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A tragédia no bairro do Carmel

Um bairro feito a “puñetazanos”

Barracos, favelas, autoconstrução: expansão do Carmel se fez de maneira desordenada e desastre é a síntese da situação de abandono do bairro

Até os anos 50 o Carmel foi um bairro operário de pequenas casas e hortas, mas a chegada em massa da imigração interna espanhola em poucos anos mudou completamente a sua fisionomia: os edifícios térreos ou de apenas um andar, os barracos ou ainda as casas de autoconstrução deram lugar a grandes blocos de prédios construídos muitas vezes com material de péssima qualidade. Na expressão de uma moradora, líder comunitária: o Carmel foi feito  a “puñetazos” (a socos, na porrada). Além disso, a falta de planejamento urbano deixou marcas na distribuição as ruas e dos edifícios do bairro. Até os anos 90 ainda havia favelas no Carmel. Mas, apesar das construções ocuparem as várias vertentes de morros da região, até agora não havia ocorrido nenhuma tragédia, vivia-se o abandono das periferias das grandes cidades, dificuldades de acesso, precariedade de infra-estrutura, descaso generalizado. Anos antes, quando se construiu o túnel de la Rovira, 25 famílias foram desalojadas, e na década de 90 outros pequenos alarmes chamavam a atenção para a instabilidade dos terrenos e para a gravidade dos riscos em que os moradores viviam.

A extensão da linha 5 do metrô conseguiu aquilo que décadas de expansão desordenada não havia feito: no dia 27 de janeiro de 2005, desmoronou um dos túneis da obra, com o desabamento de dois blocos de apartamentos e a necessidade de demolir vários outros. O governo, supostamente de esquerda, agiu exatamente como qualquer administração conservadora: tentou diminuir os efeitos do desastre, e permitiu que 350 dos 1.054 moradores desalojados voltassem às suas casas poucos dias após o desabamento. A medida foi de uma ineficácia ímpar: em seguida descobriu-se nova falha nos túneis, e voltou-se a desalojar todos os moradores que poderiam ser afetados. A imprensa foi impedida de deslocar-se até a zona do túnel afetado, e rapidamente se decidiu, antes que as investigações avançassem, preencher tudo com concreto: literalmente “tapou-se o buraco” e eliminou-se a possibilidade de se realizar novas perícias técnicas. Ainda assim, verificou-se que o acidente foi causado por vários fatores: economia de cimento na construção das paredes dos túneis; desatenção dos responsáveis, inclusive da empresa pública que contrata a obra, a avisos anteriores, documentados, de uma movimentação na base do túnel, detectada em outubro; falta de estudos geológicos detalhados durante a realização da obra.

Tudo acaba em cava e pà amb tomaquet

O presidente da Generalitat, Pasqual Maragall, foi ao parlamento da Catalunha e tentou jogar todo o peso de que ocorrera sobre o governo anterior, acusando-o de receber suborno de 3% das empreiteiras contratadas pela empresa pública, GISA. Criou-se uma polêmica que terminou, como quase sempre, em “pizza” – ou em cava (o “champagne” da Catalunha), com pà amb tomaquet (pão com tomate), composição mais catalã que a valenciana paella ou, evidentemente, a pizza italiana ou paulistana. Pressionado, Maragall nem confirmou nem se retratou, deixou o assunto morrer. Tampouco demitiu o conselheiro de Obras ou admitiu a responsabilidade do atual governo, que já completara 15 meses quando aconteceu o desastre, ou seja, já detinha amplos poderes de acompanhamento das obras sob sua gestão. Os partidos minoritários no governo, a Esquerda Republicana de Catalunha (ERC) e Iniciativa por Catalunha-Verdes (IC-V), acompanharam o majoritário Partido Socialista, e fizeram papel de cúmplices da maior vergonha (por enquanto) da atual administração pública catalã.

A sensação de insegurança se espalhou por Barcelona, tomada de obras por todo canto. Em vários prédios dos bairros de Taxonera e Poble Nou apareceram rachaduras durante obras de construção de outras linhas do metrô. Moradores se mobilizam, sem que o governo lhes atenda, tentando evitar que a linha do AVE – trem de alta velocidade espanhol – passe sob bairros densamente povoados, e seja desviado pelo litoral, onde seria uma ameaça (ainda que latente) a uma quantidade menor de pessoas. Mas na faixa litorânea estão localizados hotéis de luxo, conglomerados financeiros e de serviços, é uma região de expansão imobiliária recente, a parte que restou das Olimpíadas de 92 está sendo agora retalhada e posta à venda. O governo alega que não pode alterar o projeto do AVE pois isso significaria mais custos. Mas garante que o novo trem fará um desvio, uma voltinha especial para não passar sob o Templo da Sagrada Família: assim a respeitada Igreja catalã não lhe criará problemas. Que caia tudo e morram todos, menos o espírito de Gaudi.