Pesquisadoras compartilham como colegas e instituições podem combater o racismo

A pesquisa científica é um dos pilares da universidade pública. Conhecer quem produz o conhecimento é, também, valorizar a própria ciência. Com essa perspectiva, ao longo da semana da consciência negra, a UFJF publica uma série especial a fim de mostrar o trabalho de alguns desses pesquisadores. Nesta primeira matéria, entrevistamos as pesquisadoras Danielle Teles e Zélia Ludwig, vinculadas aos departamentos de Saúde Coletiva e Física, respectivamente.

De acordo com dados da pesquisa de diagnóstico das condições de acesso digitais, 8,6% dos docentes da UFJF se autodeclaram negros. O grupo de autodeclarados negros incluí pretos e pardos – que, hoje, representam 56,10% dos brasileiros. O fato de que os números de docentes não chegam perto de corresponder à realidade da população brasileira é mais um reflexo dos efeitos do racismo do país. Por meio dessa série de matérias, abrimos espaço não apenas para a discussão acerca da representatividade na carreira acadêmica, mas também sobre quais ações, sejam institucionais ou tomadas por colegas pesquisadores, são necessárias para fomentar o antirracismo em espaços científicos.

“Os espaços acadêmicos têm cheiro, cor e classe social”
Danielle Teles da Cruz, pesquisadora do Departamento de Saúde Coletiva 

Sobre quais ações são significativas para combater o racismo na universidade e no âmbito científico: “O primeiro passo é o diálogo franco e genuíno que permita o reconhecimento do racismo nessas esferas. Isso envolve a consciência individual, mas que pode ser estimulada pelas próprias instituições. Algo que vejo como fundamental é apostar na diversidade da gestão das instituições de ensino e pesquisa, incluindo e priorizando as instâncias de deliberação e de poder e os cargos mais altos. Considerar e dar visibilidade à produção científica desenvolvida por negras e negros e permitir o protagonismo das narrativas. 

A pesquisadora Danielle Teles defende uma expressão clara e contundente dos princípios que norteiam instituições (Foto: Arquivo pessoal)

Precisamos romper com as hierarquias e para isso devemos lembrar que os espaços acadêmicos têm cheiro, cor e classe social. Temos ainda que avançar na proposição das ações afirmativas, o que envolve os cursos de pós-graduação scrito sensu e o olhar atento para algumas áreas de conhecimento/formação que são mais excludentes. Incentivar e promover disciplinas, atividades e ações que abordem a história da cultura afro-brasileira ao longo processo formativo (independente do grau), na qualificação dos recursos humanos que constituem esses cenários e também na capacitação de novos trabalhadores no momento do ingresso nas instituições. Além disso, a gestão das instituições precisa deixar expresso de forma clara, objetiva e contundente quais são os princípios e valores que a orientam.”

Sobre as pesquisas que desenvolve – e a importância delas para a sociedade: “Concentro meus estudos e atuação na área de Políticas Públicas de Saúde e na compreensão do processo de saúde adoecimento dos indivíduos. De forma objetiva, meu grande foco é a saúde como um direito e a defesa da saúde para todos os indivíduos de forma igualitária e isenta de qualquer preconceito. Ou seja, a defesa do Sistema Único de Saúde e da democratização da saúde. Essa área é extremamente importante para toda a sociedade, porque é por meio desse grande sistema de saúde que temos grande parte dos nossos problemas de saúde resolvidos.

Danielle Teles da Cruz (Foto: Maria Otávia Rezende/UFJF)

Danielle Teles durante o Pint of Science, maior festival de divulgação científica do mundo (Foto: Maria Otávia Rezende/UFJF)

O SUS está presente no nosso dia-a-dia através dos inúmeros atendimentos realizados por profissionais de saúde, do SAMU, da vacinação, da doação e transfusão de sangue, dos transplantes de órgãos, do controle dos alimentos e da água potável, dos carros fumacê para controle da dengue e uma infinidade de outras coisas. 

E dentro de tudo isso que falei, minhas preocupações são voltadas para os problemas de saúde mais frequentes da população, e também para grupos específicos que apresentam um grau maior de vulnerabilidade, como idosos, população privada de liberdade e LGBTQIA+.”

“Esse não é um problema que tem que ser resolvido, falado e enfrentado apenas por pessoas negras”
Zélia Maria da Costa Ludwig, pesquisadora do Departamento de Física

Sobre quais ações são significativas para combater o racismo na universidade e no âmbito científico: “Precisamos mudar nossa forma de pensar e agir imediatamente. É preciso que as pessoas tenham empatia e aprendam a se colocar no lugar dos outros, promovendo ações para mudar este cenário. Não podemos montar comitês de avaliação compostos apenas por homens e mulheres brancas de uma única região do país. Temos que ouvir o que os negros e outros grupos étnicos têm a dizer, para criarmos mecanismos para aumentar essa representação em todas as instâncias – seja na ciência, na política ou na sociedade. 

“Não se pode mais reproduzir esse comportamento que segrega alguns e beneficia outros tantos”, defende Ludwig. Na foto, a pesquisadora no 6º Fala Ciência (Foto: Maria Otávia Rezende/UFJF)

Não se pode mais reproduzir esse comportamento que segrega alguns e beneficia outros tantos ao longo dos anos, inclusive no ambiente acadêmico. Por exemplo, os editais: eles devem procurar contemplar um maior número de pessoas, tomando cuidado para que não tragam vieses que segregam algum grupo. Os critérios de avaliação não podem ser somente a meritocracia, a produtividade de artigos, mas levar em conta fatores como divulgação científica, formação de recursos humanos de grupos que estão em situação de vulnerabilidade econômica e social, trabalhos de engajamento em comunidades, escolas e sociedade. Que considerem o impacto da maternidade na carreira das mães. Editais que visem a produção de artigos e livros (em português e em outros idiomas) que tratem de questões étnico raciais são bem-vindos. 

Em grupos e comitês de avaliação, assim como sociedades de pesquisas e academias, é preciso ter um número considerável de pessoas de grupos que vem sendo sub-representados ao longo dos anos. Assim como em editais, os critérios usados nos processos de avaliação precisam ser reformulados. É necessário eleger membros de diferentes etnias, regiões, gênero e idades. 

As universidades precisam ter representantes negros, indígenas e de outras etnias, mulheres, mães cientistas ocupando as pró-reitorias e as equipes de comunicação, para que se cultivem pensamentos que contemplem a diversidade. É essencial estimular a presença e a permanência desses grupos nas mais diversas áreas do conhecimento, bem como o debate dessas questões, não somente entre pessoas do mesmo grupo, para que todos saibam da importância de se combater o racismo, da necessidade de se tomar medidas efetivas e da existência de mecanismos de punição para aqueles que insistem em desrespeitar os outros. Mostrar para todos que esse não é um problema que tem que ser resolvido, falado e enfrentado apenas por pessoas negras e indígenas.

A pesquisadora Zélia Ludwig durante apresentação do projeto “A ciência que fazemos” (Foto: Twin Alvarenga/UFJF)

É necessário incentivar nossos jovens a permanecer na universidade e ter uma visão da importância dessas ações. Criar políticas públicas que incentivem a entrada, a permanência e a mobilidade para cargos mais altos. Fiscalizar o cumprimento dessas políticas durante concursos para provimento de vaga de professores, de pós-graduação e pós-doutoramento. Criar mecanismos que permitam que os alunos de escolas públicas tenham acesso a outros idiomas (e não só o instrumental), à nível de conversação. Cobrar do governo a volta de programas que permitem que o aluno possa fazer intercâmbio, checar o cumprimento por parte do aluno e das universidades acolhedoras.

É preciso criar campanhas que mostrem que racismo e assédio são crimes que tem punição; e também chamar homens e mulheres brancas para falarem sobre esses temas, sobre como eles estão trabalhando para resolver esses problemas.” 

Sobre as pesquisas que desenvolve – e a importância delas para a sociedade: “Minha pesquisa está focada no estudo das propriedades, térmicas, ópticas e espectroscópicas de cristais, polímeros e materiais cerâmicos, com ênfase em materiais vítreos nanoestruturados para aplicações em dosimetria, optoeletrônica e fotônica. Também venho desenvolvendo vários trabalhos na área teórica em colaboração com outros pesquisadores e com meu esposo, o professor Valdemir Ludwig, que também é pesquisador na mesma universidade, onde estudamos os efeitos de solventes nas propriedades moleculares. O meio solvente pode acelerar ou desacelerar reações químicas, pode mudar propriedades ópticas, elétricas e magnéticas das moléculas. Por isso, o estudo teórico dos efeitos de solvente em propriedades moleculares é importante para entender diversos fenômenos de interesse tanto físico-químico quanto biológico. 

Para explicar a aplicabilidade desses campos de pesquisa para uma pessoa fora do meio acadêmico, eu falaria sobre a importância em se criar novos materiais mais leves, porém resistentes, com uma vasta área de aplicações, que permitem a produção de celulares, televisões, etc., com um custo menor – pois, assim, é mais acessível fabricar esses produtos no Brasil. Também citaria a importância da sustentabilidade em se criar materiais inteligentes, combinados com outros e que, por isso, geram menores custos de produção, geração de resíduos e poluição do meio ambiente. 

Zélia Ludwig recebe a Medalha Rosa Cabinda, reconhecimento da contribuição para a construção da cidade (Foto: Gustavo Tempone/UFJF)

No momento, também temos nos dedicado ao periódico QUARKS: Brazilian Electronic Journal of Physics, Chemistry and Materials Science. Por meio dele, pretendemos incentivar os pesquisadores jovens e experientes a publicarem seus trabalhos em periódicos nacionais que visam a troca e o compartilhamento de ideias e de inovações nas áreas de ciência dos materiais, física, química, engenharias e áreas correlatas – focando não apenas na pesquisa básica, mas em aplicações e em temas como ensino, diversidade e equidade na ciência.

Sou membra de grupos como o GT para Aumento da Diversidade e Equidade Racial em Física da Sociedade Brasileira de Física; da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros do Brasil (ABPN); e do do Parent in Science, um movimento inovador que tem crescido a cada dia, discutindo a questão da maternidade e da parentalidade e seus impactos na carreira de mães e pais cientistas. 

Também desenvolvo estudos e projetos interdisciplinares sobre gênero, raça/etnia, maternidade, ciência e sociedade. A proposta é discutir equidade e os direitos da comunidade negra na academia e na sociedade, através da desconstrução de conceitos preestabelecidos, bem como o desenvolvimento de ações que permitam que a ciência possa corrigir as desigualdades impostas pelo racismo estrutural. Um exemplo dessas ações é o projeto ‘Ciência sem fronteiras para a redução das desigualdades’. 

E, para finalizar, participamos junto com outros colegas da UFJF (os pesquisadores Elói César, Valdemir Luwig e Marcos Escher) de projetos de divulgação científica realizados no Centro de Ciências da UFJF. Hoje, estamos mais focados em desenvolver materiais que possam ter aplicabilidades em problemas cotidianos. 

Eu acredito que o meu trabalho mais importante foi montar um laboratório com poucos recursos e ver alunos produzindo vidros, cristais e fibras de vidro com uma tecnologia que foi desenvolvida aqui em Minas Gerais, terra onde eu nasci e que tive que deixar ainda pequena em busca de oportunidades para, então, voltar um dia e criar oportunidades para outros jovens.  Também me sinto grata pelo trabalho que venho desenvolvendo com crianças de comunidades, com a proposta de levar conhecimento e informação para elas. Espero que isso traga mudanças na vida de cada uma.”