, o aumento de alunos com deficiência na Universidade é perceptível ano a ano. “A política de cotas estimula essa evolução, embora o ingresso de estudantes com deficiência também ocorra pela ampla concorrência, já que o sistema é exclusivo para egressos das escolas públicas”, explica.

A inclusão modifica a rotina dos próprios institutos e faculdades, pois todos começam a ver as nossas condições de perto – Adriana Capitão

Adriana Ameal Capitão, de 50 anos, que cursa Design no Instituto de Artes e Design (IAD), deficiente auditiva e visual, entrou na UFJF por cota social e de deficiência. Ela conta que chegou a usar prótese auditiva, mas teve muita dificuldade na adaptação. Já sua deficiência visual não pode ser corrigida. Afastada durante muitos anos do ambiente escolar, ela decidiu retornar para a universidade e tem sido acompanhada pelo NAI. “Tenho dificuldade de fazer desenhos a mão e consegui emprestada da UFJF uma mesa digitalizadora. Me sinto incluída, mas estou lutando bastante para isso. A inclusão modifica a rotina dos próprios institutos e faculdades, pois todos começam a ver as nossas condições de perto. Os professores também estão se adaptando. Há uma mudança na rotina do ensino. É um processo difícil, mas é aí que há uma abertura para a inclusão de fato”, afirma Adriana.

Ao encontrar a possibilidade de cursar artes e design, não hesitei e entrei na universidade pelo sistema de cotas – Carolina de Moraes

Carolina de Moraes sonha com um mundo mais inclusivo não só para as pessoas com deficiência mas para todas as minorias (Foto: arquivo pessoal)

Também estudante do IAD, Carolina Monteiro de Moraes tem 23 anos e está no oitavo período do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Artes e Design. Com paralisia cerebral, deficiência descoberta aos cinco meses de idade, ela tem suas funções cognitivas intactas.  “Estudei em escolas particulares até o final do sexto ano. Depois, por falta de interesse por parte de um desses colégios em promover a inclusão escolar, tive que me retirar da rede particular”, relata Carolina, que descobriu o seu gosto pelas artes ainda no ensino médio. “Possuo acessibilidade digital com ampla autonomia, promovida por interfaces e aprimorada ao longo dos anos. Ao encontrar a possibilidade de cursar artes e design, não hesitei e entrei na universidade pelo sistema de cotas que, a propósito, considero um instrumento de muita importância para atenuar as diferenças”, completa.

Desafios no trabalho

Docente de Libras e Diversidade da Faculdade de Educação desde 2016, Rodrigo Geraldo Mendes é um dos que compõem o quadro de seis professores com deficiência da Universidade. Considerado uma pessoa surda, ele faz questão de se comunicar com seus alunos com deficiência auditiva através das Libras. “Quando tem alunos surdos, priorizo o uso de Libras, colocando os profissionais para fazer interpretação para o português”, explica Mendes, completando que ainda sente falta da acessibilidade em eventos culturais e palestras no ambiente universitário. “Ainda estamos muito no início, mas percebo o interesse da Universidade. Existe uma dificuldade de orçamento. Então, depende muito do Governo Federal lançar verbas para esses recursos de acessibilidade. É nosso direito. Como professor, tenho preocupação com a comunidade surda que está entrando no meio acadêmico e no mercado, onde encontra dificuldade em crescer, mostrar talento e ter oportunidade de viver de uma forma plena e inclusiva”.

Atualmente, a população mundial é de mais de 7 bilhões de pessoas. Deste total, mais de um bilhão (ou aproximadamente 15%) vivem com alguma forma de deficiência. E deste bilhão de pessoas com deficiência, 80% estão em países em desenvolvimento. Um dos grandes desafios da atualidade, para o diretor da Diaaf, Julvan Moreira, é justamente garantir o acesso ao mercado de trabalho a esses cidadãos. Por isso, segundo o professor, tanto no mercado de trabalho quanto na educação, as cotas são fundamentais.

João Victor Vitoretto é um dos 39 TAEs com deficiência que compõem o quadro funcional da UFJF atualmente (Foto: Breno Motta)

João Victor de Medeiros Vitoretto trabalha na UFJF há quase dois anos. Formado em Contabilidade, fez concurso para técnico-administrativo através do sistema de cotas. “Tenho uma deficiência visual chamada acromatopsia. Além de muita fotossensibilidade, não identifico cores e enxergo muito mal de longe. Por isso, na minha estação de trabalho até me deram uma tela de computador maior para facilitar a visualização”, conta João Victor, que é do setor de pagamentos da Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progepe) e está entre os 39 TAEs com deficiência listados atualmente pela Coordenação de Saúde, Segurança e Bem-Estar (COSSBE)/Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor Público Federal (SIASS).

Atualmente na cadeira de estudante, Cristiano Augusto Vieira Clemente, de 49 anos, está matriculado no curso de Filosofia mas conhece a realidade do mercado de trabalho. Deficiente visual, já trazia na bagagem o diploma de advogado, o que possibilitou que ele ingressasse na UFJF através de edital de vagas ociosas. Ele conta que irá concluir, muito em breve, sua nona especialização e que possui cinco cursos de gestão, mas que tudo isso, por vezes, não se torna suficiente para sua inserção no mercado de trabalho. “Falta preparo para lidar com pessoas com deficiência, ou o que chamamos de falta de ética social. Na maioria das vezes, o deficiente consegue emprego como jovem aprendiz, porque as empresas não nos colocam em nossas profissões devidas, com as qualificações que possuímos. As pessoas acham que não temos capacidade ou que nosso currículo é falacioso”, aponta o também conciliador extrajudicial.

As pessoas acham que não temos capacidade ou que nosso currículo é falacioso – Cristiano Clemente

Cristiano Clemente tem nove especializações mas continua tendo dificuldades com acesso ao mercado de trabalho (Foto: Carolina de Paula)

Para o futuro, Cristiano sonha não encontrar barreiras e falta de acessibilidade. Seja essa falta dentro da própria da Universidade, no sistema de transporte público, ou no mercado de trabalho. “Espero um futuro mais ético, mais inclusivo. Que a sociedade inclua de forma espontânea, percebendo não a deficiência, mas a capacidade de cada um. Que as pessoas sejam mais receptivas e confiem mais nos outros, independente da cor, classe social ou deficiência”, acredita o futuro filósofo formado pela UFJF.

Sonho de inclusão

Mylene Santiago reforça a fala de Cristiano, dizendo que os estudantes com deficiência enfrentam barreiras relativas à acessibilidade, que podem ser arquitetônicas, sociais, comunicacionais, curriculares, de transporte e atitudinais. “As barreiras atitudinais são as mais complexas porque estão relacionadas ao capacitismo, que é uma forma de preconceito contra pessoas com deficiência, que envolve uma pré-concepção sobre suas capacidades. Para minimizar tais barreiras, é necessário investir na formação e diálogo com a comunidade acadêmica”, destaca Mylene.

As nossas diferenças fazem o mundo mais colorido – Carolina Moraes

Para Adriana Capitão, um futuro promissor é aquele em que existirá a inclusão verdadeira. “Inclusão é poder ver a pessoa com deficiência ou limitação como semelhante. É preciso estar atento que pessoas com deficiência possuem sentimentos, sonhos, desejos, como qualquer outro indivíduo. Afinal, limitações creio que todos nós possuímos”, diz a estudante do IAD. Carolina Moraes faz coro aos desejos da colega de curso. “O meu sonho de inclusão é o de que todos os alunos e alunas que possuam algum tipo de necessidade especial, sejam atendidos adequadamente e valorizados em suas competências, assim como também todos os grupos minoritários como a comunidade negra e os LGBTQIA+, para que não sofram o preconceito e, como consequência a exclusão. Na minha visão, as nossas diferenças fazem o mundo mais colorido”, finaliza.