
Maria da Conceição Sabino
Uma dona de casa dedicada à família, a criar os filhos, os netos, os bisnetos, que passou a juventude quase sem passear, sempre na lida doméstica. Pacata, calma, mas que ninguém se engane: quando quer, ela briga mesmo. Essa é Maria da Conceição Sabino, uma exceção entre as nossas entrevistadas. Trabalhou fora poucos anos, nem chegou a completar tempo de carteira assinada para pedir aposentadoria: o sustento é garantido pelo marido, ex-metalúrgico, que se aposentou aos 50 anos de idade, depois de três décadas de operário, e que continuou trabalhando por mais quase outro tanto, até cansar, e agora vai levando a vida com a mulher, vendo um futebol na TV, deixando o tempo passar.
Uma dona de casa dedicada à família, a criar os filhos, os netos, os bisnetos, que passou a juventude quase sem passear, sempre na lida doméstica. Pacata, calma, mas que ninguém se engane: quando quer, ela briga mesmo. Essa é Maria da Conceição Sabino, uma exceção entre as nossas entrevistadas. Trabalhou fora poucos anos, nem chegou a completar tempo de carteira assinada para pedir aposentadoria: o sustento é garantido pelo marido, ex-metalúrgico, que se aposentou aos 50 anos de idade, depois de três décadas de operário, e que continuou trabalhando por mais quase outro tanto, até cansar, e agora vai levando a vida com a mulher, vendo um futebol na TV, deixando o tempo passar.
Conceição nasceu em Juiz de Fora, não viveu na roça nem nas cidades ou regiões próximas. É daqui mesmo. Do Bom Pastor: bairro chique, com pracinha e tudo, prédios em volta, mas que antes chamava Lamaçal. A mãe era de Rochedo de Minas, o pai, juizforano, não veio da roça não, trabalhou de encerador, raspava taco com a mão, aqui em ali, vivia de biscate, era inimigo de pagar aluguel, gostava é de viver de favor. Pedia casa para morar. Passaram pelo Lamaçal-Bom Pastor, Mundo Novo, Cachoeirinha (agora, Santa Luzia), Manoel Honório, Grama… Quase sempre casa de pau a pique, de sapé. Juiz de Fora era assim nos bairros pobres, barro amassado, hoje, quem lembra?
hhhhhhhhhh
Com oito anos Conceição já trabalhava em casa de família, começou indo à tarde, depois da escola, ajudar a lavar a louça na casa de uma mulher. Depois uma tia arrumou para ela trabalhar na Companhia Têxtil Mascarenhas, onde ficou só três anos, mandavam sempre muita gente embora. Empregou-se em seguida em malharias pequenas, que abriam, fechavam, abriam. Começou cedo a vida de cuidar da sua própria família: com 18 anos foi mãe, casou, mas separou em seguida, e cedo perdeu o filho que teve nesse primeiro casamento.
A mãe, lavadeira, também morreu nova, aos 36 anos, assim de repente, acordou, colocou o vestido, caiu e morreu. O pai de Conceição então começou a largar mão dos filhos, não casou de novo, nem juntou, mas perdeu o interesse. Nove filhos, eram em nove irmãos. Quem cuidou dos menores foram os mais velhos, Conceição e mais um, o mais novinho tinha três meses. A pobreza de sempre. Uma avó, que morava em Cotegipe, foi para Juiz de Fora ajudar a olhar, depois também adoeceu, teve câncer.
Pouco passeou. Em solteira, os pais não a deixavam sair, controlavam, ia muito é em terço. E ver jogo de futebol. Adorava ir à várzea, fazer torcida, o pai junto. Casada, separada, não demorou a casar de novo. Está com José há mais de 50 anos. Só casei no civil, graças a Deus. Têm dois filhos, a moça já vai fazer 49 anos, o filho tem 46, é separado, mas a nora é como uma filha para Conceição. Que tem duas netas, ambas com 28 anos, há quem pense que são gêmeas, mas não, é coincidência mesmo.

Conceição: cuidou de filhos, netos, bisnetos, quase não passeou (Ilustração: Marlene Crespo)
hhhhhhhhhh
Depois que teve os filhos, Conceição não trabalhou mais, nem em tecelagem, nem em casa de família, ficou só cuidando dos filhos, aí vieram as netas, agora os bisnetos. Sou mãe coruja, vó coruja, e também bisavó coruja. A filha era empregada em malharia, mas depois não conseguiu mais serviço em fábrica, foi trabalhar de doméstica. O filho também passou anos como operário metalúrgico, aí rodou muito em uma porção de lugar. Há oito anos trabalha como segurança. A nora, ou melhor, ex-nora, é empregada em uma estamparia, na mesma firma há 30 anos, vai se aposentar nova, está com 47 anos.
Conceição se arrepende um pouco de não ter trabalhado fora, poderia ter mais independência, dona do próprio dinheiro. É horrível depender dos outros! O marido sustenta a casa com a aposentadoria, mas quem cuida de gastar é ela: faz as compras, controla, paga as contas, vê se sobrou alguma coisa. Os filhos e netos ajudam no que podem: roupa, sapato, algum mantimento, e sempre com muita atenção, cuidando para ver se falta algo. E também as cunhadas. Uma delas, dona de escritório de contabilidade, todo mês lhe dá uma mesada – como para compensar o fato de Conceição não ter aposentadoria. A cesta básica do Grupo Espírita Semente contribui com a alimentação da casa.
Está no Dom Bosco desde os 11 anos de idade, mas na casa dela mesmo apenas desde 1991. Morou muito tempo na rua Cruzador Bahia, de aluguel, o marido havia comprado um lote no bairro mas deixou lá parado, não quis saber. Foi a filha que se interessou em construir, conseguiu ajuda da Prefeitura, do programa Em Casa. O governo deu o material, e a mão-de-obra para subir a casinha foi em sistema de mutirão. Só que depois tive que fazer telhado, porque mutirão já viu, a laje ficou igual peneira, quando chovia, que tristeza!
Isso foi antes, pior é agora: não tem Prefeitura que contribua para completar um muro, dinheiro não sobra para o material. Não se encontra mais quem ajude como antigamente, tem que pagar mesmo. Mas vão melhorando devagar, ampliando, a casa dela é de quatro cômodos, quarto, sala, cozinha, banheiro. Na frente mora um irmão, com dois quartos, copa, cozinha, e também a varanda, de onde se avista parte do bairro.
hhhhhhhhhh
Pequena, Conceição corria no terreiro, pulava corda, estava na roda, no pique-bandeira. Mas do que mais gostava era brincar de comidinha no quintal de casa, fazia fogão de mentirinha, juntava as meninas da vizinhança, os irmãos. A mesma criançada que acompanhava a mãe nas andanças religiosas. Antigamente era uma vivência assim melhor, ia todo mundo junto, tinha respeito pelos pais. A gente saía, às vezes não tinha sapato, aí andava descalço, do jeito que estivesse, ia todo mundo alegre e satisfeito. Outra lembrança boa de Conceição eram as batalhas de confete. Lembra de quando se divertia assim nas batalhas do carnaval? Havia guerra de confete no São Mateus, no Alto dos Passos. Agora acabou o carnaval. Era aquele corso de carro andando, aqueles blocos… Era muito bom antigamente. Era gostoso.
É chegada à família. Conheceu os parentes, lembra-se de todos sem tristeza, sem queixas, só alegrias passadas. Minha tataravó morreu com 110 anos, morava perto da Fundação João Freitas, no São Mateus. Na época se chamava Olaria, era onde fazia tijolo, até morrer ela ainda costurava, morreu mesmo de velha. A avó teve câncer, o avô trabalhava na Prefeitura, sofreu um acidente, perdeu a perna, começou então a tomar conta da Igreja São Mateus. Sabe onde estão os seus: um irmão mora em Nova Iguaçu, mas os outros todos em Juiz de Fora, a maior parte se aposentou. Tem um irmão que completou 25 anos de casado em agosto, quando chegou em setembro se suicidou. Tinha sete filhos, pouco mais de 50 anos. Se enforcou na janela do basculante.
Conceição não estudou, mas gostaria que o pessoal mais novo da família seguisse outro caminho. Mesmo as meninas que estão com 29 anos ainda têm tempo de estudar, eu falo para elas, ocês vão arrumar serviço, está difícil porque eles vão pedir 2º grau. E elas não têm. Entendeu? Então o problema é esse. Uma bisneta está na 3ª serie, só estuda, as duas netas fazem bico em restaurante, ou em casa de família, no que aparecer. Essa escurinha trabalhou dois anos na conservadora e foi mandada embora, agora ela tá no desemprego. É, tem que correr atrás, né? Conceição se esforça para que um sobrinho, Igor, que ela ajudou a criar, não pare de estudar, está na 8ª série, com 15 anos.
No cotidiano, os parentes são unidos. A filha cuida de lavar a roupa de Conceição nos finais de semana, são vizinhos de quintal porta com porta, quase vivendo juntas, constante entra-e-sai. Faxinar a própria casa Conceição não faz mais, é trabalho pesado, as netas ou a filha tomam conta dessa parte. Mas lava a cozinha, a louça, arruma tudo, passa vassoura na casa. E olha as crianças, sempre. Leva no médico, a cada necessidade acode aqui e ali, todos podem contar com ela.
Mesmo com tanta correria de netos e bisnetos, não dá confusão, convivem bem. Se precisar zangar eu zango, se precisar bater eu tô batendo. O filho mora no Bandeirante, visita a mãe, o resto mora tudo ali pertinho. Com tanta união, não falta o churrasquinho de fim de semana. A casa enche. Aniversário, então, fila imensa para cumprimentar, aquele tanto de abraço, Conceição não precisa fazer nada. Só dá um pouco de discussão com o marido: ele dá palpite na criação das crianças. Enquanto ela não, acha que cada mãe tem que criar os filhos do seu jeito, mesma a bisneta morando junto. Se o menino tiver fazendo uma coisa ali e eu não quiser, mesmo que eu sou contra eu tenho que fica quieta, ela é mãe, ela tem que agir. Já o meu marido não, ele entra no meio.
hhhhhhhhhh
Quer melhorias para o bairro. Diz que ali não tem nada, ainda falta muita coisa, tem bairro que tem pracinha, o Dom Bosco não tem. Nem posto policial, nem creche. Nem campo de futebol tem mais. Critica o Hospital Monte Sinai: — Esse hospital aqui pra pobre não vale nada, né? Só pra quem tem convênio, assim mesmo dependendo do convênio é só pra ir lá consultar. O shopping não mudou sua vida, e ainda disseram que o terreno estava cedendo, aí que ela passa longe.
Diz ter medo, e fala com ódio das drogas no bairro. Coisa feia acontece à noite, depois das dez da noite não é bom ficar na rua, recomenda. Se preocupa com os jovens da família, principalmente com a bisneta, Yasmin, que vai ser coroinha, faz questão de acompanhá-la na volta da igreja. Não respeita a gente entendeu? Eu não tenho nada que dizer deles comigo não, porque a gente não dá confiança, né? A neta queria jogar um balde d’água num pessoal que estava consumindo droga ali em frente, Conceição disse para não fazer nada. A filha, de uma outra vez, é que falou para não fazerem isso no portão da casa delas. Vocês faz em outro lugar porque aqui é portão de família. O irmão, que mora no JK, diz para não esquentar a cabeça, que isso está geral, é em todo lugar. No meu tempo a gente via muito homem assim, que bebia.
Muitas outras coisas mudaram. As pessoas chegavam cedo em casa, os filhos então, diziam aonde queriam ir, pediam permissão, a bênção. Agora com 14 anos menino já quer ir sozinho para a rua. Mas tem coisa gostosa também, que Conceição não tinha quando criança e adolescente, e ela gosta. Antes, ia comprar rosca, na venda entregavam cinco ou seis roscas enfiadas no barbante, e o pessoal levava para casa assim, sem sacola, sem embrulhar em papel. Negócio de refrigerante eu nem sabia que existia, sobre essa parte mudou pra melhor, muitas mudou pra pior.
Os jovens, diz Conceição, agora querem tudo chique, tudo com marca. Até o mais novinho, de quatro anos, quer escolher o tênis, a roupa que vai usar. Que no meu tempo a criação era outra, o meu pai e a minha mãe que comprava as coisas e traziam, chegavam em casa, gostou ou não gostou tem que usar. Diz que a família se vira para tentar fazer os gostos de cada um, na medida do possível. Depois, a gente morre, não sabe o que vai ser deles, tadinho. Deixa eles aproveitar.
Na casa, ela é que escolhe o que vai comprar, o marido só dá o dinheiro. Vai ao supermercado, tenta levar algo melhorzinho, se não der para comprar dois pacotes de um arroz de mais qualidade, leva um só. Gosta de doces, de muita coisa que não comia quando era jovem. Naquela época era arroz com feijão, macarrão, era um angu. Tinha dia que eu fui criada com mingau de fubá. Era só isso, minha filha! Agora mudou tudo, o passado fica para trás, entendeu?
Há mais de 20 anos operou a tireoide. Tem diverticulite, e também hérnia de disco, dói quando está em pé, dói quando senta. Vai bastante ao médico, mas não quer operar, diz que se fizer a cirurgia vai ficar paralisada numa cama ou numa cadeira de rodas. Porque eu já tô de idade, né? Aí eu vou sentindo a dor até morrer. Faz exame de sangue de três em três meses, por causa da tireoide e porque tem anemia. Gosta de passear, quando cisma vai à casa de uma colega no São Pedro, isso quando a hérnia dá um sossego. Às vezes fica nervosa, perde a paciência, tanta dor, dor demais. E briga com as netas, as filhas, as bisnetas, depois faz as pazes, não quer saber de ficar brigada.
Pois no geral Conceição é alegre, gosta de conversar, de fazer amizade com todo mundo. Também não tem esse negócio de eu tá chique não, eu vou do jeito que eu sou. Eu estou limpa, e o importante é estar limpa. É ou não é? Adora conversar, conversa com todo mundo. Às vezes está sentada perto de uma pessoa na fila, a pessoa está emburrada, ela procura assunto. Aí essa daqui num tá querendo nada não, aí eu viro pra outra, até eu achar uma que quer conversar. Porque tem que conversar, né? E vamos vivendo assim, assim que eu sou.