O dia 21 de março poderia ser uma data como qualquer outra, se não fosse o triste evento que a marcou em 1960, quando a “Lei do Passe” regulava os locais onde a população negra da África do Sul poderia circular. De acordo com o pesquisador e diretor de Ações Afirmativas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Julvan Moreira, cerca de 20 mil sul-africanos tomaram as ruas da cidade de Sharpeville para protestar contra a restrição, sendo violentamente atacados pelas tropas militares do Apartheid – regime que segregou a população negra do país durante 46 anos. O episódio terminou com 69 manifestantes mortos e 186 feridos, ficando conhecido como o “Massacre de Shaperville”.
Para preservar a memória dos jovens mortos pela repressão, a Organização Nacional das Nações Unidas (ONU) instituiu, em 1966, o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, por vezes, lembrado também como “Dia Internacional Contra a Discriminação Racial” ou “Contra o Racismo”. Ainda segundo Moreira, a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial afirma, já em seu artigo I, que “Discriminação Racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou o efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública”.
“Nesse sentido, a data tem importância na atualidade brasileira, pois compreendemos que parte da população, principalmente a indígena e a negra (preta e parda) sofre com restrição e exclusão, frutos da exploração herdada de um passado escravocrata que ainda apresenta seus efeitos nos dias atuais, por meio do etnocentrismo”, pontua o pesquisador. “Os direitos humanos são inerentes a todas as pessoas, sem qualquer discriminação. O direito à igualdade e a não discriminação são duas das suas pedras angulares. Mesmo assim, o racismo, a xenofobia e a intolerância são problemas comuns na sociedade brasileira. Da mesma forma, práticas discriminatórias, dirigidas especialmente contra migrantes e refugiados afro-descendentes, são frequentes”, enfatiza Moreira.
Doutora honoris causa, ex-aluna de Filosofia da UFJF e uma das maiores lideranças do movimento negro, do hip-hop e da militância pela democratização da comunicação em Juiz de Fora, Adenilde Petrina Bispo corrobora com a fala de Moreira, afirmando que a data mantém vivo o debate sobre a temática. “Se a gente não tem um dia específico para discutir a discriminação racial, o racismo acaba caindo no esquecimento, principalmente no momento em que a moda é fingir que ele não existe, ao mesmo tempo em que se disseminam notícias falsas para mantê-lo. É fundamental refletir sobre as causas desse problema social e as estratégias que podem ser adotadas para lutarmos contra ele”, defende ela.
A periferia em foco
Para o estudante do bacharelado interdisciplinar em Ciências Humanas e representante do Coletivo Práxis Negra, Dayvison da Silva, a data possui uma importância ímpar por possibilidade uma reflexão sobre as desigualdades ao redor do mundo, “assim como anunciar propostas práticas para sua erradicação e como a questão racial é um dos pilares de sustentação dessas igualdades, tanto internamente como internacionalmente. Esse é um dia de denunciar a forma como os negros são colocados na base dessa sociedade capitalista e a forma como são o principal alvo das desigualdades e violências sociais. Pensar a discriminação racial é não só denunciar a forma como as relações interpessoais são influenciadas pelo racismo, mas também como a desigualdade racial é sustentada e incentivada por instituições, tanto públicas, quanto privadas, para explorar de forma direta ou indireta a população negra”, diz.
“Para as pessoas negras, o combate à discriminação racial é uma luta diária. Travada em todas as horas e lugares. Mas temos que falar da situação da população de periferia, negra e pobre, que está mais vulnerável a intervenções e à violência de forma geral”, defende Adenilde Petrina. “Queremos uma sociedade mais justa e fraterna, com a garantia de direitos para essas pessoas. Contudo, enquanto o racismo não for reconhecido como um problema por toda a sociedade, continuará sendo alimentado. Nesse sentido, a execução da vereadora Marielle Franco tem muito significado. O maior deles é intimidar as pessoas da periferia. Nos deixar acuados e nos impedir de combater e denunciar, tal como ela fez. Porém, mais do que nunca, precisamos nos erguer e transformar o luto em luta”, pontua ela.
“O assassinato de Marielle nos causa uma dor imensa e uma vontade ainda maior de lutar contra a discriminação social que deturpa nossa sociedade”, desabafa o aluno Dayvison da Silva. “Sua morte não é um fato isolado e ocasional, ela faz parte da estrutura social que tem o genocídio, o encarceramento e o adoecimento da população negra como um projeto. Uma sociedade que vê na exploração do negro a base de sustentação para a continuidade dos privilégios de uma elite branca. A morte de Marielle deve nos direcionar a uma luta constante contra o racismo institucional, nos levar a uma reflexão sobre as convergências entre racismo e capitalismo e, consequentemente, uma luta política contra essas formas de exploração”, avalia ele.
Políticas públicas e luta
Para o diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira, a crise da violência no Brasil, especialmente a que atinge o jovem negro pobre da periferia e favelas, atingiu níveis alarmantes. “É evidente que estamos diante de um extermínio que atinge a juventude negra, como apontado no Mapa da Violência divulgado em 2017. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, o que podemos caracterizar como uma ‘guerra civil’ não declarada. Essa cultura da violência, que no Brasil está ligada fortemente com o racismo e o preconceito, aponta a necessidade do Estado na resolução dessa crise por meio de políticas eficazes sobre questões como a reforma das políticas de drogas, de segurança pública e policiamento”, argumenta ele.
“O Mapa da Violência aponta que os grupos menos instruídos são os mais vulneráveis à violência e que os jovens que não frequentam a escola e nem têm empregos são os que têm maior probabilidade de enfrentar a criminalização e se envolver em atividades de grupos envolvidos com a criminalidade”, reconhece o pesquisador. “Sem dúvida, há uma questão racial e de classe relacionada aos homicídios no Brasil, desde o período colonial. Ao mesmo tempo, essas práticas racistas tornaram-se naturalizadas na cultura brasileira, incluindo organizações e instituições que devem transformar esta situação. Isso nos aponta, pensando na diminuição das diferenças entre esse polos, na necessidade de iniciativas de educação e programação social para jovens carentes.”
Referenciando novamente o trabalho da vereadora Marielle Franco, Adenilde Petrina destaca que este precisa ser apropriado por toda a sociedade. “Somos os protagonistas da nossa própria história. A voz dela não pode ser silenciada. Tem que permanecer viva na nossa fala e naquilo que defendemos. Temos que seguir os passos dela, como seguimos os do Zumbi de Palmares, Dandara e outras pessoas que, ao longo da história brasileira, lutaram para garantir justiça social para os negros”, afirma. “Que façamos isso em memória não só dos estudantes assassinados em Shaperville, mas de todos e todas que lutaram contra o racismo e a desigualdade, como Mandela, Luther King, Padre Josimo, Margarida Maria Alves, Chico Mendes e Marielle Franco”, conclui o pesquisador Julvan Moreira.