Memória
O sonho de retomada de um antigo império
Para quem não vive na Europa nem se interessa muito por nacionalismos e regionalismos, as lutas por independência na Espanha são quase sempre associadas apenas ao País Basco. A presença do ETA – Euskadi Ta Askatasuna (Pátria Basca e Liberdade) – na mídia é constante, e seus atentados ultimamente têm sido deflagrados declaradamente com essa intenção, mostrar que a luta dos bascos existe, e que há significativa parcela da população daquela comunidade autônoma da Espanha que quer constituir Estado próprio. Pois tão ou mais forte que a vontade dos bascos é a da Catalunha, comunidade autônoma que já foi importante condado na região do Mediterrâneo na época medieval, e que ao associar-se à coroa de Aragão impôs sua expansão imperial a ferro e fogo a vários outros feudos, reinados ou regiões. Subjugou Menorca, onde promoveu um banho de sangue, Mallorca, Ibiza e Formentera, e também Valência, Sicília, Atenas, Malta, Nápoles, Sardenha, Córsega, comprou dos francos Carcassonne e Béziers. Depois recebeu o troco: foi incorporada ao reino de Castela e à Espanha contemporânea, perdeu suas possessões, mas até hoje sonha – ou faz disso arma de propaganda política – por uma autonomia mais radical e mesmo por retomar o seu pequeno império.
Uma das principais discussões hoje na Espanha é a do Estatuto da Catalunha. Depois de aprovada em 1978 a Constituição espanhola pós-franquista, que “reconhece o direito à autonomia das nacionalidades e regiões”, passa-se a uma nova fase de debates da importância das comunidades no contexto espanhol. Catalunha quer mais autonomia, estendida principalmente ao âmbito fiscal e ao seu reconhecimento como nação. As demais comunidades acompanham a discussão que acontece no Parlamento espanhol, que se estima durar até o final de 2006, algumas delas de olho na mesma parcela de independência desejada pelos catalães. No total, são 17 as comunidades autônomas espanholas. Possuem uma outra língua, além do castelhano, País Basco, Catalunha, Galícia e Comunidade Valenciana (o aragonês praticamente foi abandonado).
A origem romana de Barcino
A independência desejada pela Catalunha tem origem antiga, bem antiga. Criada provavelmente por volta do século 3 a.C., a colônia romana de Barcino (origem da cidade de Barcelona) perdia de importância para Tarraco (Tarragona), ao sul, e Empúrias (a 2 km da cidade de L’Escala), ao norte, ambas também na Catalunha. Tarraco seria a capital da província romana da Hispania Citerior, mas foi Barcelona que se transformou, depois, no principal pólo político e econômico da região.
Barcino é invadida e destruída, primeiro pelos francos, e as muralhas romanas não conseguem barrar os visigodos. No século 8 a cidade ficou sob domínio muçulmano, que ali se instalaram por pouco tempo. No século 9 é ocupada pelo rei franco Luís, o Piedoso, que designou vários condes para governá-la, daí o título de cidade condal (ciutat comtal). Bracelona cresce então de importância, pois serve como proteção, para os francos, contra novas tentativas de invasão muçulmana, além de ser base para investidas em direção sul. A nobreza local, de origem franca, obtém certa autonomia e o título de condes de Barcelona, no século 10.
Os muçulmanos voltam a invadir a cidade. Abandonados pelos francos, os condes de Barcelona acabaram por se associar aos invasores, receberam benefícios, compraram cidades da atual França e deram início à sua expansão. Depois, se uniram à coroa de Aragão. Derrotados na tentativa de se expandir em direção ao norte, na França, o então império catalano-aragonês volta-se para o sul e para o Mediterrâneo. Toma Mallorca, Ibiza e Formentera. Ataca e consegue, em 1248, ocupar a importante cidade de Valência, até então muçulmana. Ainda no século 13 conquista a Sicília, e também Menorca, onde a maior parte da população é assassinada e grande parte da ilha, abandonada, após a ocupação.
A criação de Generalitat
É a época áurea de Barcelona, que permite realizar grandes construções, como a catedral, as igrejas do Pi e de Santa Maria do Mar e, também, a muralha medieval, para proteger a cidade expandida. É também o período em que se criam instituições políticas próprias da Catalunha, como o conselho dos Cem e as Cortes Catalãs, que se reuniram pela primeira vez em 1283, representando a nobreza, o clero e os comerciantes. O secretariado permanente das Cortes era conhecido como Deputação (Diputació) do General, ou Generalitat. Sua sede, até hoje, é o Palácio da Generalitat, no bairro Gótico.
A partir do século 15, no entanto, entra em crise a união dos condes de Barcelona com o reino de Aragão, e cresce a influência do reino de Castela. Os condes catalães rebelam-se contra o reinado aragonês, mas Barcelona cai após longo cerco. Poucos anos depois, unem-se as duas coroas mais importantes da península, Isabel, rainha de Castela, e Fernando, rei de Aragão, os chamados reis católicos. Começa o declínio, jamais recuperado, dos catalães no cenário da nova Espanha. A Catalunha, então, passa a formar parte do reino de Castela. Inicialmente é respeitada a autonomia jurídica catalã, firmada pelo acordo catalano-aragonês, mas posteriormente Castela intervém, enviando a Inquisição a Barcelona. Com isso os cristãos-novos abandonam a cidade, levando, é claro, todas as suas riquezas e deixando a cidade na miséria.
Após novas restrições dos reis católicos, como a proibição de comerciar diretamente com as colônias espanholas na América, Catalunha se rebela novamente, proclamando-se república independente sob a proteção da França. O resultado foram doze anos de guerra, de 1640 a 1652, e uma região devastada e mais uma vez submetida.
Em 1700, instaura-se a guerra de Sucessão pelo trono espanhol, e a disputa é vencida pelo francês Felipe V. Os catalães, que haviam apoiado a pretensão austríaca, não aceitam os termos do tratado de Utrecht, que pactuou a ascensão de Felipe V ao poder, e rebelam-se. Começa novo cerco a Barcelona, de março de 1713 a 11 de setembro de 1714. Felipe V aboliu a Generalitat, proibiu o ensino do idioma catalão e entregou Menorca, Nápoles e Sardenha a distintos reinados, em troca do apoio recebido em Utrecht. O dia 11 de setembro, que marcou a derrota catalã, é hoje o dia nacional da Catalunha.
A marca dos modernistas
No século 18 a cidade volta a prosperar, após a retomada do comércio direto com as colônias da América. Até hoje muitos bairros de cidades catalãs recebem o nome de “indians”, a designação dada aos comerciantes que desenvolviam ativamente tal comércio, especialmente com Cuba. Cria-se então o bairro operário da Barceloneta, próximo ao mar, para abrigar a população, que chegou a aumentar 28% ao ano. Tal riqueza atrai Napoleão Bonaparte, cujas tropas tomam Barcelona em 1808 e de onde saem apenas em 1814. Depois da nova ocupação, voltam a crescer as indústrias vinícola, siderúrgica e de cortiça, mas os trabalhadores viviam, como no restante da Europa, em condições subumanas. Em 1842 a população se rebela contra tal situação. A derrubada das muralhas medievais, em 1854, permite uma nova urbanização e a melhoria das condições de vida. Mas é em 1869 que se inicia um plano urbanístico então inovador, com a criação da Expansão (Eixample), uma rede de ruas entremeadas de parques e jardins – quase todos, aliás, sacrificados em favor de mais construções. A burguesia começa então a ostentar edifícios em um novo estilo, que faz até hoje grande parte da fama de Barcelona, com as construções modernistas de arquitetos como Antonio Gaudí, Lluís Domènech i Montaner e Josep Puig i Cadafalch.
No final do século 19 renasce a defesa do nacionalismo catalão, e a reação é imediata: em 1906 o governo de Madrid proíbe as publicações pró-catalanistas. Nesse momento de efervescência do início do século 20 um grupo de artistas se destaca: os catalães Salvador Dali e Joan Miró, aém de Pablo Picasso, nascido em Málaga mas que com 13 anos já vivia em Barcelona, onde um museu abriga mais de 3.500 obras do artista, em cinco palácios contíguos, contruídos entre os séculos 14 e 18. Ao mesmo tempo, começa um período de decadência econômica para Barcelona, com a perda de colônias americanas para os Estados Unidos.
O crescimento da população, as péssimas condições de vida a que eram submetidos os trabalhadores, a crise econômica e uma ação policial brutal desencadearam um período de intensa violência urbana, na passagem do século 19 para o século 20. O governo contratava pistoleiros para assassinar dirigentes sindicais e anarquistas, e estes respondiam também com violência. Igrejas eram queimadas, trabalhadores metralhados nas ruas. O ditador espanhol Miguel Primo de Rivera, nos anos 20, proíbe a organização dos trabalhadores e chega a fechar o Futebol Clube Barcelona, importante símbolo do catalanismo. Cresce a resistência, e em 1931 é proclamada a República da Catalunha. As sedes da Generalitat e da Prefeitura são bombardeadas e os líderes, presos e condenados. Mas poucos anos depois, em 1936, a Frente Popular ganha as eleições gerais na Espanha, e os membros do governo catalão são postos em liberdade.
A ditadura fascista do “generalíssimo”
Ao mesmo tempo em que, em 1936, se deflagra a Guerra Civil, com a sublevação militar contra o novo regime democrático republicano espanhol, comandada pelo general Francisco Franco, se dividem os defensores do catalanismo. Lluys Companys, presidente da Generalitat, apoiado pelo PSUC (Partido Socialista Unificado da Catalunha), de influência soviética, entra em conflito com os anarquistas, que mantinham grande influência no governo e cujas ações já haviam causado a morte de 1.200 sacerdotes e religiosos. Batalhas nas ruas entre socialistas e anarquistas fazem mais de 1.500 mortos, em 1937. Mas a violência aumenta, agora dos fascistas: a partir de 1938 Barcelona começa a ser bombardeada pela força aérea aliada ao general Franco, apoiado pelos nazistas alemães. Com a derrota dos republicanos na batalha do Ebro, em 1938, Barcelona fica indefesa. Cerca de 500 mil espanhóis buscam refúgio na França. Lluis Companys é preso pela Gestapo e fuzilado em 1940, no castelo de Montjuïc.
Franco volta a proibir o uso público do idioma catalão, que então é banido das escolas e dos meios de comunicação, traduz o nome de cidades e ruas para o castelhano, sobrenomes de origem catalã muitas vezes são também castelhanizados. É durante a ditadura franquista que Barcelona vive o fenômeno da migração maciça de espanhóis provenientes de outras regiões, em especial Andaluzia. Cerca de 750 mil pessoas, nas décadas de 60 e 70, chegam a Barcelona, atraídas pela crescente industrialização. As condições em que vivem são péssimas, morando muitas vezes em favelas e mesmo em grutas. Alguns grupos de migrantes integram-se à sociedade local e passam a falar catalão (idioma que sobrevive e se propaga na época como língua de ambientes informais, domésticos, pela proibição de se estendê-la a outros âmbitos). Muitos desses migrantes, no entanto, constituem (e são para lá destinados) seus próprios bairros, de fala castelhana. Esses bairros são, até hoje, aqueles de maior concetração operária de Barcelona e arredores. Ali se construíram conjuntos habitacionais que, igualmente, eram precários, inaugurados quase sempre sem infra-estrutura de transporte, saúde, assistência social. E com material de péssima qualidade, que anos mais tarde vai causar acidentes fatais, levndo à necessidade de demolir e reconstruir inúmeros conjuntos. Até hoje a Espanha vive esse processo, nas periferias de Barcelona e nas cidades vizinhas.
Morre o “generalíssimo” Franco em 1975, e em 1977 o presidente da Generalitat no exílio, Josep Tarradellas, eleito pelo Parlamento catalão no México, é convidado a ir a Madri. Pouco depois o rei Juan Carlos I restabelece a Generalitat e reconhece Tarradellas como seu presidente. A Constituição de 1978 estabelece finalmente a possibilidade de que as regiões da Espanha abriguem diferentes graus de autonomia. A Catalunha possui competência total em várias áreas, como polícia, educação, comércio, turismo, agricultura, seguridade social e cultura. O idioma catalão, de proibido, passou a ser obrigatório, mesmo para aqueles catalães ou demais hispanoparlantes. Para se trabalhar em inúmeras áreas é preciso ser aprovado em um exame de proficiência em catalão, que é também idioma obrigatório no cotidiano de toda a administração da Generalitat. Nas escolas públicas as crianças, filhos de imigrantes ou de hispanoparlantes, passam por um período de “adaptação”, fora das salas de aula dos demais colegas, até que dominem o catalão, utilizado obrigatoriamente nas aulas. E, de maneira geral, quem não fala catalão é quase sempre discreta ou abertamente marginalizado pelos catalanistas.
O receio de um imperialismo catalão
O novo estatuto da Catalunha, em tramitação em Madri a partir de novembro de 2005, aumenta a autonomia catalã, e proclama o direito de a Catalunha ser tratada como nação. O debate está aberto. O novo estatuto conseguiu a adesão dos três partidos no poder na Catalunha desde o final de 2003, o PSC (Partido Socialista da Catalunha), IC-V (Iniciativa por Catalunha – Verdes) e ERC (Esquerda Republicana da Catalunha). E obteve também o apoio da CiU – Convergência e União, que de 1980 a 2003 governou a Catalunha com o presidente da Generalitat Jordi Pujol, eleito sucessor de Tarradellas. Mas o próprio Partido Socialista, no âmbito espanhol, tem ressalvas à proposta de novo estatuto. No entanto, a maior oposição, ou a que faz mais estardalhaço, é a do direitista PP (Partido Popular), derrotado em 2004 pelo PSOE de José Luis Rodríguez Zapatero.
Um dos receios do PP e do próprio PSOE é de que a Catalunha queira se impor a outras regiões da Espanha, como já fez no passado. Não mais à força, mas através de medidas fiscais que garantiriam à Catalunha “a parte do leão” da riqueza ali gerada. O fantasma de um novo imperialismo catalão é alimentado por manifestações que fazem lembrar da Catalunha de outras épocas. Uma desses momentos ocorreu no jogo Barça versus Osasuna, em outubro de 2005. No Camp Nou, a administração do FC Barcelona desfraldou uma enorme faixa com o mapa dos “Países Catalães”, ou seja, a reunião de Catalunha, Comunidade Valenciana e Ilhas Baleares (aos quais se somam, dependendo da tendência catalanista, o principado de Andorra e mesmo a cidade italiana de Alguer, na Sardenha, embora apenas 14% de seus habitantes falem catalão atualmente).
O presidente da Generalitat Valenciana estrilou e pediu que se proibissem atos políticos como aquele em locais de prática de esportes. Mas a oposição à bandeira dos Países Catalães aponta para a outra face da Catalunha. Ora, os valencianos não têm direito à sua autonomia? Tanto a prezam, como denominam o seu idioma de valenciano; é quase igual ao catalão falado na Catalunha, mas, com suas diferenças, estabelece nova identidade, que querem e têm o direito de preservar. E o banho de sangue que os catalães promoveram em Menorca, para “integrá-la”, é necessário que os menorquinos o esqueçam? Ou que desejem fazer parte (sem serem consultados) aos tais países catalães?
A iniciativa do presidente do Barça, Joan Laporta, foi ainda mais polêmica porque poucos dias antes do polêmico jogo um ex-diretor do clube denunciara que nada mais nada menos que Alejandro Echevarría, cunhado do todo-poderoso presidente, pertencia à Fundação Francisco Franco. Sim, Francisco Franco, o ditador que mandou fechar o Barça e matar os líderes catalães. Laporta defendeu o cunhado, disse ter com ele mais pontos de coincidência do que de divergência (!), defendeu o caráter “tolerante” do clube, mas o próprio Echevarría se demitiu. E o Barça é um dos signatários da Plataforma de Defesa do novo Estatuto catalão…
Um catalanismo franquista
Mas tal questão ainda dará muito pano pra manga, pois inúmeros catalanistas foram, e, o que ficou mais do que claro com esse episódio, mantêm-se como legítimos representantes do fascismo no mundo. Acima do nacionalismo estão seus interesses pessoais e de classe. A próxima polêmica está sendo conduzida pelos partidos Esquerda Republicana de Catalunha e Esquerda Verde, aliados de Zapatero: cansados de esperar o cumprimento das promessas do presidente do governo, querem que o monumento Valle de los Caídos, que Franco mandou erguer em homenagem aos seus próprios partidários (denominados nacionalistas) mortos durante a Guerra Civil, e construído por operários republicanos, muitos deles mortos durante a obra, seja tranformado em um Memorial da Liberdade, e preste homenagem justamente aos operários republicanos.
A proposta da esquerda no parlamento estabelece ainda que a defesa do franquismo passa a ser considerada crime, propõe a anulação de atos judiciais franquistas e a reabilitação moral e econômica das vítimas da ditadura. A discussão de tal projeto pode pôr fim de vez à aliança que levou Zapatero ao poder: afinal, esse é um tema delicado na Espanha, que não passou pelo processo de responsabilização dos atos do franquismo. No 30º aniversário da morte de Franco, em novembro de 2005, viram-se pela Espanha inúmeros atos de homenagem ao “generalíssimo”. E 13% da população espanhola considera, ainda hoje, positiva a ditadura de Francisco Franco. Certamente entre esses 13% estão líderes empresariais e políticos que jamais deixaram o poder na Espanha. Na Catalunha e fora dela.