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MARIA TERESA DE JESUS MOREIRA: Sonhos, caminhos, esperas

A velha senhora está ali, na porta de casa. Bem na entrada. O banco verde, já conhecido do bairro, está à vista de quem passa. Ela olha meio assim, sem fitar nada nem ninguém. Na verdade não vê muita coisa, só vultos, isso quando enxerga algo. Passam os ônibus, raros, as crianças na ida e na volta da escola. Ela escuta. Quem mora ali, com ela, entra e sai, e uma das netas o tempo todo lhe dá a maior atenção: arruma a casa, varre o chão, pergunta se quer alguma coisa, sempre presente. Não faz comida: isso Teresa ainda consegue fazer, mesmo sem enxergar quase nada.

O bairro tem muita gente nova: cresce, ao lado da Universidade. Surgem prédios onde antes eram terrenos vazios, fontes de água, espaços de brincadeira. Vão expulsando os antigos, sem dar a menor pelota. Esse povo novo do Dom Bosco não sabe de nada, nem do passado do bairro, muito menos dela. Como poderia?

Praticamente cega, Teresa perdeu a visão por causa de glaucoma.

Sentada no banco verde, Teresa só enxerga vultos, quase nada. Ilustração: Marlene Crespo.

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Sair da roça era o jeito de buscar uma vida melhor – até hoje, né? Vieram de Vargem de Santo Antônio, das bandas de Bias Fortes, pai, mãe, sete meninas, sete filhas mulheres. A avó, china legítima, preferiu ficar, já tô velha, pra que sair? E por que falam tanto do número sete? Foram primeiro para Lima Duarte, morar em casa de aluguel, naquele tempo era barato. Trabalhar por uns trocados, cinco cruzeiros por mês, nada de estudar.

De pequena Teresa quase não brincou. O pai, na fazenda, a mãe, olhando e ensinando as meninas: cozinhar, lavar, ajudar no que precisa. Trabalho, sempre trabalho. Brincadeira era amassar barro, fazer casinha com a lama dali mesmo. Má sorte: a casa pegou fogo, perderam tudo. O pai morreu, depois de anos dando duro na enxada. Não tem jeito: pega o que sobrou e toca para Juiz de Fora, cidade maior, para ver no que dá, procurar trabalho, arrumar a vida, aquela mulherada toda.

Porrada. A mãe dava era pancada mesmo, para ver se as meninas obedeciam. Tinha que fazer as coisas como ela queria. Se não estava bem feito, já viu. Pegava um pau para acabar com elas, que se escondiam embaixo da cama, onde dava. Se instalaram na Vila Ideal. Para ganhar um dinheirinho, todas lavavam roupa para fora. O aluguel, barato: viviam assim, num barraco.

Vida difícil. Das sete irmãs, sobraram apenas Teresa e Aparecida Anica. Uma morreu atropelada, a Jacira, era casada, também morava na Vila Ideal. Conceição foi embora para São Paulo, nunca mais se viram. A Maria adoeceu e morreu, tinha tanta vontade de casar. Mas a mãe a deixou cair no fogo, assim na beira do fogão a lenha, e não deu tempo de salvar, queimou demais. Cuidaram com remédio de roça, de horta. Ficou meio abobada, e viveu assim ainda um tanto de tempo.

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Faz questão de dizer: não foi santa não! Foi é da pesada, e não se arrepende de nada. Passado não é presente, não é mesmo? Morou vários anos em casa de mulher perdida. O primeiro namorado era já um menino da vida. Conheceu um montão de homens, conta, dando risada. Uma porção. Namorava muito, saía com um, deixava tudo pra lá. Tinha coisas ruins? Claro, mas havia coisas boas também. Era bom demais! No passado.

Com 17 anos teve a primeira filha, Lúcia, que já fez 60. Mora no bairro Santa Efigênia, mas é até hoje companhia certa para passar um tempão no telefone, batendo papo, ê minha filha, que vida!, é, minha mãe… Quatro anos depois de Lúcia nasceu Paulo. E ela, por aí. Os filhos ficaram morando com a mãe, na Vila Ideal. Lembra que quando nasceu a Lúcia, tão novinha que ela era, veio com a mãe da maternidade no São Mateus até a Vila Ideal a pé. A mãe com o bebê no colo, e ela, de resguardo, comendo rapadura.

Teresa admirava a perfeição do trabalho de pedreiro do marido.

Além da casinha onde ela mora, o marido de Teresa trabalhou em muitas obras do bairro. Ilustração: Marlene Crespo

O marido é que a tirou da vida torta. Para ficar mais fácil mudaram de bairro. Foram para o Dom Bosco, primeiro na rua Itajubá, depois na rua Belo Vale. Ela tinha 22 anos. Levou os dois filhos, mas de vez em quando queria voltar para as coisas de antes, batia uma vontade! Foi uma peleja não fazer isso. O marido era pedreiro, dos bons, mas bom também de copo, bebia que só. Às vezes ficava tão tonto, criava caso, tornava-se violento.

A vizinhança falava, falava, falava… Falava para ela largar o marido. Falava mas não ajudava. E dizia que ela não valia nada, que era uma galinha danada. Ela tentava não esquentar a cabeça. Uma mulher que mora ali perto, na rua Miraí, tinha três lindas meninas. O pai trabalhava na Prefeitura. Não deixavam as filhas brincarem com as filhas dela, diziam que as meninas não valiam nada. E ela, entregando a Deus. Depois, passou o tempo, as filhas dela cresceram tudo direitinho, e aquelas umas, filhas desses vizinhos que falaram tanto, tudo piranha. Deram cedo, tiveram filho novas, novas.

No começo, no bairro novo, alguns antigos conhecidos da vida torta passavam, brincavam. Agora não, quando passam por ali e a veem, dão um alô, como vai? A maior parte já morreu. Quem está vivo não toca mais no assunto de antes. Talvez nem lembrem mais dela, daquela vida. Teresa não esquece, mas venceu. Pensava que nunca ia conseguir tem uma casinha dela para morar. E está lá, com um filho e três netos, vendo o tempo passar.

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Com o marido, no Dom Bosco, teve 12 filhos, mas ainda pequenos perdeu quatro. Esses oito que ficaram, mais os dois que tinha antes de casar, Teresa lutou pra criar direitinho. Passou maus bocados: o marido bebia e queria bater nos filhos, às vezes se trancava em casa, não deixava ninguém mais entrar, a saída era dormir do lado de fora. Os dois filhos de antes do casamento ele perseguia, inventava problemas, às vezes ela tinha de lhes dar comida escondido, como se fossem menos gente que os outros. Mulherengo, pregava tanta mentira que ela já não acreditava em nada que ele dizia. Pensava em separar, largar tudo e ir-se embora, mas a comadre a advertia do perigo de perder tudo, se fosse ela que saísse de casa: quem deveria sair é ele. Delegacia, direitos da mulher naquela época? Nem pensar. Até hoje a coisa pega.

Teresa suportou muita coisa desse marido. Que teve, diz, um filho com a própria filha, ela foi no juiz, que não acreditou, no fim passou como doida. Além da tristeza dos casos com outras mulheres, o marido pôs a perder um bocado de coisa, fez ela assinar os papéis e pronto, passou nos cobres um lote bom, quase vizinho, 10 de frente e 30 de fundo, onde haveria espaço para as famílias dos filhos morarem todas juntas, como ela gostaria. No terreno já tinham começado a levantar uma casa, na parte de trás ela cuidava de uma horta, vendia couve, abóbora. Culpa da bebida, a bebida é que estraga, destrói muito a vida de uma pessoa. Venderam o terreno por dois mil cruzeiros. A casa onde foram morar compraram com uma parte desse dinheiro, mais a venda de uma carroça e um burro velho, inteirado com a pensão que o pai daquele primeiro filho dela ainda pagava.

Do marido ela guarda três coisas boas: tê-la tirado da vida torta, a música caipira que tocava no radinho que levava no bolso, enquanto varria a calçada da casa, e a perfeição do trabalho de pedreiro. Levantou a casinha naquele terreno, primeiro só a parte de baixo, depois mais um andar em cima. Tudo de cimento bom, Barroso, serviço de primeira, profissional. Ajudou a construir e arrumar as igrejas do bairro, trabalhou em muito lugar por ali. Mas ela não ficou nem um pouco triste quando ele morreu, há 12 anos, depois de nove dias no CTI da Santa Casa. Aquele veado, que Deus o abençoe onde ele estiver.

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Primeiro sempre vem o trabalho. Na roça, criança trabalha, trabalha, e na cidade, muitas vezes, também. Em Juiz de Fora, ainda mocinha, no primeiro emprego, para fazer comida Teresa tinha de subir num banquinho, para alcançar o fogão e a pia. Também cuidava da patroa, olhava as meninas, morava em casa de família. Não ganhava nada não, nem estudava, ficou só na 1ª série. Trabalhava a troco de comida, ué. É assim que as coisas eram, hoje é diferente, muitas pessoas não fazem nem ideia de como mudou, não dão valor, se bem que tem lugar por aí que não mudou tanto.

Foi lavar roupa para estudante, eram umas cinco ou seis trouxas por semana, levava e trazia a roupa de volta, lavada e passada, eles adoravam e continuaram com ela, mesmo depois de formados, davam lembrancinhas todo final de ano. Também faxinava a casa dos rapazes, perto da igreja redonda aquela, a Melquita. Com esse dinheiro garantia o leite para os filhos.

E assim foi, aguentando a mão. De empregada fixa teve dois empregos, oito anos numa casa, e cinco em outra. Na primeira, no São Mateus, chegava às 10 da manha, saía às 9 da noite. O fogão da patroa tinha que ficar limpinho que nem um espelho, dava para ver o rosto nele, e era um monte de gente na casa, onde funcionava também um salão de limpeza de pele, massagem, estética. Louça de montão para lavar, arear. Caprichosa, a patroa, dona Esmeralda. Queria tudo bem limpo. Mas gostava tanto da empregada que todo ano lhe dava um presente, elogiava, dizia que igual a ela não arrumaria nunca ninguém.

Ela, feliz, fazia tudo de que os outros gostavam. Tinha dia de encerar, depois tirar a cera, dia para lavar tudo, com água sanitária pura, de limpar as janelas, as portas, a casa do fundo, a casa da frente. Ralou muito a mão, mas nunca teve nada, não morreu, graças a Deus. Viajava com a família, olhava as meninas, aonde eles iam a carregavam. Curvelo, Aparecida do Norte, Congonhas, lugares bonitos, Teresa não pagava nada, se precisava dormia com a patroa, era como irmã, a pretona no meio da loura, lá vai ela.

Mais tarde passou a acompanhar a patroa até o cemitério, em dia de visita ao túmulo do seu José. Levavam flores, a patroa chorava, chorava, acendia vela, conversava com o defunto, triste que só, avisava para ele ficar quieto que já já também estaria ali. Enquanto a patroa chorava ela lavava o jazigo, que ficava uma beleza. Iam de táxi, um luxo. E Teresa, como se fosse da família, de toda confiança, comia junto no restaurante, ia fazer serviço de banco. Mesmo sem saber ler, pois tem gente que não sabe ler e faz as coisas melhor que quem sabe, né?

O outro emprego bom foi no Rio de Janeiro. Também de confiança, levava até a chave do apartamento. Foi quando ela teve a primeira filha. Conheceu no Rio o pai da Lúcia, que disse não ser casado. Depois, quando Teresa estava de barriga, de repente apareceu a mulher dele. A patroa, muito prestimosa, perguntou se ela queria tirar, que pagava o aborto. Nada disso, e o medo de morrer? Ela foi pra casa para ganhar o neném, depois voltou pro Rio, ainda trabalhou naquela casa cinco anos.

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Os patrões nunca a registraram, nem pagaram o INSS. Teresa que se virou, pagava como autônoma, nunca teve carteira assinada. Contribuiu pouco tempo, dois e cinquenta por mês, aposentou como faxineira quando teve glaucoma, há uns 15 anos. Tratou, botava remédio, só que era um beco sem saída. Operou, perdeu as vistas, o médico da Santa Casa disse que o melhor era aposentá-la por invalidez. A vista estraga tudo. Continuou trabalhando, até que não tinha mais jeito. Sentiu muita falta, estava acostumada, os patrões, as pessoas, e toda a vida gostou de trabalhar, lembrança dos ensinamentos da mãe. Teve que parar, e, o pior, cega, agora depende dos outros.

Demorou a se acostumar, quase não sai, só quando precisa mesmo. Quem a acompanha é uma das netas, Josi, aquela única que mais cuida da avó, já que nenhuma nora faz isso, e os filhos, nem pensar. Essa neta nunca reclama, está sempre ajudando. Consolo é lembrar que tem gente pior do que ela. Que tem cartão SUS, controla pressão no postinho, vai no médico se precisa, tem tudo direitinho.

A neta é quem avisa quando tem que pagar uma conta, vai junto, recebe com ela a aposentadoria e a pensão do falecido, acerta o telefone, 40 reais por mês, não tira um centavo. Josi trabalhou no shopping, depois ficou desempregada, está noiva, mas só vai casar depois que conseguir um emprego fixo, para não depender de sogra. O noivo é padeiro, trabalhou muitos anos no Bahamas. A neta tem medo de a avó morrer e ficar jogada. A avó foi como mãe, desde os oito anos de idade.

Um dos medos da neta de Teresa é a avó morrer e ficar jogada.

Uma das netas é quem mais cuida de Teresa, leva em médico, vai fazer compras. Ilustração: Marlene Crespo

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Teresa criou os filhos na igreja católica, todos fizeram primeira comunhão, levava-os à missa. Quando ia trabalhar ficavam com uma vizinha, comadre boa, já morreu, mas daí eles estavam grandes. Todos estudaram, alcançaram até a 5ª, a Mulata quase chegou na 8ª. Estudaram no Dom Orione, agora acabou o colégio, o Estado de Minas Gerais não quis saber das passeatas, reclamações, nem da história, da importância da escola para o bairro, para a cidade, para a vida dessas pessoas. Fechou, em 2009, e o povo que caminhe mais um pouco ou pegue ônibus ou se vire de outro jeito qualquer, estão acostumados, sabe?

Alguns dos filhos já morreram, como a Mulata e o Luizinho. Um deles, Marcelo, é taxista, preocupa a mãe, pega no turno da noite, maior perigo. Duas filhas trabalharam em lanchonete, uma delas em São Paulo. Crescidos os filhos, ajuda a criar os netos, quatro vivem com ela, a mãe ou mora fora ou morreu, e não se entendem com o pai nem com o padrasto. O mais novo tem doze anos, está na 6ª série, não falhou nenhuma, orgulho para a avó. Está gordinho, também, come pra cacete. Outros são adultos, um tem 23 anos, faz biscate. Outro dá trabalho, é o atentado, discute por causa da televisão, ele quer ver uma coisa, e ela quer ver outra – na verdade, escutar, pois ver, não vê nada.

Não lhe obedecem, ficam na rua até tarde, não aceitam o jeito que Teresa vive. Mas é que está tudo mudado mesmo, se conforma. E não adianta pedir para que ela não se preocupe, que eles estão crescidos, que não precisa esquentar a cabeça. Ela fica pensando, pensando no que vai ser deles. Esse que faz biscate veio de São Paulo faz cinco anos, chegou com a roupa do corpo, o pai judiou dele por lá, bastante, não volta não, agora tem tudo, está tudo bem.

Com tanta briga, confusão, com aquele marido que tinha, com tanta história na vida, Teresa não espera nada da família. Nem dos filhos, nem de ninguém – tirando a neta que a ajuda. Diz que querem que morra logo, para ficarem livres dela e pegar tudo, tomar o que é da velha. Controlam o gasto, insistem que ela é perdulária. Pois não é que comprou um guarda-roupa novo, a prestação, 80 reais por mês? Um filho foi contra, não queria. Mas ela gostou, comprou, e esse guarda-roupa fica agora com as coisas dos dois netos menores. Enquanto tiver vida ela compra mesmo, fica tudo depois para eles, sim, mas tem que esperar ela morrer. Compra, e fica feliz, parece que está no céu, bem longe de quando era pobre. Quer dizer, muito pobre mesmo, de verdade. Agora, aos 77 anos, tem o dinheiro da pensão de viúva e da aposentadoria, é dela. E pronto.

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O bairro em que ela foi morar melhorou muito nos últimos anos, ou décadas. Agora é bacana demais. Porque antes era aquela coisa cheia de mato, no meio passava um rego d’água assim no meio, era feio, não tinha nada, para ir ao centro ou a outros lugares só de carroça ou caminhão. Não havia água encanada, todo mundo carregava água na lata para poder manter a casa, pegava lá no bicão. Os trilhos, só lama e mato, um sacrifício para descer ao São Mateus, à Maternidade, trabalhar, lavar roupa, tudo difícil. Quando chovia não tinha como andar direito. As casas todas baixinhas, muitas, casas de sapé. Para Teresa, não tem nada disso de coisa boa, de saudade dessa época não, agora é que é bom, conforto, rua asfaltada, ônibus pertinho da casa dela, escola, água da rua, graças a Deus, paga sim, mas acabou aquela coisa de levar na lata.

Mas para isso, lembra a velha senhora, não foi fácil, tinha mutirão de gente para brigar na Prefeitura, negócio esse de reunião, na igreja, no bairro, na cidade. Para pedir as melhorias. Juntava a vizinhança toda. Agora para ela está mais difícil, mas de vez em quando ainda tem algum movimento, ela acompanha, escuta, se informa com o pessoal do bairro.

Nunca foi assim de ter muitas colegas, amigas, comadres, mas se dá bem com os vizinhos, nem tranca a porta da casa, só deixa encostada, jamais foi roubada, ninguém mexe com nada dela, respeitam-na. Conhece todo mundo, fora os que já morreram. Agora tem mais é novato, está mudando, muita gente que chega. O ruim é que tem bastante droga, diz Teresa, e isso lhe mete medo. Mas os seus meninos não mexem com isso, deu sorte, sente-se abençoada. Violência? Deve ser pessoa que bebe muito, arruma confusão, fica perturbando os outros aí na rua, então fecho a porta de casa, vou pra dentro e espero a bagunça acabar.

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Dentro de casa, a TV e o rádio fazem companhia a Teresa.

Quase cega, todos os dias Teresa ouve na TV o terço e uma novela. Ilustração: Marlene Crespo

Dentro de casa, o rádio lhe faz companhia. Quem chegar ali 4 ou 5 horas da manhã vai encontrá-la acordada, dorme pouco, fica pensando, vem tudo na cabeça, a vida de hoje, a vida de antes, aí o sono vai embora e ela liga o rádio. Vem música, vem a oração do padre Marcelo. Na televisão, assiste-ouve o terço todos os dias, reza junto, recomenda a todos que rezem, depois do terço passa uma novela boa, das seis, aquela novela é uma beleza. E volta à reza, diz que velha tem que rezar, mesmo sozinha em casa, tem medo de ir à igreja e cair na rua.

Pensa na vida e lembra também as coisas boas. Da quadrilha, na rua, tempo bom, faziam baile, juntavam numa casa grande e rolava o forró, pagode era difícil. Dançava, Teresa, na época de moça! Sabe dançar e muito bem, ia também na cidade, naqueles bailes dos clubes antigos da rua Halfeld, Floriano, Marechal, com muita gente. Preferia ir sozinha, depois voltava a pé na hora que queria, antes da bagunça do final da festa, era o bicho mesmo, mas não tinha medo de nada. Era uma beleza, mas agora…

Faz planos: sonha em arrumar a casa, em cima da laje precisava ter uma cobertura – Juiz de Fora inteira é assim, uma área livre em cima da segunda laje, para roupa pegar sol e mofar menos, para fazer um churrasco, para ter uma plantinha. E proteger mais da chuva, evitar goteiras. Queria deixar a casa pintada, bonitinha. Ter uma varanda, um jardinzinho. Alguns outros cômodos, uma divisão melhor do espaço. E ver essas coisas antes de morrer, quem sabe consegue. Compartilha esses sonhos por telefone com a filha mais velha, aquela de 60 anos. Ao telefone, conversam. Viúva, também a filha, mas arranjou um companheiro legal, coisa boa. A mãe diz que está sozinha, quem vai querer ficar com ela? E dá risada, brinca: diz que a velha coitada já está aposentada das coisas, mas se tivesse chance ainda pegava.

Acorda cedo, seis horas está de pé, acostumou, não se sente bem se não levantar da cama, pode estar frio, tem a impressão de que não está em casa. Fica na porta. Em silêncio. De vez em quando se sente meio estranha, o médico diz que é da cabeça, para ela ficar tranqüila que aquilo passa. Ela não acha que a cabeça está ruim. Não quer estar parada para não ficar pensando. Atormentada. Pois senão dá até vontade de morrer. Sabe que a idade está chegando, e espera. Espera. De vez em quando bate um bocado de tristeza. Os filhos que perdeu. Passou um monte de coisa, mas tem esperança de que Deus se lembrará dela, e tenta se manter serena.

Numa casa grande sempre juntava gente pra dançar forró.

Lembranças boas de Teresa: quadrilhas na rua e bailes em clubes da rua Halfeld. Ilustração: Marlene Crespo

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