Presença de pesquisadores negros nos espaços científicos e acadêmicos abre espaço para novas gerações

A pesquisa científica é um dos pilares da universidade pública. Conhecer quem produz o conhecimento é, também, valorizar a própria ciência. Com essa perspectiva, ao longo da semana da consciência negra, a UFJF publica uma série especial de matérias de entrevistas com pesquisadores negros. O objetivo é abrir espaço não apenas para a discussão acerca da representatividade na carreira acadêmica, mas também sobre quais ações, sejam institucionais ou tomadas por colegas pesquisadores, são necessárias para fomentar o antirracismo em espaços científicos. 

Nesta quarta matéria, entrevistamos os pesquisadores Marcone Oliveira e Wedencley Alves, vinculados aos departamentos de Química e Jornalismo, respectivamente. A primeira, a segunda e a terceira matéria estão disponíveis on-line.

UFJF: Quais ações (promovidas tanto pelas instituições quanto pelos pares pesquisadores) são (ou seriam) significativas para combater o racismo na universidade e, especialmente, no âmbito científico?

“Percebo que, dentro da universidade, especialmente no âmbito científico, o racismo estrutural é velado pela subjetividade individual ou pelo inconsciente coletivo”

Marcone Oliveira: “Para ser sincero, eu não identifico nenhuma ação significativa promovida tanto pelas instituições quanto pelos pares pesquisadores para combater o racismo na universidade e, especialmente, no âmbito científico. O que de fato existe é um discurso de meritocracia. O tema racismo é muito polêmico, por incrível que pareça, inclusive dentro da própria universidade! O racismo é estrutural na essência, uma vez que o discurso de defesa em evidência pela maioria ‘branca’ é de que nunca existiu uma dívida do estado em relação aos pretos escravizados, e que tudo não passa de um ‘mimimi histórico’; ou, por outras vezes, se é que admitem que existe uma dívida de erros cometidos no passado, cabem única e exclusivamente àqueles que os impuseram no passado. Em outras palavras, eu percebo que, dentro da universidade, especialmente no âmbito científico, o racismo estrutural é velado pela subjetividade individual ou pelo inconsciente coletivo daqueles que sempre defendem o discurso apenas em favor do mérito – o qual, na prática, está associado ao desinteresse do sofrimento alheio, posto que seja uma conduta inteligente não se envolver ou se desgastar com um tema que não lhe afeta diretamente ou lhe diz respeito. ‘Cada um com seus problemas’ é o mote de ordem! 

Marcone Oliveira é coordenador do Grupo de Química Analítica e Quimiometria (Foto: Caique Cahon/UFJF)

Neste sentido, o debate do racismo, seja em qualquer esfera de discussão da sociedade, evolui muito lentamente! Se fizermos um paralelo com a realidade na Europa ou EUA, é nítido o maior volume de ocupação dos pretos nas universidades e no âmbito científico. Tomando emprestado os dizeres do Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas (CUFA), é necessário a imposição de uma ‘pedagogia do constrangimento’ efusiva, para que a sociedade brasileira possa despertar e ser mais sensível e proativa em favor do combate efetivo ao racismo – e de uma maneira ainda mais ampla, o combate efetivo de qualquer tipo de discriminação!”

Wedencley Alves: “Eu penso que, quando você é jovem, você busca exemplos de pessoas que estejam em um campo que, por acaso, você está vocacionado; é natural buscar uma inspiração nas áreas que você gosta. Você encontrar representantes negros em cada campo traz a percepção de possibilidade para a sua vida. Muitas vezes, os jovens de grupos minoritários – embora não sejam minorias populacionais, mas minorizados por questões históricas e sócio-econômicas – acabam tendo uma sensação de impossibilidade, de que talvez não seja possível chegar lá, porque, aparentemente, não é um lugar onde negros estejam. O mais fundamental é que ocupemos todas as áreas possíveis – e eu digo todas mesmo. Quanto mais ocuparmos espaços diversos, mais daremos exemplos para outros. E não só espaços entre áreas, mas espaços entre temas, ou seja, ocupar também tipos de pesquisas mais variados. Jovens negros que querem cursar Matemática, por exemplo, e vêem ali professores, pesquisadores ou pensadores negros, já perceberão que isso é possível. A sensação de barreira para a juventude, essa barreira invisível da impossibilidade, é muito grande.

“Todos os objetos possíveis que a ciência permite devem ser ocupados por intelectuais, pesquisadores, cientistas e professores negros.”

Eu me lembro perfeitamente de quando era mais jovem, quando queria fazer Comunicação. Me perguntavam: ‘isso é para você?’. Eu sempre tive muita afeição pela atuação mais acadêmica mesmo, e me questionavam isso. Sugeriam opções mais simples e mais rápidas. Foi minha família, que não tinha tanta condição assim, que permitiu que eu escolhesse esse caminho livremente. Sintetizando, é isso: o importante na Universidade é que pessoas negras ocupem todos os espaços disciplinares e temáticos. Todos os objetos possíveis que a ciência permite devem ser ocupados por intelectuais, pesquisadores, cientistas e professores negros.”

UFJF: Quais são as pesquisas desenvolvidas por vocês – e a importância delas para a sociedade?
Marcone Oliveira: “As atividades científicas investigadas por mim e colaboradores têm como foco principal o desenvolvimento e a otimização de métodos analíticos através da eletroforese capilar, cromatografia líquida de alta eficiência e cromatografia a gás, para aplicações em análise de compostos químicos de interesse na área de alimentos, farmacêuticos, biocombustíveis, metabolômica, petróleo e área ambiental. As ações de pesquisa, dentro do cotidiano, estão relacionadas à análise química molecular, em uma ampla possibilidade de itens, conforme citado a priori, o que muitas vezes evoca auxiliar efetivamente diferentes frentes de necessidade ou interesse, seja na iniciativa privada ou na estatal. 

Para uma pessoa fora do eixo acadêmico, eu destaco a pesquisa desenvolvida para detectar ácidos graxos trans provenientes de processos industriais, cerceando a área de controle de qualidade de alimentos – os quais são consumidos cotidianamente pela população, mas que podem ser extremamente danosos a indivíduos que apresentam restrições a este tipo de dieta, como, por exemplo, hipertensos e cardiopatas. Por outro lado, a análise de lactose em produtos lácteos ou derivados também tem sido tema de investigação, com a finalidade de monitorar alimentos com restrição do referido carboidrato, diretamente associado ao mal estar sofrido por indivíduos acometidos pela intolerância a lactose. Por fim, atualmente, o grupo iniciou atividades de pesquisa em diagnósticos clínicos, a saber: ‘Desenvolvimento de ferramentas de diagnóstico alternativas e não invasivas para SARS-CoV-2’ e ‘Desenvolvimento de ferramentas de diagnóstico alternativo para dengue, zika e Chikungunya’, temas extremamente atuais.”

O pesquisador Wedencley Alves é coordenador do grupo Sensus: Comunicação e Discurso (Foto: Arquivo pessoal)

Wedencley Alves: “Trabalho na interface entre campos da Comunicação e da Saúde, no sentido ampliado de cada uma dessas áreas. Na primeira, Comunicação, os estudos abarcam não só mídias tradicionais, mas também as mídias em rede e os recursos de tecnologias de informação aplicados à Saúde. E, quando eu digo o sentido ampliado da área de Saúde, quero dizer o que também abarca violências que perpassam esse campo de alguma forma – como saúde física, mental, psicológica, funcional. Quando alguém se sente inferiorizado ou percebe que mora em um local de alta precariedade de infraestrutura, saneamento básico e moradia, aquilo vai trazer não só problemas para a saúde física, mas também para a psicológica e a mental. Hoje, boa parte dessas questões de Saúde, neste sentido ampliado do termo, passam pelas comunicações. Não somente em função do relato, mas também em relação aos referenciais. A imagem de si, por exemplo, é muito atravessada pelas ambiências midiáticas. 

Em minha atual pesquisa, eu me pergunto do lugar da Comunicação na Diagnóstica Contemporânea – que podemos definir como o conjunto de saberes que buscam identificar, diagnosticar e apontar terapias para os males contemporâneos. Aqui, não estou falando somente da diagnóstica biomédica, pois temos outros saberes relacionados à saúde, ao bem estar e ao mal estar, como os tradicionais e os alternativos. E a Comunicação tem um grande lugar nessa temática evidente. Nossos meios de comunicação estão aí, centrais na divulgação de diagnósticas alternativas à biomédica. Ao mesmo tempo, também temos uma cultura da medicação, da potencialização do corpo via químicos e fármacos. Isso é mais uma questão de Comunicação, porque é ela que faz chegar isso às pessoas, pelo bem e pelo mal – pelo bem, quando realmente é tratado de maneira honesta e efetiva para o bem estar social; e pelo mal, por exemplo, quando divulgam questões como movimentos anti vacinas e fake news.”