Os dados produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam a existência de um abismo social que separa brancos, negros e indígenas quando o assunto são as condições de vida, como trabalho, moradia, renda, saúde e, inclusive, educação.  Veja na arte abaixo.

Nas reportagens produzidas para o especial dos 60 anos da UFJF, esse abismo esteve representado na fala de ex-alunos negros, que compartilharam as dificuldades enfrentadas no âmbito acadêmico, junto aos colegas, professores e diante da sociedade. Simplesmente porque  ousaram ingressar no ensino superior.

Fui uma aluna desconfortável num ambiente que não parecia ser meu por direito – Sandra Moreira

“Fui uma aluna desconfortável num ambiente que não parecia ser meu por direito. Recebia olhadas, cochichos, risadinhas disfarçadas. Por minha roupa. Por meu cabelo. Por meu humilde lanche trazido de casa. Por minha cor. Por minha existência, vista como uma intrusa”, contou Sandra Moreira, estudante de Letras entre 1987 e 1990. 

Não há dúvidas de que, 60 anos depois de sua fundação, continua sendo um desafio para a UFJF, bem como para as demais instituições brasileiras, enfrentar tais desigualdades, combatendo a segregação racial presente nas esferas política, econômica e cultural da sociedade brasileira.

Num país cuja maioria da população é negra, como podem os espaços de liderança e poder permanecerem ocupados quase que exclusivamente por pessoas brancas? Como podemos alterar essa estrutura herdada de um passado colonial que dizimou os povos originários e escravizou os povos africanos?

Para pesquisadores e lideranças negras, a resposta está nas políticas públicas que visam corrigir assimetrias acumuladas ao longo do tempo. Uma ação afirmativa busca oferecer igualdade de oportunidades a todas e todos, revertendo representações negativas e combatendo preconceitos e discriminações. Daí a importância das cotas nas universidades federais, garantidas através da Lei 12.711/2012.

Primeira federal mineira a adotar cotas

A entrada em vigor da Lei de Cotas em 2012 consolidou o posicionamento da Conselho Superior da UFJF que, anos antes, em 2004, já havia decidido pela reserva de vagas, nos cursos de graduação da instituição, para grupos historicamente excluídos do espaço acadêmico, por meio da Resolução 16/2004.  A UFJF foi a primeira federal mineira a adotar tal medida.

A mestra em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e bacharel em Pedagogia pela UFJF, Giane Elisa Sales de Almeida, destaca o protagonismo do movimento social negro no processo de democratização da UFJF e das demais instituições federais de ensino superior brasileiras. 

Giane Elisa, que acompanhou enquanto aluna, a discussão sobre a implementação das cotas na UFJF, reafirma sua importância enquanto política pública

“As cotas são uma reivindicação dos movimentos sociais negros há muitos anos. Ganharam certa visibilidade com os governos populares que vivenciamos no Brasil durante um tempo, mas já eram questões debatidas por nós. A partir da Conferência Mundial de Durban, na África do Sul, em 2003, o Brasil assumiu que o governo, o Estado brasileiro,  precisava criar estratégias para reparar os efeitos da escravidão que, naquele momento, foi reconhecida como crime de lesa-humanidade”, recorda. 

A educadora cursou Pedagogia na UFJF entre os anos de 2002 e 2005. “Acompanhei todo o processo,  todos os debates nos institutos. Foi uma possibilidade de participar e ver a discussão culminar na implementação das cotas no Brasil, me posicionando politicamente de forma concreta a enfrentar, fazer frente, ao racismo.”

Nesses 60 anos da instituição, Giane Elisa ressalta a relevância das ações afirmativas, mesmo para aqueles que sequer ainda pensam em ingressar na Universidade.

Ter engenheiros, médicos, professores, as diversas profissões, tendo pessoas negras ali representadas, é fundamental para a construção da identidade negra brasileira – Giane Elisa

“O espaço da educação superior é importantíssimo para o enfrentamento ao racismo, tanto no sentido do sujeito que chega à Universidade quanto para criar representatividade para quem ainda não chegou. As ações afirmativas têm também um papel muito importante para quem ainda está no ensino fundamental, nas séries iniciais. Ter representações nas diversas esferas sociais é muito relevante. Ter engenheiros, médicos, professores, as diversas profissões, tendo pessoas negras ali representadas, é fundamental para a construção da identidade negra brasileira”, avalia. 

A criação da Diretoria de Ações Afirmativas

No ano de 2014, o Conselho Superior (Consu) deu mais um passo importante para a democratização da UFJF, ao criar a Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf). O setor, que está vinculado ao Gabinete do Reitor, tem como competência a promoção de condições institucionais que permitam a implementação e o acompanhamento de políticas públicas voltadas às ações afirmativas no âmbito da Universidade. Já no ano de 2016 foi criada a Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas que, ligada à Diaaf,  visa ao combate a quaisquer tipos de discriminação e violência. 

Para professora Fernanda Thomaz, a criação da Diaff foi um passo importante da instituição, assim como dar voz aos coletivos e outros movimentos

“A Universidade teve um ganho muito grande com a criação da Diretoria de Ações Afirmativas. Eu acompanhei a sua criação. Tinha acabado de chegar à Universidade, havia pouco mais de um ano. Não só em termos das questões raciais, mas por conta de todas as questões que a Diaaf comporta: é um lugar, um espaço dentro da Reitoria, que está pensando políticas inclusivas. Isso faz uma diferença muito grande na vida de todo mundo na Universidade, possibilita ter grupos de professores pensando as questões, ter grupos de estudantes”, avalia a professora de História da África da UFJF, Fernanda Thomaz

A UFJF tem me permitido trabalhar de forma autônoma, me possibilitando desenvolver potencialidades e anseios – Fernanda Thomaz

Mestra e doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, a pesquisadora tornou-se docente efetiva da UFJF em 2013. “A instituição me deu liberdade para trabalhar da forma que desejava, a partir da minha da minha disciplina, História da África, da minhas questões. Aprendi muito neste exercício sobre como dialogar, trabalhar de forma orgânica, qualitativa também, com embasamento científico e com compromisso político, social, não apenas com a Universidade, mas com a sociedade em geral. A UFJF tem me permitido trabalhar de forma autônoma, me possibilitando desenvolver potencialidades e anseios.”

Quantos aos desafios futuros da instituição no que diz respeito à equidade racial, Fernanda, que já coordenou na UFJF um curso de especialização gratuito sobre História da África, destaca o fortalecimento da Diaaf e a ampliação do diálogo com os movimentos sociais.

“ Os coletivos também são muito importantes. Historicamente, as universidades não são espaços democráticos. Então, os coletivos conseguem trazer pautas que muitas vezes eram invisibilizadas. A presença desses coletivos só reforça caminhos a serem percorridos, que esses próprios estudantes estão buscando  em diálogo com outros movimentos da cidade. Tem muito a se fazer, mas é preciso valorizar esses avanços.”  

A educação pública é transformadora

Para o diretor de Ações Afirmativas da UFJF e professor da Faculdade de Educação, Julvan Moreira de Oliveira, contribuir para a elaboração de uma política de ações afirmativas na Universidade, quando a instituição completa 60 anos,  é um dos maiores desafios de sua carreira como pesquisador. Oliveira é mestre e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e ingressou como docente efetivo na UFJF em janeiro de 2011. Ele enfatiza o papel transformador da educação pública.

Diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, diz que ingressar em uma universidade parecia um sonho muito distante na infância

“A entrada na universidade pública, seja como estudante, quem diria como professor, não passou dos meus sonhos de infância e juventude, pois filho de um trabalhador braçal de uma fábrica, que ganhava apenas um salário mínimo, e  de uma mãe que lavava roupas para fora para ajudar o orçamento doméstico, eu tive que trabalhar desde a infância em Além Paraíba, minha terra natal. Ser aprovado em um concurso no ano de 2010 na UFJF mudou significativamente a minha trajetória de vida, pessoal e profissional”, conta.

Líder do Grupo de Pesquisa Africanidades, Imaginário e Educação (Anime), Oliveira vem colaborando, ao longo de sua permanência na Universidade, para a transformação das realidades de outros pesquisadores. 

“Venho me dedicando às temáticas de Filosofia Africana e Imaginário Afro-brasileiro com diálogos com redes de pesquisadoras e pesquisadores de outras regiões do Brasil e do exterior. Através do meu trabalho na UFJF, pude contribuir na formação de novos professores, que já somam, de 2014 a 2020, dezessete orientandos de mestrado e doutorado,  além de realizar orientação de trabalhos de conclusão de curso na graduação, especialmente aqueles que fizeram monografias sobre história da África.”   

A História Afro-brasileira nos currículos 

Gilmara Mariosa, no final da década de 1990, com colegas de turma de Psicologia

Na avaliação da doutoranda em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bacharel em Psicologia pela UFJF, Gilmara Mariosa, muitos passos foram dados pela comunidade negra na Universidade dos anos 1990, quando cursou a graduação,  até o dias atuais. No entanto, inúmeros desafios ainda precisam ser enfrentados, por brancos e negros, para a garantia da democratização do espaço acadêmico. Dentre eles, o combate às tentativas de fraude ao sistema de cotas.

“Selecionar melhor os candidatos cotistas e punir os fraudadores do sistema. Na Psicologia, por exemplo, a quantidade de alunos negros aumentou, mas ainda somos minoria.  É importante que estudantes negros possam ter acesso à Universidade, é fundamental o investimento em cursinhos preparatórios populares.”

É fundamental ter a temática das relações raciais nos currículos dos cursos da UFJF, e também oferecer capacitação sobre o assunto aos professores – Gilmara Mariosa

Outro aspecto salientado por Gilmara é a importância da valorização da diversidade no âmbito dos currículos. Para a doutoranda, o debate das relações raciais deve ser  transversal e estar presente em todas as etapas de formação, seja na graduação ou na pós-graduação. 

“É fundamental ter a temática das relações raciais nos currículos dos cursos da UFJF, e também oferecer capacitação sobre o assunto aos professores. Não há como um profissional, por exemplo da Psicologia, passar cinco anos na Universidade sem compreender as relações raciais e todas as consequências do racismo, inclusive em cumprimento à legislação, a Lei 10.639/2003,  que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira”, conclui.