A professora da UFPR, Megg Rayara, é a primeira travesti negra doutora em Educação do país (Foto: arquivo pessoal)

A professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Megg Rayara Oliveira, foi a primeira convidada da série de transmissões ao vivo, produzida pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em comemoração ao Mês do Orgulho LGBT.  Outros três encontros virtuais estão programados para as próximas sextas-feiras, sempre às 19h, no Instagram do Gesed.

Confira aqui a programação completa.

Megg Rayara é a primeira travesti negra doutora em Educação do Brasil. Em entrevista ao Portal da UFJF, a pesquisadora falou sobre a sua trajetória acadêmica e profissional; a importância das ações afirmativas e das políticas públicas de incentivo à educação superior e à pesquisa; os movimentos sociais negro e LGBT. 

Sobre o papel da branquitude e da população cisgênero [que se identifica com o gênero designado ao nascimento]  e heterossexual na democratização da sociedade e das universidades brasileiras, a professora alerta:  “O primeiro passo é reconhecer os privilégios. É entender como estar nesse lugar da branquitude e da cisgeneridade heterossexual facilita o acesso a todos os espaços, inclusive de poder”.

Confira abaixo a entrevista completa:    

Portal da UFJF – Conte-nos um pouco, por favor, acerca da sua trajetória acadêmica e profissional.

Megg Rayara Oliveira –  Sou doutora em Educação e professora na graduação e na pós-graduação no Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente estou na coordenação do NEAB, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR. Para conseguir adentrar neste espaço não foi uma tarefa das mais fáceis. Tentei o mestrado por quatro vezes. Nunca reprovei nas provas escritas, mas era barrada nas entrevistas. Na primeira tentativa, a banca que me entrevistou não conseguiu disfarçar o desconforto com minha presença e ao invés de falar do meu projeto, preferiu me atacar. As pessoas da banca não falavam do meu projeto. Faziam deduções a respeito da minha formação e da minha capacidade de fazer uma pesquisa a nível de mestrado. Quando finalmente consegui furar essa bolha, meu orientador me apoiou incondicionalmente e me colocou em vários projetos que coordenava.

“Para conseguir adentrar neste espaço não foi uma tarefa das mais fáceis. Tentei o mestrado por quatro vezes. Nunca reprovei nas provas escritas, mas era barrada nas entrevistas” –  Megg Rayara

Dei aulas num curso de pós-graduação e várias palestras, interseccionando minha história de vida com minha produção teórica. Quando ingressei no doutorado já sabia como a universidade funcionava e me movi com mais segurança. Somente em 2016 consegui retificar meu nome e gênero e pude defender meu doutorado da maneira que eu queria. Minha defesa foi um acontecimento. Foi uma festa. Depois de conquistar o título de doutora queria atuar como docente. Fiz vários concursos mas novamente era barrada pela banca quando eu chegava para dar minha aula. Não reprovei em nenhuma prova escrita. E em pelo menos um concurso uma integrante da banca sequer me olhava enquanto eu dava minha aula. Ela olhava para o chão, para o lado, arrumava a echarpe… Quando terminei minha aula ela levantou-se apressadamente, não respondeu quando eu me despedi, e ainda verbalizou em voz alta: “Vou ver se chegou alguma pessoa!”, referindo-se às candidatas e candidatos que fariam a prova de desempenho didático. Foram inúmeras as situações de constrangimento que enfrentei durante esses concursos, por isso agradeço imensamente por ter conseguido passar no concurso da UFPR. Entrei pela porta da frente. Fui recebida com respeito no Setor de Educação e nunca passei por situações de preconceito. No mesmo dia que tomei posse como professora adjunta, me credenciei para dar aulas no mestrado e doutorado. Tinha pontuação para isso. Hoje tenho três orientandos e uma orientanda no mestrado: uma menina lésbica nordestina; dois meninos trans heterossexuais e um menino cis gay. Sou o exemplo de que uma travesti preta, pobre, nascida no interior do país, pode atuar como pesquisadora. Sempre digo: cobaia nunca mais! Pessoas trans querem estar nas universidades como pesquisadoras e não como objeto!

“Sou o exemplo de que uma travesti preta, pobre, nascida no interior do país, pode atuar como pesquisadora” – Megg Rayara (Foto: arquivo pessoal)

Portal da UFJF – Você é a primeira travesti negra doutora em Educação do Brasil. É também professora adjunta da Universidade Federal do Paraná, dedicando-se à pesquisa das relações raciais, da arte africana, da arte afro-brasileira, de gênero e diversidade sexual. O Brasil lidera o ranking de mortes de pessoas LGBT, principalmente de pessoas trans. O país também é marcado pelo racismo estrutural, ou seja, pela violência contra pessoas negras. A cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. Comente, por favor, sobre a relevância das ações afirmativas e das políticas públicas de incentivo à educação superior e à pesquisa, para que consigamos alterar este cenário.

“Quando denunciamos a violência que incide sobre travestis e mulheres transexuais no Brasil é preciso fazer um recorte por raça. Em 2017, das vítimas de assassinato por transfobia, 82% eram negras” – Megg Rayara

Megg Rayara Oliveira –   Quando denunciamos a violência que incide sobre travestis e mulheres transexuais no Brasil é preciso fazer um recorte por raça. Em 2017, das vítimas de assassinato por transfobia, 82% eram negras e esses números pouco mudaram. O Movimento LGBT não discute racismo e o Movimento Social de Negras e Negros não discute LGBTfobia. Assim, travestis e transexuais são menos acolhidas. Quando são acolhidas é sempre pela metade. Minha presença na Universidade Federal do Paraná produz deslocamentos. Produz descontinuidades e tenho conseguido chamar a atenção de algumas pessoas para a necessidade de se fazer debates interseccionais. Quando denunciamos o genocídio da juventude negra do sexo masculino é necessário levar em conta que essas pessoas também são vítimas de homofobia e transfobia. Os indicadores apontados pelos Movimento Social de Negras e Negros não fazem um recorte por orientação sexual nem identidade de gênero.

“O Movimento LGBT não discute racismo e o Movimento Social de Negras e Negros não discute LGBTfobia” – Megg Rayara

Assim meninos gays e meninas travestis e transexuais são contabilizadas como homens cisgêneros heterossexuais. Essa postura também é uma forma de violência. O que estou dizendo é que o Movimento Social de Negras e Negros reitera a cisheterossexualidade como norma. Essa situação está relacionada com as pesquisas que discutem relações étnico-raciais que têm sido negligentes com as questões de gênero e diversidade sexual. Adotando uma postura interseccional na pesquisa, certamente vamos ampliar o debate a respeito das políticas afirmativas que também devem ser pensadas a partir da diversidade de gênero e sexualidade. Pensar em políticas afirmativas é pensar de forma interseccional. É preciso destacar que as pessoas negras LGBT também podem fazer uso das políticas afirmativas. Aqui na UFPR, desde o ano passado implementamos políticas afirmativas para pessoas trans na pós-graduação em educação. Agora queremos essas políticas na graduação.

Portal da UFJF – Na sua avaliação, as universidades públicas precisam avançar no que se refere ao rompimento com o racismo institucional e com a heterocisnormatividade? Caso sim, quais seriam, no seu entendimento, os caminhos mais efetivos?

Megg Rayara Oliveira –  A grande dificuldade é convencer as universidades da existência do racismo como parte do seu dia-a-dia. Como parte da sua estrutura. De modo geral as universidades apontam o racismo em outros espaços, mas nunca nelas próprias. O número incipiente de docentes negras e negros nas universidades dão pistas de como essa questão não é entendida como um problema. Com relação à cisnormatização do espaço acadêmico o problema é muito maior, pois para a maioria absoluta das pessoas que compõem a universidade, pessoas trans simplesmente não existem e, quando reconhecem essa existência, é fora do espaço universitário. Até mesmo nos estudos de gênero, os debates sobre pessoas trans raramente dialogam com os espaços educacionais.

A grande dificuldade é convencer as universidades da existência do racismo como parte do seu dia-a-dia. Como parte da sua estrutura. De modo geral as universidades apontam o racismo em outros espaços” – Megg Rayara

Penso que seja urgente o diálogo entre o sistema universitário com os movimentos sociais e, assim, tentar construir políticas públicas que coloquem tanto o racismo quanto a lgbtfobia institucionais em pauta. Não é possível pensar em uma universidade pública que continue reproduzindo discursos e posturas excludentes.

Portal da UFJF – Na sua avaliação, como a branquitude e as pessoas cisgêneros e heterossexuais podem colaborar para a democratização das universidades públicas e, em consequência, da nossa sociedade?

Megg Rayara Oliveira –  A primeiro passo é reconhecer os privilégios. É entender como estar nesse lugar da branquitude e da cisgeneridade heterossexual facilita o acesso a todos os espaços, inclusive de poder. No entanto, a meritocracia ainda está muito enraizada no espaço acadêmico e muitas vezes um exemplo isolado de pessoas não hegemônicas que conseguiram algum sucesso é utilizado para reiterar discursos e posturas meritocráticas. Assim fica difícil discutir privilégios. É a partir de uma autocrítica, de uma avaliação criteriosa de como as universidades são espaços de exclusão, que poderemos pensar em estratégias de acolhimento e democratizadoras.

“Temos que considerar que as universidades foram pensadas por e para homens brancos cisgêneros heterossexuais e pouca coisa mudou. Pensar em uma universidade democrática só é possível quando os debates forem horizontalizados” – Megg Rayara

Durante esse momento de pandemia, por exemplo, que um número gigantesco de estudantes não conseguem acessar atividades remotas, têm muitas pessoas de dentro das universidades defendendo a retomada do calendário sem considerar essa situação. A falta de empatia é muito presente no espaço acadêmico. Temos que considerar que as universidades foram pensadas por e para homens brancos cisgêneros heterossexuais e pouca coisa mudou. Pensar em uma universidade democrática só é possível quando os debates forem horizontalizados. Quando esses homens brancos cisgêneros heterossexuais e de classe média que falam pelas universidades concordarem em ouvir. Quando as reivindicações que emergem de outros espaços forem levadas a sério.

Portal da UFJF – Há alguma questão que você considere importante acrescentar?

Megg Rayara Oliveira – Não.

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