Lá vai a menina, de bicicleta, descendo a toda velocidade a rua Santo Antônio: vruuuummmm! Bicicleta é tudo para ela! Vai pela avenida Perry, pega a Santo Antônio, sai na Benjamin Constant, desafiando os poucos ônibus que cruzam seu caminho. Volta, vai, vem de novo para a frente da avenida Rio Branco, martírio para a mãe, preocupada. Carro é raridade, coisa de gente rica, muito rica. Mas mesmo assim um dia vem um bonde e mata um homem que ficou na frente dele.
Na rua, feliz, andando de bicicleta: esta parece ser a lembrança mais intensa das brincadeiras de quando Vera era criança. Hoje com 82 anos, incorporam-se à sua história a vida de 12 filhos, 30 netos, 20 bisnetos e um tataraneto. Gentarada, não? Todos queridos dessa senhora que vai contando e brincando, e rindo das histórias que conta, e sempre falando como se todos fossem assim, seus velhos conhecidos, e perguntando: — Não é engraçado? Não é esquisito isso? Não é grande a minha vida?

Vera descia a rua de bicicleta a toda velocidade. Ilustração de Marlene Crespo
Pai patrão foi o dela: a mãe, 15 anos, trabalhava em casa de família, e o patrão ficou com ela. Nada de responsabilidade. Da gravidez da mocinha nasceu Vera, em 29 de novembro de 1926. Apenas biológico, esse pai, italiano, que a menina nunca conheceu. Tinha uma venda na esquina da Santa Rita com a Rio Branco, rico, podia ter deixado todos bem de vida. Mas um português, Bernardino, acabou sendo o pai de verdade, apresentava Vera como filha, dava-lhe tudo. Foi uma tia que contou para ela, quando a mãe estava doente: Não vou morrer com isso comigo, depois tenho que prestar contas lá em cima. Deu uma raiva! A cabeça até rodopiou. Mas já perdoei, tem que perdoar, não tem?
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Vera teve só um irmão, filho de seu pai adotivo, homem inteligente, que trabalhava na Companhia Dias Cardoso, referência em Juiz de Fora: parque gráfico, papelaria, instrumentos musicais, adordeon, violão. Ele trabalhava na tipografia, fazia cadernos. Moravam na avenida Rio Branco, em frente ao Palácio da Saúde, perto do Rei do Arroz: coisa linda de tanta verdura. Só um punhado de casas de cada lado. A bicicleta, Vera catava do irmão, Clério, que ainda está vivo. Subia o Morro da Glória, descia para o Grupo Central, bicicleta não parava!
O pai morreu em janeiro de 1940, e a mãe, quatro meses depois. Ele foi internado, ia operar depois de sentir uma dor nas cadeiras, lá ficou. Não tinha essa medicina que tem hoje, se uma pessoa sentisse apêndice podia contar que ia morrer. Hoje opera até do coração, não é uma coisa esquisita isso? A mãe morreu de tuberculose. Por isso os outros falavam, minha filha, tira chapa. Passei mal, quase fechei o paletó.
Vera, com 14 anos, ficou morando com o avô e a tia. O avô, Isaías, era do tempo do cativeiro. Quando saiu a Lei Áurea estava com 17 anos, não foi escravo, nasceu no ano da Lei do Ventre Livre:
— Ele morava com a mãe da Princesa Isabel, já pensou? Comia na mesma mesa, contava as histórias de lá, coisas que a gente hoje lê em livro, os escravos eram como parentes pra eles. Quando vovô morreu já tinha mais de cem anos, devia ter mesmo, porque quando a gente começa a balançar a perna assim é porque o bicho tá pegando. A tia: Afonsina. A mãe: Onofrina. Minha avó, mulher do meu avô, chamava Leopoldina. Gente doida! Leopoldina! Piuííí, vó!
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Morando com a tia, Vera trabalhou primeiro na Cartonagem Pio XI, na rua Fonseca Hermes, na seção de caixa de bonecas. Fazia as caixas e também os penteados das bonecas. Mas esse trabalho durou pouco, logo ela acompanhou a tia até Santos Dumont, foi trabalhar no Sanatório Palmira, de tuberculosos. Lugar chique: a portaria, embaixo, e lá em cima o prédio, ia subindo por uma alameda, rodeada de eucaliptos. Um dos primeiros internos, nos anos 1920, foi nada menos que Rui Barbosa. No almoxarifado, distribuía os alimentos que seriam preparados para todo o hospital. A tia era cozinheira. Precisava ver aquele pessoal chegando quase morto, e depois de uma semana tomando um copão de suco de tomate tava todo mundo bom, sentado na mesa, comendo. Também de cozinheira Vera trabalhou mais tarde, no supermercado Paes Mendonça, quando estava construindo. Já pensou? Agora pra quem passa lá é o Bretas.
Geniosa, essa Vera. Poucas amigas, quase que apenas uma colega, para ter companhia e poder ir ali e acolá. Mas querendo namorar. A tia, enjoada, queria escolher namorado para ela, ninguém servia, Mas Vera é que escolheu. Na casa da amiga conheceu o companheiro de toda a vida. Casar não casei, peguei o negão! Ele já era casado e separado. Velho? Nada, novinho! Eu ia deixar ele largadão lá? No começa não queria saber de nada, bigodão grande, horroroso. O moço, mandando recado, insistia. Então começamos a conversar, panhamos amizade e a barriga encheu. Aí botou casa, né?
Com ele tem levado a vida, desde os 22 anos. Vera contraiu pleurite com 25 anos, tinha apenas dois filhos. Fiquei ruim, menina! Magra! Morava no Santa Luzia. Primeiro, para o INPS. Mas o marido via que ela estava afundando: foram então em médico particular, se viraram para comprar remédio. Ele vendeu tudo, os móveis, uma antiga espingarda, até conseguir o dinheiro do tratamento. Enfiava uma agulha desse tamanho pra tirar água do pulmão, parecia que tava fervendo, aquela agulha. Custou um ano, mas sarou. Depois tirou chapa, não deu mais nada. Mas sofri! Na doença Vera procurou uma comadre para cuidar dos filhos. Quando melhorou, foi buscar os filhos de volta. Me dá meus filhos! Que doideira.
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Vera é craque em lembrar os dias de nascimento dos 11 filhos – o ano, só alguns ficaram gravados. Um é de 22 de maio, outro de 31 de outubro, outro, 2 de maio, 2 de dezembro, 7 de outubro, 7 de maio, 9 de fevereiro, 15 de novembro… esse é fácil, recorda Vera, é o dia da Proclamação da República. O ano? Uma em 1950, outra em 1960, a mais novinha em 1974, não lembro de mais ninguém… Coisa demais pra lembrar, fiquei 3 anos no 1º ano, lá no Grupo Central, custei pra rancar do 1º ano. Depois larguei, não vou mais, já tô mulher velha.
Mas as histórias vão surgindo, com detalhes: Onildo, Maristela, Rogério, Edna, Joel, Ronaldo, Beatriz, João, Sueli… Todo ano ganhava neném. Uma tem a cabeça meio doida, chamam ela de doidinha, tava assim chorando à toa, meio nervosa, mas faz tratamento com psicólogo, já melhorou bem graças a Deus. Um dos filhos, que também mora com Vera, fica meio encostado, não quer fazer nada, lavar vasilha, cuidar da roupa. A mãe critica e justifica: Não trabalha, não tem ganho, parece que tem problema de nervo. E a caçula vai em cima: Vagabundo, vai lavar a sua roupa, que a mãe tá doente! Ele não fala nada, também não faz nada, não se altera. Lava a roupa dele quando dá na telha: Não sou mulher. Hoje nem o prato dele não lavou. Não faz nada pra mim, sabe? Diz que chega de trabalhar. Mas filho da gente a gente não pode jogar fora, né? Dá o bicho que dá mas tá agarrado com a gente.
A filha mais nova, ninguém esperava que ela nascesse. Vera limpava o chiqueiro, tinha porco em casa, quando começou a passar mal, foi parar no pronto-socorro. Parecia um estouro na barriga. E o médico: Cê tá grávida. Com 48 anos, ela pensava que estava na menopausa, já havia um ano que as regras não vinham. Vera: Eu não sabia de nada, achava que tinha fechado, com essa filharada. Falava com uma vizinha, que também não sabia de nada, a mãe, não deu tempo de ensinar. Eu tava embuchadinha e não sabia, era uma boba, uma bobona daquelas bobona mesmo! A caçula tem hoje 35 anos, era atacadista das Confecções Bruna, depois perdeu o emprego, agora vende roupa por conta própria. É quem mais ajuda a mãe e o pai, se precisar corre com eles para o médico.
Outra filha nasceu em 13 de agosto, e sexta-feira, ainda! Diz que passa aperto porque nasceu numa sexta-feira. A mãe ensina: as coisas acontecem quando têm que acontecer. E Vera conta que já andou ruim, muito ruim mesmo. Casou, o marido ficou desempregado. Morava no Ipiranga, depois de quatro meses sem pagar aluguel foi despejada. Pegamos os trem, de noite, e fomos morar na casa da minha sogra, no Dom Bosco. Uma trempa: a cunhada, ela, o marido e os dois filhos pequenos, ainda quase bebês, no berço, nem andavam. O pessoal da família do marido não gostou, ficou meio de mal. Mas ia morar onde, para onde que eu ia?
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O marido sem trabalho, foi aquela dificuldade. Cheguei a pedir esmola, Deus que me perdoe. Lição do velho: pede, mas não rouba, se roubar vai preso. Nenhum filho é ladrão – uns não trabalham, mas roubar não roubam. Pede que ganha: bate numa porta não dá, mas bate na outra que dá, não é? Mantimento Vera conseguia às vezes na Subsistência, no quartel perto da Estação, no fim da rua Santa Rita. Os meninos iam comigo, eles davam um saco de comida assim, até carne seca, cada pedação. Até hoje ganha cesta básica no Semente, uma ajuda importante, já pensou se eu não ganho esse mantimento aqui? Eu tava perdida.
Com a filharada para cuidar, Vera foi trabalhar na casa das madames, aqui e ali. Principalmente passando roupa, mas também ajudando as outras empregadas. Em qualquer lugar que eu chegar, pode ser na sua casa, se me der almoço eu vou lavar a vasilha, eu acho muito ruim comer e ficar parado. Uma patroa, dona Terezinha, gostava do trabalho de Vera, dava preferência a ela, que passava e engomava tudinho. O que ganhava era para ajudar nas despesas, para comprar uma coisinha ou outra. Ficar tanto tempo em pé passando roupa arrebentou as pernas de Vera. Já operou, botou prótese, mas continua ruim.

Boa parte do que Vera ganha acaba sendo gasto com remédios. Ilustração de Marlene Crespo
E haja remédio: — Meu dinheiro fica mais na farmácia, é um negócio feio. Trezentos pau, mais duzentos que chegou agora, quinhentos. No Centro Comunitário dão remédio para pressão, mas remédio caro eles não dão. Mas ajuda, já pensou se a gente fosse comprar tudo? Para uma dor no osso, que dá aqui, consegui de graça no INPS, custa oitenta reais a caixinha. O marido é diabético, ficou cego de uma vista, tem que pingar um remédio toda noite, cem reais um vidrinho deste tamanho.
— E eu também sou cega deste olho, tá vendo? Eu já nasci assim. É demais de remédio, é ou não é? O velho tem dificuldade pra andar, já levou cada tombo lá fora no quintal que faz até pena, tem que levar ele pra dentro aí vem chorando igual doido. Mas até hoje é muito bom! A gente vive muito bem, não dá pra ficar brigando, se não atrapalha muito.
Até hoje, entre os dois, chamam-se de bem, é bem para cá, bem para lá. Vam’bora bem? Vam’ fazer o quê, nós dois, morrer? Se Vera adoecer, o marido não aguenta com ela. Que que eu tenho que tomo tanto remédio? Aí dizem, Não é nada não, coisinha à toa. Tomar tanta injeção que arrebenta os braços, nunca vi uma coisinha à toa ser assim. Vera anda de bengala. À noite, uma dor na perna! Uma câimbra que parecia que tava me rancando o espírito, até a orelha ficou doendo, já viu isso? Ao andar, daquele jeito assim, já caiu seis vezes, quebrou a munheca de um braço, agora está sem fazer nada, antes ainda lavava uma roupa para fora, ajudava, agora não dá mais. Muito mal faz uma comidinha, outro dia fez uma sopa. Mas que sopinha boa!
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Receber ajuda sempre foi importante na vida de Vera. O vereador Josemar deu um pouco de material para arrumar a casa, porque veio a chuva no outro dia, que tirou o telhado. O vereador Josemar é aquele, Josemar da Silva, advogado, empresário importante, preso em 2011 acusado de fraudar licitações. Preso – mas logo solto. Ajudou – mas só um pouco. O marido de Vera continua com as dívidas de tijolo para pagar, um filho foi o pedreiro, e com os outros fizeram esses cômodos da casa. Já não toma chuva.
Ali sempre tem espaço para os filhos, para os netos. A situação está ruim? Então dois netos foram morar com dona Vera. Atrapalhou o negócio, é trabalho, é doença, a coisa está ruim por lá, enquanto eu tiver um cômodo aqui qualquer um filho que chegar vão montando um em cima do outro. E as filhas dão uma mão ali, pois Vera já não aguenta limpar o chão, pendurar roupa no varal, fazer comida, lavar vasilha. Nem bolo eu faço, essa minha menina é que faz, a gente tá bem sentada aqui aí ela fala: Vem almoçar comigo, com todo mundo. Ela faz uma farofa, um arroz, uma carninha e todo mundo come.
Filhos casados, genros muito bons, nora coisa boa, netos que trabalham, alguns estudaram, uma alegria. Mas tem sempre aquele um, aquele que dá tristeza. São dois netos, da mesma filha, não deram em nada, sabe o que é dar em nada? Um dava pra jogar bola, veio até um homem do Rio para chamar, ele não quis. Preferiu ficar na malandragem, roubando. Ele rouba. Cercava menina aqui em cima, ficava correndo atrás dos outros, aquela confusão. Pegou o celular da menina, bateu, tomou o dinheiro dela. A mãe deu-lhe um couro, mas ele não se sujeitou. No carnaval arrumou uma namorada, ficou com ela e ainda arrumou mais um menino.
— A mulher dele tem dois filhos, bebe uma cachaça, é uma brigaiada. Mora no Jardim Gaúcho, ficava aqui, mas meu velho é criado na roça, no Salvaterra, e não aceita coisa errada. Aqui você não fica não, xô!, vai pra casa da sua mãe. Chegou lá, o padrasto: Xô! Roubou o aparelho de som da mãe dele, novinho, trocou nesse negócio de droga. Agora tá na casa dela, parece que tá melhorando um cadinho nisso. Mas fica fazendo gracinha, uma hora toma um tiro na cabeça aí morre e pronto, aí endireita.
O neto mais velho, perto desse, é bonzinho, está na cadeia já tem mais de ano. Dormia na rua, em qualquer lugar desses ele chega e deita, ficava num barraco ali embaixo, descendo a rua, depois que mataram e cortaram os dois braços de um, aí ele parou.
— Tinha dia que amanhecia, ele entrava de madrugada e dormia na poltrona, que susto que dava! Meu velho não aceitou, porque você fica aqui pra ficar tirando as coisas dos outros, batendo nos outros, vem polícia aqui em casa, não, rua. Rancou esse portão que tá aqui, jogou lá fora e falou assim com meu marido: Você pode comer essa casa com angu, que eu não preciso disso não. Essa bagunça. O que ele encontrava pela mão ele catava. Ali no Cascatinha tem uma família rica que adora ele, tão educado, é Vózinha, vó, não fica com raiva de mim, não tô roubando nada não, tá? Agora diz que ele tá muito quietinho lá na cadeia, mas a mãe dele passou uma temporada sem ir lá ver ele, agora que ela tá indo. Tá quietinho, diz que ele lá canta, gosta de cantar, tocar pandeiro, bumbo. Enquanto tá preso não tá roubando nem fazendo nada pros outros.
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Vera é de paz. Se dá bem com todo mundo. O marido é de outro pensamento. Gosta de bater. Pegava um pau grandão e batia nos filhos todos. E Vera: — Não bate neles não, a pessoa não tá valendo nada, aí é que não vai valer. Se apanhar vai fazer o que eu falar? Não vai. Quando tá querendo, quer, quando não, não adianta esganar. Não adianta ficar bravinho, a gente que é de mais idade tem que ficar mais calmo ainda. Os velhos botam os filhos mais ou menos, mas eu acho que braveza não vale nada, se um dia você casar e tiver filho não vai pensar que você vai puxar a orelha e bater que vai dar certo não, porque não dá. Isso atrapalha, boba!
Ela combina com todo mundo. Se não combinar com Vera, não combina com ninguém. Vou te falar, nem esses marginais que estão aí, eles ficam em pé aqui perto da minha casa ou do lado, fumando a maconha deles, vêm aqui na frente, mija aqui, pode ter moça, o que quiser, que eles fazem essas porcarias aqui, a gente finge que não tá vendo, né? Conversa com eles, peço a eles pra ir na padaria pra mim comprar pão eles vão, aí eu dou trinta centavos ou cinquenta, eles acham bom e a gente vai levando a vida.
Antes era diferente. O pai da nora juntava as moças, iam todos cantar, ganhava um prêmio, passava as horas. Coisa de divertimento, era muito bonito e bom. Não tinha a igreja, lá em cima do morro tem a imagem da Santa, uma porção de católico ia rezar todo dia às seis horas, subia pelo mato afora, um caminhozinho assim. Era a coisa mais bonita que tinha antigamente. Agora, um desmazelo. Sabe aquele boteco ali? Vem cá de domingo procê ver uma coisa, fica assim de gente. Então eles não podia juntar e fazer uma reza lá em cima? Mas não faz não.
O que tem é briga. Até morte já teve aqui em frente. Porque lá do botequim sentou um tiro no outro que tava aqui em cima. Continua essa cachorrada. A gente não pode nem ficar aqui olhando que é arriscado a gente tomar um tiro ainda, tem que ficar dentro de casa quietinha. Um amigo do filho de Vera deu para ele duas caixas de som grandes, limpava bem o terreiro da casa, pedia uma lona emprestada para o pessoal que vende cerveja e coca-cola, começou a dar um baile com aquele som e tudo. Enchia. Agora tem que colocar guarda. De tanto marginal que tem. Andam com revólver e faca, minha filha, e a briga tá formada. Não sei o que eles arrumam, não trabalham nem nada, ninguém entende, né?

Tinha baile na casa da Vera, enchia de gente. Ilustração: Marlene Crespo
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Tô caducando? Não, não está. Troca o nome de um filho por outro, chama trocado. Quem não faz isso de vez em quando, com 12 filhos? Não caduca: reivindica melhorias para o bairro. Por exemplo: Aqui tinha que ter um posto policial. Nós já pedimos isso uma vez aí, mas falaram que ia fazer, ali onde que é o negócio da caixa d’água, aí depois ia ser não sei onde, mas cadê que fez, não fez nada! É falta de interesse! O Bejani? Fez nadinha aqui pro pessoal daqui, mas o pessoal daqui também nem vota nele também. A Prefeitura vai espantando os pobres assim, deixando tudo largado, ao Deus-dará, e investindo em quem tem dinheiro. Para os pobres, nada. Para o Hospital Monte Sinai, pavimentação, incentivo, parcerias, sinal de trânsito que pisca bonito a noite toda.
Lúcida:
— Precisava também de um sinal na avenida ali, volta e meia morre um, estropiado, ou machuca ou morre. Tinha que também aumentar o número de ônibus que não tem quase nenhum, porque se tivesse mais uns dois ônibus acalmava mais, aí não precisava eles correr tanto igual eles tão correndo. Com o hospital novo os ônibus parece que passam numa velocidade que aumentou. A gente nem pode atravessar a rua direito, eu atravesso direitinho, mas meu velho, o carro quase que pegou ele faz duas semanas. Ele cismou que ia na cidade, então tomou o ônibus e foi embora. Quando ele veio pra casa, tava pesado, precisou dos outros ajudarem a entrar no ônibus. Quando chegou na serra ali, lá em baixo, ele parou, achou que tava chegando em casa. O carro quase pegou ele. Se não fosse um senhor que já ia lá segurar, ele tinha enfiado embaixo do carro. Gosto muito daqui! Eu gosto da minha vizinhança que ocê nem imagina.
Lembrança vai, lembrança vem: o bairro, antes, era um buraco. Não tinha essa multidão de casas. Vera tirava água do poço, que está lá até hoje. Depois de um tempo melhorou um cadinho aí a gente comprou a bomba e botou a bomba, cê tem que ver que água que é, quando a gente põe na garrafa e a gente abre parece até que é cerveja que ocê abriu. Eu falo que tem gás essa água. Ocê duvida que acontece isso? Pode, não pode? Os filhos foram todos criados com essa água, ninguém morreu até hoje e nem passou mal de intestino nem nada.
Aposentou por idade, já de bengalinha. Os outros é que foram e arrumaram tudo para ela. O marido também, aposentado igual. Ele recebe a aposentadoria mas não mostra o dinheiro a ninguém. Deve ir tudo para a farmácia. Fica chorando, pede pros filhos, mas os filhos têm também a família deles, não têm? Não sei se ele está caducando, tem umas galinhas aí no terreiro, ele gasta um dinheirão com as galinhas, mas a gente?… Faz tempo, a casa tava caindo aos pedaços, num dia que tava arrumando o telhado, caiu o madeirame todo, de tanto caruncho. Sabe o que o meu marido fazia quando ele recebia? Guardava no forro! Aquele tanto de nota, tudo amarradinho com elástico assim. Dinheiro que perdeu a validade, não vale nem mais um tostão, não dá em nada, tá tudo lá no porão. Naquela época ele era novo, deixava os filhos passar vontade de comer.
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Vera quer melhoras também para ela. Sonha em arrumar a casa, se rebocasse e arrumasse ia ficar até bonito. E quer ficar boa, melhorar de saúde, só que as doenças… A doençada mudou tudo. Estou toda encrencada, menina! Já fui uma vez, quero ir de novo, vou dar um jeito de me consultar, de passar dentro daquele negócio que tem no Monte Sinai, passa dentro e vê a cabeça. Quero ver se me conserto, mas o negócio não tá fácil não. Mas posso estar morrendo na cama que estou brincando.
E pensa em levar o pandeiro aos encontros dos idosos no Grupo Espírita Semente, não sabe mais onde ele está, talvez em cima do guarda-vestidos, ganhou do marido, que foi em Aparecida do Norte e trouxe para ela. Gosta de dançar, mesmo com a perna assim, dança, não dança? Deu show na reunião do Semente. Colabora, junta latinha, caixa de leite e de manteiga para as oficinas de artesanato da entidade, faz brinquedo para o dia de Cosme e Damião, minúsculas poltronas com um papelzinho vermelho colado, as crianças adoram.
Para se divertir Vera liga o rádio, que a filha ganhou e deu a ela, ganhou de um senhor lá da Cemig, que entregou o rádio e falou uma coisa muito feia para ela. A moça tomou raiva do rádio e deu para a mãe. Que comprou a pilhazinha e botou no aparelho. Adora, só escuta a rádio Globo. Televisão? Gosto, mas operei essa vista aqui, e o velho também não enxerga bem, nem anda direito mais.
Outra alegria é saber que tem um tataranetinho. Filho de um bisneto adolescente com uma menina de treze anos, não é casado não, mas teve um caso, agora que ficou mocinho achou que era bonitinha e vão casar, já têm um filho de quase um ano. Ela está tão satisfeita, anda toda arrumadinha, agora parou de estudar por causa da barriga, ficava com vergonha. Tava estudando na quinta série junto com essa minha menina. Ela é quietinha, tomara que ela não se misture não. Posso dar um conselho, não posso? Não é grande a minha vida?

Mesmo com a perna doente, Vera dança nas reuniões do Grupo Semente. Ilustração: Marlene Crespo