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O distrito da Cidade Velha

A miséria urbana da modernista Barcelona

O distrito de Cidade Velha – onde se situa um dos destinos turísticos mais importantes do mundo, as Ramblas – é formado por quatro bairros: Gótico, Centro Antigo (Casc Antic), Raval e Barceloneta. É nesse distrito onde está a maior concentração de imigrantes de Barcelona: calcula-se que quase 37% da população desses bairros seja formada por estrangeiros. Concentra-se aí boa parte da miséria urbana de Barcelona, é uma área extremamente deteriorada, apesar das tentativas de revitalização feitas pela Prefeitura. Em parte desses bairros há lojas finas, museus importantes, como o de Picasso, o suntuoso e modernista Palácio da Música Catalã, antigas mansões da nobreza de Barcelona. Aí está a sede da Generalitat e da Prefeitura, a Catedral. Mas em todas as estreitas ruelas se vê, além de grande quantidade de imigrantes – imigrante, aqui, como sinônimo de estrangeiro pobre -, inúmeros desempregados, espanhóis idosos que vivem de baixíssimas pensões, misturados a punks, anarquistas, aditos ao álcool ou a outras drogas, hóspedes de hostais e apartamentos com banheiros coletivos e que volta e meia são objeto de denúncias por falta de higiene e superlotação.

A proximidade com as ramblas e a circulação de turistas atraem à Cidade Velha de Barcelona pequenos delinqüentes, batedores de carteira, de celulares e de bolsas. Entre o Museu Picasso e o recém-reaberto Mercado de Santa Catarina vêem-se cortiços, imóveis abandonados por causa do alto custo de reforma e que em seguida são tomados pelos “okupas”. O prefeito Joan Clos, do Partido Socialista da Catalunha, que se jacta do protagonismo internacional de Barcelona, fecha os olhos ante o abandono dos imóveis em torno do Mercado, reinaugurado num curioso dia de festa em que um pouco de chuva resolveu quebrar a seca rotina da estiagem,  surpreendeu a todos e conseguiu encontrar goteiras no glamoroso e novo telhado estilo modernista. Nas ruas, o cheiro de urina, e muitas vezes as fezes de gente e de cães se misturam; como em muitos outros lugares da cidade, caminhar nas calçadas, ali, é exercício de alto risco. Há intensa campanha contra os chamados “incívicos”, que deixam latas e excrementos durante a noite ou de dia. Uma campanha de “civismo” liderada por Clos quer criminalizar dormir na rua, pedir esmola. Mas após cada blitz de limpeza da Prefeitura, inúmeros locais da Cidade Velha voltam a ser ocupados pelos moradores de rua, pelos bêbados ocasionais ou contumazes, de após a balada da cidade que se orgulha de ser um dos destinos preferidos dos turistas, inclusive daqueles que chegam na sexta-feira à noite e se vão no domingo, deixando os escombros atrás dos vôos de baixo custo.

O distrito, bairro a bairro

 

 Gótico

O bairro Gótico é o nucleo da formação de Barcelona, seu bairro mais antigo. Ainda se podem ver vestígios das muralhas romanas, dos séculos 3 e 4 a.C., e edifícios de épocas posteriores, que se levantaram apoiados nessas construções, além de muitos outros importantes monumentos históricos. É aí que estão a praça do Rei, a Catedral, a rua dos Condes, a rua do Bispo – a mais importante da cidade romana -, e a Praça de Sant Jaume, local em que se entrecruzavam as principais ruas da antiga Barcino, e que ainda hoje é ponto crucial de Barcelona, onde se encontram as sedes da Prefeitura e da Generalitat. 

Centro Antigo

O Centro Antigo é a extensão medieval da cidade, que reúne vários pequenos bairros cujos nomes remetem às instituições religiosas que existiam ali: Sant Pere, Santa Caterina, Sant Agustí. Aí está também o bairro da Ribeira, com inúmeros palácios, alguns dos quais transformados em museus, e a imponente basílica de Santa Maria do Mar, centro da nobreza da cidade dos séculos 13 a 17. A Ribeira concentrava a maior parte das manufaturas da cidade e foi o centro do comércio marítimo de Barcelona, antes da criação da Barceloneta.

 Raval

A origem do Raval remonta ao século 14, quando a cidade cresce para além das antigas muralhas romanas, ocupando uma área que até então era agrícola. Sua evolução acompanha a atividade comercial e industrial da cidade. No século 17 se constróem as primeiras manufaturas e começam a chegar os operários. Posteriormente o bairro é urbanizado e se intensifica a construção de moradias de péssima qualidade. É uma zona que acolheu e acolhe diversas correntes imigratórias, procedentes de comarcas catalãs, de outras regiões da Espanha e, mais recentemente, de regiões pobres do mundo, como o Paquistão, as Filipinas e o Magreb.

Como bairro eminentemente industrial e operário, desenvolveram-se ali importantes movimentos trabalhistas, principalmente anarquistas. Ali ocorriam reuniões de dirigentes operários e todos as categorias operárias manifestavam suas lutas. Como era local de residência dos dirigentes anarquistas, no Raval muitas vezes eram vistos os pistoleiros pagos pelos industriais para assassinar os líderes operários.

A presença de marinheiros, de prostitutas, os roubos e a chegada da heroína, no final da década de 70, isolaram ainda mais o Raval. O nível de degradação do bairro estava provocando a saída dos moradores com mais possibilidades, empobrecendo ainda mais a região que, em função do tráfico de drogas e dos constantes conflitos, tornou-se conhecido também como a “Chinatown” de Barcelona.

Após o fim da ditadura franquista, o bairro reivindica urgentes melhorias, devido a sua situação de extremas carências: excessiva densidade populacional, insegurança causada pelas fábricas no térreo das moradias, falta de espaço público, analfabetismo e absenteísmo escolar, alta taxa de mortalidade, casas insalubres e diminutas, prostituição, situações de extrema pobreza.  As administrações pós-Franco impulsionaram a criação de serviços sociais e culturais, e em 1988 começa a reforma urbanística do bairro, no contexto das transformações de Barcelona para as Olimpíadas de 1992. A partir desse momento, desaparece um número considerável de casas em mau estado e se altera definitivamente boa parte da paisagem, abrindo-se espaços públicos e avenidas, instalando-se aí importantes centros culturais da cidade (como o MACBA e o CCCB). Apesar disso, encontramos no Raval grandes contrastes. Se podem ver dois Ravais: um do Norte, renovado e ocupado por entidades culturais e universitárias, que atrai uma população jovem e moderna (com muitos bares e intensa vida noturna), e um do Sul, marcado por ruas estreitas, escuras e sujas, bastante desestruturado e em más condições, que acolhe uma população que se encontra em situação de intensa precariedade econômica.

É também no Sul do Raval que se encontra uma das quatro narcossalas da cidade, espaços criados pela Saúde pública catalã para venopunção assistida, como forma de garantir que usuários de drogas injetáveis façam uso de seringas e agulhas descartáveis, evitando propagação de doenças. Tais iniciativas, segundo as autoridades sanitárias, têm atingido seu objetivo, mas os vizinhos evidentemente se queixam: os aditos a drogas vivem em torno da sala instalada nos baluartes medievais das Drassanes (Estaleiros) de Barcelona, defecando, urinando e vomitando em todos os cantos, deixando seringas e pedaços de gaze ensangüentados nas calçadas e nos jardins do Museu Marítimo, molestando os aposentados, entrando nas lojas para pedir dinheiro ou ameaçando as pessoas com seringas usadas. Os moradores da região ameaçam iniciar protestos como os que acontecem no bairro (mais classe média) de Vall d’Hebron, no qual os vizinhos da narcossala interromperam por 22 semanas consecutivas, às quartas-feiras, o trânsito na imporante Ronda de Dalt, como foma de protesto. Até agora inutilmente, pois a instalação de tais espaços em locais isolados, distantes dos centros urbanos, como se reivindica, afastaria dali também os usuários de drogas, que continuariam alimentando as altas cifras de doenças transmissíveis e de casos de overdose. 

Barceloneta

Primeiro bairro geométrico de Barcelona, foi criado a partir de 1753, para alojar os moradores das casas derrubadas para levantar-se a Cidade Militar de Felipe V. Os imóveis, planejados a partir de um modelo único, ocuparam a área sedimentada da orla marítima. Até 1857 esteve sob jurisdição militar, e as casas eram térreas ou com apenas um andar, para permitir que os projéteis disparados desde o forte da Cidadela pudessem atingir as embarcações próximas à costa marítima. A administração do bairro passou, então, à Prefeitura, que cedeu à pressão imobiliária e permitiu a criação dos “quartos de casa”: apartamentos entre 25 e 30 metros quadrados, resultados da divisão por 4 da tradicional casa do século 18. Permitiu-se também que se ampliasse o  número de andares, que passou muitas vezes para seis. Nesses apartamentos, de 30 metros quadrados, chega-se a ver três minúsculos quartos, sala, cozinha e um ainda mais diminuto banheiro. Até hoje não possuem elevador, pois nunca tiveram pátio interno, espaço geralmente utilizado para sua instalação. Dos 5.631 apartamentos de Barceloneta, 3.664 são “quartos de casa”.

Bairro marítimo e operário, até meados do século 19 a Barceloneta era um bairro em que a vida de seus habitantes era relacionada essencialmente ao mar: fabricação e venda de material para pesca, atividades portuárias, construção de barcos a vela. Era, também, um dos bairros de prostituição de Barcelona. A partir do século 19, a industrialização começou a mudar o perfil do bairro, pois a proximidade com o porto facilitava a carga e descarga de materiais pesados. Com isso, surgiram indústrias de metalurgia e combustível, posteriormente substituidas por pequenos estabelecimentos, como oficinas de jóias e relógios, confecção, produtos químicos. No século 20, no entanto, a expansão industrial se dirige a outras áreas da cidade. A Barceloneta vai se transformando em balneário, em local badalado, turístico, e abriga hoje uma das maiores concentrações de restaurantes de Barcelona.

A proximidade com o mar e do centro da cidade fazem hoje do bairro um dos focos de especulação imobiliária, e a Prefeitura se prepara para realizar mais uma “operação limpeza” junto à população humilde que ainda reside ali, ao lado da presença cada vez maior de turistas. A primeira etapa do plano de reurbanização é desalojar os moradores para construir elevadores. Embora a Prefeitura garanta que manterá a fisionomia da Barceloneta, será necessário demolir parte dos 866 imóveis, e a teme-se que ocorra o mesmo que nos bairros do Raval e Santa Catarina. Para onde vão os moradores? Está se construindo um conjunto de moradia “provisória” na Estação de Sants, mas por enquanto a Prefeitura ainda não definiu o que vai fazer em definitivo com quem for desalojado. Desalojados pelos castelhanos no século 18, e agora, desalojados pelos próprios catalães, no século 21.