Em série especial de matérias, pesquisadores discutem ações antirracistas para o espaço científico universitário

A pesquisa científica é um dos pilares da universidade pública. Conhecer quem produz o conhecimento é, também, valorizar a própria ciência. Com essa perspectiva, ao longo da semana da consciência negra, a UFJF publica uma série especial de entrevistas com pesquisadores negros. O objetivo é abrir espaço não apenas para a discussão acerca da representatividade na carreira acadêmica, mas também sobre quais ações, sejam institucionais ou tomadas por colegas pesquisadores, são necessárias para fomentar o antirracismo em espaços científicos. 

Nesta segunda matéria, entrevistamos os pesquisadores Heloísa D’ávila e Julvan Moreira, vinculados aos departamentos de Biologia e Educação, respectivamente. A primeira matéria também está disponível on-line.

“A política de cotas raciais contribuiu significativamente para a discussão do racismo nas universidades”
Heloisa D’Ávila da Silva Bizarro, pesquisadora do Departamento de Biologia

A pesquisadora Heloisa D’Ávila destaca a importância do amparo institucional e de políticas afirmativas (Foto: Acervo pessoal)

Sobre quais ações são significativas para combater o racismo na universidade e no âmbito científico: “Acho que é importante a implementação de ações que discutam, na comunidade acadêmica, temas como o racismo entre alunos, professores e comunidade. O que tem sido muito bem feito na UFJF. Além disso, seria interessante, construir e divulgar cartilhas de ‘boa convivência’ entre os membros da comunidade acadêmica, prezando para o estabelecimento de relações de respeito e tolerância. Adicionalmente, é muito importante o amparo legal das instituições aos alunos, professores e técnico-administrativos em educação (TAEs) que, por ventura, forem vítimas de racismo dentro das instituições. Neste sentido, acredito que a diretoria de ações afirmativas da UFJF tem promovido boa parte destas ações, mas não são todas as instituições que se comportam assim. De forma geral, a política de cotas raciais contribuiu significativamente para a discussão do racismo nas universidades, uma vez permitiu um maior acesso de alunos de etnias que são vítimas de racismo. Esses alunos se sentem mais representados no ambiente universitário e científico.”

Sobre as pesquisas que desenvolve – e a importância delas para a sociedade: “Minha linha de pesquisa investiga a interação de patógenos intracelulares (como micobactérias,  Trypanosoma cruzi, Leishmania, dentre outros) com as células de defesa dos hospedeiros. Estudamos aspectos celulares e moleculares envolvidos nestas infecções e os mecanismos que as células de defesa utilizam para combater estes patógenos. A partir deste entendimento, procuramos investigar novas estratégias para o tratamento para tais doenças. Recentemente, temos investigado o papel da vitamina D como indutor da produção de compostos antimicrobianos nas células dos hospedeiros. Acreditamos que o controle dos níveis séricos de vitamina D possa contribuir para a imunidade durante infecções por patógenos intracelulares.”

“Combate ao racismo também se dá pela incorporação de conteúdos curriculares da cosmovisão africana”
Julvan Moreira de Oliveira, pesquisador do Departamento de Educação

Sobre quais ações são significativas para combater o racismo na universidade e no âmbito científico: “Compreendemos que o combate ao racismo se dá não só em lutas contra os diversos tipos de preconceitos e discriminações sofridas de forma violenta ou simbólica pelos negros no dia a dia, mas também pela incorporação de conteúdos curriculares da cosmovisão africana. É fundamental que nossos estudantes, além das filosofias ocidentais, estudadas na educação básica e no ensino superior, tenham contato com a filosofia contemporânea do continente africano, especialmente as quatro principais vertentes.

O pesquisador Julvan Oliveira também atua como diretor de Ações Afirmativas da UFJF (Foto: UFJF)

A primeira, a Etnofilosofia, trata-se de um sistema de pensamento que lida com visões de mundo coletivas de diversos povos africanos como uma forma unificada de conhecimento, baseado nos mitos, na sabedoria popular e nos provérbios do povo. 

A segunda vertente é a Filosofia da Sagacidade, um sistema reflexivo de pensamento baseado na sabedoria e nas tradições das pessoas. Basicamente, é o reflexo de uma pessoa que é reconhecida tanto como sábio quanto como pensador. Como um sábio, a pessoa é bem versada na sabedoria de seu povo e as pessoas de uma sociedade em particular reconhecerão rapidamente que os sábios possuem esse conhecimento. 

A terceira vertente da Filosofia na África é a filosofia Nacionalista-ideológica. É um sistema de pensamento, baseado no socialismo africano tradicional. Esta tendência da filosofia visa a busca de uma liberdade verdadeira e significativa para o povo africano, que pode ser alcançada pela libertação mental e um retorno ao genuíno humanismo tradicional africano. Portanto, é basicamente uma filosofia sócio-política.

Por fim, a unidade da filosofia na África hoje é a filosofia profissional. No contexto africano, a filosofia profissional consiste na análise e interpretação da realidade em geral. Além disso, consiste em crítica e argumento, que para eles são as características e condições essenciais para que qualquer forma de conhecimento seja julgada como filosofia. Filosofia para eles é uma disciplina universal que tem o mesmo significado em todas as culturas.

O racismo estrutural e institucional está presente enquanto nossas instituições educativas se negarem a ensinar essa Filosofia Africana e, nesse sentido, nossas pesquisas e estudos visam contribuir para a superação dessa realidade.”

Sobre as pesquisas que desenvolve – e a importância delas para a sociedade: “Eu venho me dedicando à pesquisa sobre Filosofia Africana e Afrodiaspórica, em parceria com pesquisadores do GT Filosofia Africana da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). A importância dessa área se dá porque as filosofias predominantes, especialmente à partir da modernidade, celebraram o pensamento hegemônico pautado no racialismo europeu, com publicações cujas bases teóricas defenderam a existência de raças humanas e uma hierarquia ‘natural’ entre elas. Tais teorias acarretaram um legado histórico do branco europeu como ‘grupo étnico-racial dominante e civilizado’ em detrimento aos Outros grupos étnicos.

Desde Montesquieu, com a defesa de que o negro não tinha alma, passando por Hegel, com seu pensamento de que não há na África nenhuma subjetividade e sim somente uma série de sujeitos que se destroem, sem história, e sua população está em estado bruto; configurando-se no continente africano a selvageria e a barbárie de homens feiticeiros, chegando a Kant, em sua defesa de que o sublime e o belo como traços que exprimem sentimentos estavam no continente europeu, ao passo que os negros não possuíam, por natureza, nenhum sentimento que se elevasse acima do ridículo. Ou seja, esses pensadores, e outros da Filosofia, reafirmaram o racismo, considerando que os africanos e os africanos da diáspora não seriam detentores de conhecimento e de discurso político legítimo.

Frantz Fanon, um dos filósofos citados pelo pesquisador (Foto: Domínio público)

Nesse sentido, o estudo sobre as origens da Filosofia Africana – a desenvolvida entre os séculos IV e V a.C., no reino de Axum, Etiópia e a Kemet, desenvolvida no vale do Nilo, Egito, entre 3.400 a 343 a.C. – tem relevância, assim como o estudo da luta para uma afirmação da consciência histórica africana e a retomada epistemológica contra as falsidades, distorções e negações do passado africano, com as principais vertentes do pensamento contemporâneo africano, destacando-se Dubois, Senghor, Césaire e Fanon, de cunho mais pan-africanista e nacionalista; Appiah, Kagame e Mbiti, reconstruindo a cosmovisão de seus antepassados e os pressupostos coletivos das suas tradições; Hountondji, Wiredu e Boulaga, em perspectiva mais etnográfica; a questão identitária em Marcien Towa, Théophile Obenga, Valentin-Yves Mudimbe, Paulin Hountondji, Severino Elias Sgoenha, a afrocentricidade em Asante, o matriarcado e gênero em Ifi Amadiume e Oyèrónkẹ Oyěwùmí. 

Resumindo, existem basicamente quatro tendências que podem ser consideradas como o núcleo da Filosofia Contemporânea Africana nos nossos tempos e seus estudos têm importância, especialmente para nós que estamos no Brasil, cuja população descendente de africanos é majoritariamente negra, mas que tem sido negada o conhecimento e a filosofia na cosmovisão africana, especialmente em nossos diversos cursos e modalidades de ensino.”