Agosto de 1929. A crise abalou o mundo, mas na casa de Tercina tudo seguia igual. Oito anos, tempo quase de largar os estudos, terceira série já basta, olhar os irmãos mais novos, ajudar a mãe, vigiar nenê, que os meninos ajudam o pai. Este, carpinteiro. A mãe, lavadeira. Lavadeira e mãe, muito mãe: 17 filhos, nove meninos, oito moças. Todos viveram, coisa rara. E casaram, e muitos já morreram. Oito anos: tempo de começar a trabalhar fora, primeiro ajudando na casa das professoras do grupo São Mateus. Que professoras, essas: ensinam mesmo: gramática e tabuada na escola, e a ser doméstica, na casa delas. Uma escola que nada muda. A professora:
— Fala pra sua mãe pra vir aqui conversar, estou com vontade de ter uma pessoa pra ajudar em casa, arrumar a cozinha, tudo… Você estuda de tarde, vai lá de manhã, que depois a gente vem direto pro grupo.
Tercina:
— Antigamente todo mundo começava a trabalhar assim, com oito anos, né? As professoras mesmo falavam, na hora do recreio, pra gente ir na casa delas. E fui continuando, às vezes uma mudava, ficava longe, a gente já não ia. E tinha que também ajudar minha mãe em casa, pra não fazer falta pra ela.
As professoras carregavam as meninas para trabalhar, e aquele trocadinho, vinha e dava para a mãe, sempre para a mãe. Um dia vai chegar o dia do pai.
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Nascida em 3 de agosto de 1921, no bairro do Retiro, Tercina viveu alguns anos ali, antes de ir morar no Dom Bosco. Retiro, lugar distante e pequeno: a igreja nem fazia batizado! Corre a batizar a menina na Igreja da Glória. A moça ainda moleque, tempo em que pouco dinheiro comprava muito, a família toda se muda para a rua Pirapora: pai, mãe, e os 17 irmãos. Família grande assim quase merece um livro na igreja só pra ela, para o padre Gustavo batizar e casar.
Mas criança quer brincar: roda a roda, joga peteca, pula corda. Alegria, bom humor, jeito de Tercina. Miúda, voz tranquila. E não tinha essa coisa de não brincar com os meninos não. Moleque brincava junto. E pegou gosto de dançar. Chegava sanfoneiro, sentava debaixo da árvore – que ainda está lá, na casa da rua Miraí -, juntava molecada. Vamos dançar! E os outros: assanhadas! Inveja: não gostavam de ver, mas a gente dançava, dançava.
Dia de domingo tinha brincadeira especial: era a vez das bonecas de pano, de pernas e braços bambos, toca a brincar de comidinha. Um pouco de comida e pronto, estava montado o cenário da alegria.
— Ganhava da mãe um mucado de arroz, um mucado de banha, fazia até batizado de boneca. Meu irmão que mora no Rio era o padre. Minha mãe deu carne, batata e fizeram um fogãozinho de tijolo do lado de fora. Todo mundo à vontade, e teve o batizado. Essa minha irmã aqui de cima, junto com a mãe da Ziza, eram amigas assim. Elas ficaram velhas, mas cumadis! Boneca de pano, terminaram a vida delas desse jeito: cumadi de boneca!
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Antigamente tinha uma vivência boa. Desde criança. Panhava couve na horta, balaizim de verdura vinha dos botequins próximos ou do armazém do Antonio Passarela, quebra-galho pra qualquer precisão. Uma parte dos mantimentos descia de sítios perto do bairro, também falado arraial do sapé, de tanta casinha dessa que tinha ali. Tempo bom, leite fresco, vaca, bezerro perto. Porco, o pai de Tercina criava em casa. Limpava tudo, e preparava aquele pernil assim, corado, vermelhinho. Era banha, gordura de porco, todo mundo comia com gosto. Agora mudou:
— É aquele porco branco que a gente vê na televisão, esquisito, eu acho que é diferente. Hoje a carne tá branca, branca e dura. Não gosto de porco mais não. Ah, é um bicho que a gente nem sabe… Tem também uns ovos aí que eu te falo que acho que não é galinha não, tem uns ovos aí muito esquisito. Tão misturando ovo de outros bicho aí. Eu pico a banana na comida e tô comendo muito bem.
Mas no tempo de antes a vivência era na base do respeito, principalmente com os mais velhos: chave para entender Tercina. O respeito não era só dentro de casa não. Se você vê uma pessoa de idade na rua carregando peso, você ajuda. Outros tempos. Lição dada pelo pai e pela mãe, que ensinavam a viver. Tinha que seguir o que eles falavam, não havia televisão para dizer ou desdizer nada. Os pais eram bons porque severos: melhor obedecer.
— Se levava um pescoção, é porque tava merecendo.
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O pai. Carpinteiro. Ele deixava brincar na rua, mas quando era para entrar, dava a hora. Assobiava chamando: — O pai tá chamando, a gente escutava daqui, ia uma atrás da outra, tinha que ir, né?
Trabalhava em obra, aqui e ali, por toda a cidade. Aonde ele ia, as filhas levavam a marmita. Tercina andou muito assim de pé no chão e chinelinho nesse Juiz de Fora, descia a São João, a Santa Rita, aquelas ruinhas, umas casinhas, naquele tempo. Às vezes carregava o almoço para os irmãos, que também trabalhavam em construção, tudo a pé, até que apareceu o bonde, mas só na rua Direita – ou seja, a avenida Rio Branco.
Ensinou o valor do trabalho para os filhos: o mais velho, ele levava para o serviço e ia ensinando: me dá esse pau aí, põe aqui, serra aí, na hora de pregar também. Um virou pedreiro, outro carpia, cortava mato, cuidava de horta, muitos foram para o Rio, ainda tem um casal lá. O mais velho morreu com 90 – morava no Grama -, uma irmã, com 81 anos.
E Tercina é igual ao pai: é católica. Até converso com espírita, batista, Assembleia de Deus, bom dia e tudo, mas na vida da gente, não toco em religião não, não toco. Sou igual o meu pai. Meu pai falava: – Não precisa sair daqui e passar ali, porque tudo é uma coisa só, você segue naquilo que você começa. Porque meu pai, na Semana Santa, ele tinha um respeito, sabe? Então ele falava que quando tava na roça, subia e ficava sentado sozinho, lá em cima, que ele diz que lá ia conversar com Deus, ia conversar com Jesus. Ficava, quietinho lá em cima, aí vinha assim alegre, sastifeito.
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E tem a história da irmã que morreu de paixão. É, de paixão.
Era a mais quieta das meninas. Não gostava de bagunça, não entrava na brincadeira, era comportada, não pulava corda nem nada, sabe? Ela gostava de tocar era violão, sentava num lugar e tocava violão. Depois apareceu um rapaz, que alegria! Mas o moço teve um acidente numa estamparia da avenida Rio Branco, ali em frente onde era o Estela. Teve um acidente numa máquina e morreu. Depois que deu esse acidente ela no emprego trabalhava quieta, não conversava com o patrão. Trabalhava em casa de família, era a dona da casa. Foram viajar, quiseram levar ela, e ela, não. Nunca mais pegou o violão, aí foi indo, foi indo, foi murchando, foi emulecendo. A mãe levava no médico, estava emagrecendo, o médico: espinhela caída. Morreu dormindo. A gente achou que ela estava dormindo, foi mais aquela paixão de ter perdido, nunca mais ela pegou no violão.
— Tinha hora que nós chamava ela de boba: – Você é boa, você é boba, você é boba!
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O pai de Tercina morreu de repente, com 72 anos. Estava fazendo limpeza no quintal, tempo de chuva, de muita chuva, roçando bananeira, com medo de umas folhas caírem em cima dos fios de luz. Deu uma canseira. Avisou Paulo César, o neto: Vovô vai sentar aqui agora porque o vovô tá cansado. Sentou numa pedra que era usada pra bater roupa. Sentou e tombou para o lado, segurando a foice. Paulo César: Vovô caiu, vovô caiu! Os filhos não tinham chegado do serviço, quando viram ele já estava morto. Morrer de repente assim é bom, né, porque não sofre.
Mas a mãe dela se foi antes. Tinha palpitação, problema de menopausa, sofreu mais um pouco que ele. As filhas tiveram que ajudar, a obrigação de casa, quem chegava primeira ia adiantando. Porque era a mãe que cozinhava, lavava, os filhos e filhas saíam pra trabalhar.
— Minha mãe morreu, posso falar que nossa casa acabou. Ela fez tanta falta! Parecia que tinha uma paixão pela mãe. Ela era uma mãe boa, mesmo que ela dava às vezes uns tapas, mas a gente tava merecendo. Tudo bem, né? Mas ela, nós era muito amiga, nem parecia que era mãe de tantos filhos. Falava o que era certo, o que era errado, pra gente não cair, né?
Morreu com 52 anos. Quase não saía de casa, lavando roupa para fora, às vezes ia à missa. Ensinou muita coisa, a trabalhar, a respeitar os mais velhos na rua. O pai de Tercina nunca mais casou. Ficou assim: enquanto morasse algum filho em casa, não ia colocar mulher para dentro. Quem chegava antes do emprego ia cuidando de tudo, fazia janta, lavava a roupa dele, a vivência foi assim, um ajudando o outro.
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Tercina casou seis meses depois de sua mãe morrer, com 22 anos. Casamento simples, ainda com aquela tristeza, casou e pronto, nada de festa. Durante o namoro… bem, namorar era sob o olhar vigilante do pai, sempre. O interessado no namoro tinha que pedir para o pai, e namorar só dentro de casa, não na rua. Vou dar o consentimento, mas quem manda nas minhas filhas sou eu. Ficava no pé, se não estivesse andando na linha, dá-lhe pescoção, na filha e no namorado. Não deu problema, ninguém casou esperando neném, nada disso.
As primeiras paqueras era em bailezim aí nessa rua, o pai acompanhava até lá na esquina, namorar mesmo só depois dos 18 anos. Os irmãos iam junto. O pai avisava: está por conta de vocês. Oscar e Alcides. Oscar era mais certinho, mais calado, sério, não havia como tapear ele não. Alcides dava uma mão para as meninas. Dançava também, mas quando o baile estava acabando dava uma sumida, ajudava um mucadinho, deixava bater um papinho, aproveitar um pouco.
Dançar é uma das paixões de Tercina. Nas festas não tinha paciência para ficar conversando, muito tempo sentada, não podia ver um pandeiro, uma sanfona, uma caixa batendo. Mas casou com Geraldo, do bairro mesmo, trabalhava no armazém do Antonio Passarela. E que não era chegado num baile.
— A gente queria mais é dançar. Às vezes chegava um namorado e eu pedia pro meu irmão dizer que eu não tinha chegado do trabalho, ou tava com dor de cabeça, porque eu queria ficar com as colegas, e aí o bobão voltava pra casa. Eu queria é pular corda, jogar peteca. Tirava o sapato, deixava no canto, a gente ficava cansado de brincar mas no outro dia acordava cedo e tava no serviço.
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O trabalho faz parte da vida de Tercina desde menina. Ajudava a mãe, na casa, onde e quando podia. Saía da escola, ia pegar a roupa, trazia para a mãe lavar, carregava a roupa lavada de volta. Depois foi trabalhar em casa de família. Quando casou deixou de trabalhar fora. Mas continuou a vida de lavadeira, pegando trouxa de roupa para lavar. Até hoje, aos 87 anos, segue carregando trouxa. Menos que antes, é verdade.
— Eu lavo roupa aí pra uma mãe e filha há mais de quarenta anos. Às vezes eu quero parar, mas elas não me deixam não, falo para elas arrumarem outra, mas elas não arrumam não. Tem um advogado aí também, doutor Dário, ele também é outro também, que já tá com a cabeça branca. Eu manobrava tudo dentro da casa dele. A mãe dele era uma grande amiga minha, mas tem muito tempo que ela morreu, aí ficou esse casal de filho. Eu não sou assim de largar a casa e visitar eles, mas eles não me esquecem.
Gostava de lavar roupa na bica, ali perto, água limpa, na rua Pirapora. O asfalto sufocou a bica. Uma pena, deviam ter deixado, pois a água era clarinha que só vendo. E quem passa, vai matar a sede como? Lavava roupa lá, quarava. Uma lavadeira ajudava a outra, ficava tomando conta, era muito bom mesmo. O lugar era usado também para apartar bezerro na hora de tirar o leite. As lavadeiras não ligavam: espantavam os bezerros, para não pisar na roupa.
No levar e buscar a roupa, bota a trouxa em cima da cabeça. Patroa, se tinha que sair, de vez em quando ia de carro levar a roupa suja, buscar a limpa. Mas quase sempre, lá vai e vem Tercina, amarra a trouxa e põe na cabeça. Nada de roupa de criança, era roupa de cama, de banho, pesada. Duas trouxa, às vezes, uma em cima da outra, e mais uma debaixo do braço. E não caía não! Filha também ajudava, se a roupa era muita.
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Ao casar, Tercina saiu da casa do pai, na rua Pirapora, foi morar com a avó, que estava sozinha. O que ganhava lavando roupa ajudava nas despesas. Foi assim que colocou luz e água na casa, ali era poço e lamparina. Ficou ainda muito tempo morando com a avó, que ficou depois velhinha e acabou indo viver com uma tia. Tercina já está nessa casa há sessenta anos, regularizou o terreno, com escritura, tudo certinho.
O marido pagava os mantimentos, Tercina, às vezes a luz, a água. E ajudava sempre os outros com o que ganhava. O pessoal: tô precisando disso e não tenho em casa. Um caderno, um lápis, um remédio. Eu ia nas minhas latas, tirava e dava. Sempre quis dirigir a própria vida. Quero ser independente pra ninguém falar: eu te dou isso, eu te dou aquilo. Ah!, minha vida foi boa.
Antes de trabalhar no armazém, o marido de Tercina preparava piso de sinteco. Morreu quando estava quase para aposentar. Isso já faz mais de 30 anos. Tercina não quis saber de outro casamento. Ia ficar com vergonha dos filhos, conheci um homem só. Planejou a vida para ganhar neném só a cada dois ou três anos. Depois resolveu: Vou parar com isso que tou ficando velha.
As patroas nunca pagaram o INSS dela, nem Tercina cuidou disso por conta própria, o dinheirinho que tinha ia para completar algo em casa ou para os outros. Naquele tempo não se exigia muito INSS, só pros homens, e nós, ó. Vive hoje da pensão do marido, e completa com o ganho das trouxas de roupa que ainda lava. Tudo apertado. Antigamente recebia de quando em quando uma roupa que as patroas não queriam mais, roupa de criança. Também tinha ajuda na Casa da Providência – a Casa da Sopa – e no Grupo São Mateus. Agora, pega a cesta básica no Grupo Espírita Semente todo mês.
Teve quatro filhos, dois casais. O caçula já está com 60 anos. Os filhos homens, um é motorista, levava ônibus, agora carreta, e o outro é porteiro. Estão se virando. As filhas, em casa de família, como a mãe. Nenhum estudou muito, foram para o Dom Orione, pararam assim que arrumaram serviço. Como a mãe. E nenhum tem aposentadoria acertada – como a mãe.
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Os netos, principalmente as netas, já tiveram um pouco mais de estudo. Algumas chegaram a tirar o ensino médio, mas outros fizeram só até a 3ª série mesmo. Tem uma em casa de família, tem outra que trabalha em escritório, mas quer melhorar, faz curso técnico à noite, pois o patrão tá pisando na bola, não dá aumento pra ela, mais de dez anos no mesmo serviço, chega cedo, faz hora extra e nada.
A primeira neta tinha o berço ao lado da cama de Tercina, de pequena ficava mexendo em tudo, fazia guerra dentro da casa dela e tinha que ir pra casa da vó. Quando Tercina saía para lavar roupa e demorava, Tá escurecendo e a vó ainda não veio, cadê a vó?! Ela chegava, e a neta, toca para lá! Ficou assim até sair para casar. E falava: Mãe avó, mãe avó.
— Não posso cair ou fingir que caí que elas perdem a cabeça.
Só um dos netos é meio desgosto para Tercina. Só anda com gente que não presta, que gosta de maconha, coisas assim, mas ele não é de brigar, de desrespeitar. Conversa, diz, Vó, a senhora ainda vai ter orgulho de mim, Mas ela, Não é depois que eu morrer não, depois que eu morrer eu não vou ver nada, o que eu vou ver se eu estou debaixo da terra, tem que ser agora pra mim ver, eu falo assim com ele. Tenho muita pena dele por causa disso. É conforme o pai falava: Os dedos da mão não são iguais, então ele é assim, o que veio mais sem sorte, mais fraco.
Antigamente era diferente, deitar cedo, conversar mais só sábado e domingo. Não era essa vivência de hoje, tumultuada, atrapaiada. Assobiava, obedecia. Agora pode chamar. Hoje as crianças estão aprendendo muito depressa. Aquilo que é bom e o que é ruim.
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Essa vivência boa de outro tempo é lembrada com carinho e alegria por Tercina. A vida lhe foi boa. Às vezes o pai falava: — Nunca negue um pedaço de pão, nunca negue um copo de água, porque se a pessoa pediu é porque tá com sede. Tá precisando. Se pediu uma coisa é porque tá com fome. Vocês nunca neguem! Tanto faz na rua como dentro de casa, vocês irmão é um pelo outro também. E é por isso que eu falo, assim, vivo bem, vivo bem. Porque eu faço aquilo que não precisa de ninguém me chamar atenção.
Saía do emprego, não tinha luz nem nada, aí sempre achava um, Você vai subir?, Vou, Então fazia companhia, sabe, se a gente chegou primeiro, Até amanhã, amanhã a gente se encontra outra vez. Querida no bairro. Vai pra missa, se volta sozinha já alguém acompanha. Não são nada meu, são meus vizinhos. Para todos é avó: — Eles me tratam assim, eu aceito. Hoje não, tá tudo agitado.
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Claro, acabou o tempo em que ali passava muita carroça de boi, carregando lenha, trazendo leite. Boi e cavalo. O pobre? Carregava o feixe de lenha na cabeça mesmo, Tercina descia brincando. Amassou muito barro por ali. Tirava o sapato, levava na mão para não sujar. Todo mundo assim. Para igreja, levava um pano, assim limpava os pés antes de entrar, era uma capela, não cabia quase ninguém. Não tinha luz na rua, a gente aproveitava muito a lua, quando vinha aquela lua brilhando, ficava aquele claro, foi bom, sabe?
Agora mudou. Puseram luz na rua, com muito custo, era aquela lampadazinha pequenininha que só iluminava onde tava o poste e pra frente tava escuro. Puseram asfalto. Tem ônibus, mais escola. Mas no final da rua Miraí devia de ter uma escada pra poder ir até o supermercado. Tem jeito de fazer, mas a Prefeitura não faz. E tiraram o campinho que ficava onde é o Monte Sinai, e ali no Cascatinha também. Muita gente nova no bairro, parece que querem tirar os antigos. Os novatos estão comprando. Mas aqui não é ruim não, sabendo viver, que todo lugar tem gente mais sem juízo. Todo mundo fala: – Daqui eu não saio, vou ficar aqui.
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Corpo franzino, saúde invejável. Remédio, raramente, nenhum de tomar todo dia. Muito chá de erva, assim, de horta, a mãe é quem ensinou. Difícil ir ao médico, não tem plano de saúde, só vai mesmo ao postinho. Se tem atendimento do Semente, ela aproveita. Antes de construírem o Hospital Universitário os médicos iam atender de vez em quando no grupo escolar, então ela foi. Bom: fez exame de sangue, urina, peso, altura. Aí a médica falou, Tá tudo certo com a senhora. Eu saí rebolando.
Não tem atrito com ninguém, alguém da rua pode estar trêbado que Tercina passa e abana a mão, cumprimentando. Maior briga foi com uma mulher que mora perto, mas o motivo era justo: a vizinha batia no filho, menino bom, não falava palavrão nem nada, só porque queria brincar mais um pouco. O rapaz, uns 15 anos, até levava o irmãozinho lá na bica, para a mãe dar de mamar. E a mãe socando ele: só brigando mesmo. Tercina ficou brava: –– Vontade era entrar lá, tirar ele e levar pra casa!
No mais, sempre de bom humor, amiga de todos. Desde criança, rindo, fazendo palhaçada. Pra mim é igual se estou arrumada ou esmulambuda, sou sempre a mesma. O que eu falar é certo. Não é mentira. É isso que foi a minha vida aqui e ainda vai continuar assim. Bom não é só comida boa não, é conviver, né? Nos lugar que eu vou eu também sei entrar, sei sair. Não quero ser melhor do que ninguém, sabe? Eu quero ser igual.