
Emília Julião da Silva
Trabalhar em fábrica naquela época era algo que conferia certa distinção: era possível assim garantir registro em carteira e, portanto, direito a aposentadoria, o que muita gente não tinha. Mais o descanso semanal remunerado, aos domingos, e férias pagas, conquistas recentes. Além, é claro, do mais importante, ter um salário certo no final do mês, escapar de aperto maior. Quem vinha do campo dificilmente poderia conseguir algo melhor. Concorda comigo? Emília Julião da Silva foi assim: veio da roça, foi operária de tecelagem, se aposentou, se divertiu, acompanhou de perto e nos conta um pouco da vida de Juiz de Fora desde os anos 1930. Com a experiência de quem esteve à frente de seu tempo, colocando até muita mocinha de agora no chinelo.
— O casamento hoje é uma instituição falida! Tô certa ou tô errada? Porque não tem conversa, não tem diálogo. A mulher fala vou fazer isso, o marido não quer discutir, não quer conversar. E eu, já era diferente, se eu fosse casada acho que eu ia me dar muito bem. Dependendo do homem que eu casasse com ele, inclusive, se fosse sem educação também a gente ia cair no pau!
Emília nasceu em 1923, em Chácara, foi para Juiz de Fora aos oito anos. Nunca casou. Diz que antigamente a mulher era capacho de marido, não tinha liberdade para nada. Não podia nem andar na frente do homem na rua, tinha que ficar atrás. Diferente de hoje: mulher é deputada, senadora, governa o Brasil. As mulheres estão com tudo! O cunhado não concorda, diz que lugar de mulher é no tanque e no fogão. Por isso que não casei, não queria ficar no tanque e no fogão lavando roupa pra marido não!
Estudou só até o 2º ano do antigo primário. E daí? Esperta, a moça. Olhava, refletia, conversava, ouvia. Gosta de dar risada, de fazer brincadeira: — Não casei porque queria um cara assim: alto, fino, curto e grosso! Mas também fala sério, não perde o fio da meada, lembra-se de concluir cada história. Na fábrica, observava: via as mulheres que saíam bonitas para casar, depois retornavam tudo de barriga grande, uma penca de filhos, pernas cheias de varizes, criança com diarreia, muita doença que na época não tinha recurso para tratar. Morria menino a ponto de sair um da mesa e entrar outro. Marido ganhava pouco. Os homens não tinham condições de casar e casavam. Ih!, meu Deus do céu, mas não pode ser isso não!

Emília não casou: não queria ficar no fogão e no tanque pra marido nenhum. Orgulho foi ser operária. (Ilustração: Marlene Perlingeiro Crespo)
Outra coisa: não havia licença de quatro meses para a mulher ganhar neném. Eram só 30 dias, quase acabava de ter o filho, ficava um tempo em casa e voltava para trabalhar. Na fábrica tinha mulher que chegava a se molhar de leite que saía do peito, o leite pingava! Umas pediam ajuda, aí alguém levava as crianças para dar de mamar na hora do almoço, ou na hora da janta, mas outras não. Você entendeu? Ela ficava olhando assim, pensando, meu Deus, como é que essas mulheres têm filhos? A gente tem que ver as coisas! Observar. Eu sempre gostei de observar as coisas. Eu? Vai acontecer isso comigo? Eu não! Na minha barriga ninguém põe filho não!
x.x.x.x.x.x.
Então por que tanta gente vivia daquele jeito? Por que casava? Ora, casamento era tudo arranjado, quem escolhia o casal era a família. Como vai dar certo assim? O pessoal não tinha instrução, e parece que não observava as coisas. Como vai casar se o homem não tem condição de dar comida para a mulher? A pessoa tem que conversar, dialogar, olhar. Riam de mim porque eu não quis casar. Agora, vem cá, menina: eu não queria aquela vida não. Não foi o caso dos pais dela: Francisca Mariana da Silva e Julião Adão da Silva viveram juntos, se deram bem 32 anos, sem briga séria, sem um ficar xingando o outro, e com 12 filhos para criar, oito homens e quatro mulheres.
Casar não casou, mas namorou muito, ora essa. Aliás, para quem acha que “ficar” é algo moderno, avançadinho, Emília garante que não tem nada de novo. Ué, naquele tempo a gente já ficava! Sabe por quê? Porque eu arrumava dois, três namorados. No mesmo tempo! Paquerei bastante! Para não se meter em encrenca arranjava um moço em cada bairro, e marcava encontro sempre em lugar diferente. Adorava sair, passear, o carnaval era coisa fantástica, e os bailes… Dançava com todo mundo… dançava, dançava, dançava… ai meu Deus do céu, coisa boa é dançar! Eu deixei de casar pra mim ir pro baile. Eu ia largar dessa vida pra carregar menino no colo?!
Além disso havia a influência do pai, que sempre falava: casamento não era para um dia, nem para dois, mas coisa muito de muita responsabilidade. Ficou aquele peso, mas Emília não se arrepende nem um pouquinho, nem tem medo de ficar sozinha: Nunca tive. Nunca pensei nisso! O que der a gente compra, o que faltar alguém inteira. Tá tudo bem encaminhado, tenho meu instituto direitinho, minha aposentadoria, tenho esse paiolzinho pra morar.
x.x.x.x.x.x.
Quem ensinou Emília a refletir bem antes de tomar decisões foi seu pai, Julião. Não batia nos filhos, pai bom estava ali, não tem outro igual. Conversava, tratava bem, aconselhava muito. Acho que ele já sabia que ia morrer cedo. Dizia: seja negro, mas com orgulho, não minta, nunca pegue nada que não seja seu, trabalhe, ganhe a sua vida. Julião nasceu em 10 de maio de 1888, ainda em tempo de cativeiro. Filho de escravos e vivendo na roça, aprendeu a ler e escrever, coisa rara. Papai já era ventre livre, professor que tinha lá na Chácara era o senhor Porfírio Luna, papai lia, lia direitinho. Só que ele era canhoto, papai tinha a mão errada, escrevia com a esquerda. Como aprendeu não sei, não deu tempo de perguntar.
Não deu tempo porque quando Julião morreu Emília tinha apenas 15 anos, vinha de receber o ordenado da fábrica Ferreira Guimarães, no Morro da Glória. A memória é perfeita: a família chegou em Juiz de Fora em 1931, ele morreu em 1938. Sete anos só que ele viveu aqui na cidade, e a gente fazia aniversário junto, ele viveu 50 anos, 3 meses e 8 dias. Morreu dia 18 de agosto. Emília lembra que a última coisa que o pai lhe disse, quando ela foi entregar o salário em casa, é que não precisava não, podia ficar com o dinheiro, que era dela. 25 mil réis.
Simples, apertada a vida da família, mas garantir a comida dentro de casa era ponto de honra para Julião e Francisca, ele, sempre a trabalhar na enxada, mesmo quando se mudou para Juiz de Fora, ela, em serviços de doméstica. Antigamente punha remendo nas roupas, lá em casa não! Papai via um buraquinho assim, acabava de rasgar, ia lá na venda, naquele tempo vendia roupa era nas vendas, comprava uma peça, fazia tudo igual! Mas a gente não andava nem com fome e nem rasgada. Com 12 anos Emília largou a escola, ficou ajudando na lida de casa, carregando água, esperando completar 14 anos, já que a partir de 1934 o trabalho, oficialmente, só era permitido a partir dessa idade.
x.x.x.x.x.
Quando chegou aos 14 anos Emília foi trabalhar na Industrial Ferreira Guimarães, tecelagem que fez história na cidade – o prédio, na rua Benjamin Guimarães, faz parte do patrimônio cultural de Juiz de Fora. Era o ano de 1938. Ela ficava todos os dias na porta da fábrica, todos os dias, sem uma folga, para procurar serviço. Tinha primeiro que aprender: — Como vai trabalhar numa coisa que nunca fez se não aprender? Aí tinha que entrar como aprendiz, com 15 dias para aprender o serviço. Era esperta, e a irmã já trabalhava lá, ficou mais fácil. A primeira experiência foi bem ruim.
— Eu tinha pavor daquela fábrica, meu Deus do céu!, como eu não gostava daquela fábrica! Vem cá, minha filha, eu com 14 anos, saindo da minha casa, eu não tava acostumada com aquela gente falando palavrão, papai e mamãe não vivia dizendo essas coisas indecentes não. E as mulheres gritando, uma gritaria, porque era muito barulho, aí pra gente ouvir tinha que gritar!

Em 1938, aos 14 anos, Emília foi trabalhar pela primeira vez numa fábrica, a indústria têxtil Ferreira Guimarães. (Ilustração: Marlene Perlingeiro Crespo)
Emília emagreceu horrores na Ferreira Guimarães, chegou a ficar doente, quase um ano sem ter regras, mas passou a viver uma outra vida. De operária. Na sua fala se percebe essa marca de identidade forte na sua pessoa, um orgulho dos anos que passou em tecelagem: — Você não entende de fábrica. Quem entende é ela. E explica, dá o exemplo: trabalhava das seis e meia da manhã às oito da noite. Eles mandavam eu catar espuma [escória] debaixo da máquina. Você não sabe o que é espuma, que caía embaixo das máquinas, a mulherada comia fumo, punha fumo na boca, cuspia naquele algodão. Quando em metia mão naquilo ali, que vontade de morrer!
Um dia a fábrica fechou, num mês de março. Enquanto a maior parte do pessoal gritava, desmaiava chorando, Emília dava gritos é de alegria, comemorava. Mesmo tendo ficado desempregada. Até porque havia aprendido o trabalho, era só procurar, tinha a Sarmento, a Juta, Santa Cruz, Meurer, Mascarenhas. Tudo na época era fábrica de tecido, e a gente trabalhava na fábrica. O irmão foi atrás de um vizinho, encarregado na Santa Cruz, pediu emprego para uma e ele chamou logo as duas, Emília e a irmã, para trabalhar. Gostou do serviço de ambas, já acostumadas na Ferreira Guimarães, onde os chefes eram exigentes, as operárias tinham de limpar direitinho as máquinas, ajudar na manutenção.
— Menina, cheguei na Santa Cruz não demorou dez dias pra minhas regras vir. De alegria! Engordei 26 quilos, se ficasse na outra fábrica eu ia morrer. Na Santa Cruz a gente era boa de produção, dava no couro, mandava fazer fazia, o encarregado era muito malcriado, mas comigo que ele nunca brigou. Algumas operárias jogavam estopa nos vasos do banheiro, aquilo entupia, só com água não resolvia, o encarregado mandava Emília e ela tinha que enfiar o braço até o ombro para arrancar aquela estopa dali de dentro. Desentupia, limpava privada. O maior medo de Emília era ser chamada à atenção. Tinha vergonha, rosto ficava vermelho, queimando. Ser chamado à atenção é muito triste, ninguém faz isso comigo não.
x.x.x.x.x.x.
Muitas lembranças, 31 anos trabalhando na Santa Cruz, uma vida. Aqui eu trabalhei, aqui me aposentei. Nunca briguei com ninguém, foi um tempo maravilhoso, não tenho nem coragem de entrar naquele shopping que fizeram lá! Foi na Santa Cruz que recebeu o primeiro salário integral, o mínimo fixado por decreto-lei em 1940. Lembra o valor: 6 mil e 800. De novo memória perfeita, a de Emília. O decreto que fixou o salário mínimo no Brasil é de 1940, 6 mil e 800 réis por dia. Era regional, esse valor valia para Belo Horizonte, Juiz de Fora e algumas outras cidades de Minas. Escrevia assim: 6$800. Em 1942 mudou a moeda, 1 mil réis passou a equivaler a 1 cruzeiro.
Antes dos 18 anos de idade o trabalhador recebia menos, até metade do adulto. Por isso que eu tinha raiva do Getúlio Vargas. Por que que eu trabalhava igual aos outros e ganhava pouco? Esse salário de menor, por que salário de menor? Já tava trabalhando! O pai havia morrido há pouco, ela pegava na Santa Cruz das seis da manhã às dez da noite. Ela e a irmã. Enfrentaram dificuldade, havia dia que apertava, o que tinha dentro de casa para comer ficava para os três irmãos menores de Emília.
— Nós vinha pra fábrica, eu era doida pra comer pão com manteiga porque não tava acostumada a comer pão com manteiga, minha boca enchia d’água! Hoje não posso nem ver, só de ver a manteiga eu já vou passando que meu fígado tá doendo. Que coisa! Como é que a vida da gente é!
A irmã de Emília fazia questão de assumir mais tarefas, para aumentar um pouco o salário. Você não entende de tecelagem, a máquina ia como daqui lá na outra porta! Cada um tocava de um lado, aí minha irmã pediu pra tocar dois. E eu ia varrer salão, aquela coisa toda. Algumas vezes os irmãos menores – inclusive Célia, caçula dos 12, que mora hoje com Emília no Dom Bosco – levavam comida para as irmãs na fábrica. Morriam de vergonha mas levavam. Quando moravam perto era mais fácil, depois chegaram a acertar com uns meninos para levar almoço para elas.
Em 1941 Emília chegou à maioridade, passou a ter direito ao salário mínimo integral. Fiquei toda alegre. Primeira vez que eu vi uma nota de 1 conto de réis na mão, quando eu vi aquela dinheirama, falei, ai meu Deus, é muito dinheiro. Ih!, fui comprar sapato, antes andava de tamanco. Se você quer me fazer uma desfeita é me dar um tamanco. Tamanco virava aquela canoinha assim, ó, gastava o salto,virava aquela canoinha, ia eu arrastando o tamanco.
x.x.x.x.x.
Na fábrica, quando tinha de limpar as máquinas, limpava depressa. Sempre que dava algum problema, o mecânico desmontava aquele monte de ferro, mandava fazer limpeza geral, montava depois a máquina toda, e sobrava para Emília limpar. Ela lavava as peças com querosene, depois punha a graxa em tudo. Uma colega reclamava que ela fazia as coisas depressa demais. Mas serviço ruim a gente faz depressa, que é para acabar logo.
Tem histórias para contar dessa época, casos que não acabam, exigem tomar um café, agasalhar-se um pouco, respirar fundo. Tudo vai voltando devagar. A maior parte das colegas, do pessoal da fábrica, já morreu, outros também estão aposentados, o lugar onde mais os encontra é na fila do banco para receber a aposentadoria. Lembra… trabalhar nas indústrias de tecelagem era tão importante que havia até tráfico de influência para arranjar emprego.
— Uma senhora que trabalhava na minha fábrica, parece que ela tava gostando do
encarregado. Ela morava no Vitorino Braga, e punha todo mundo do São Benedito na fábrica. Ela arrumava serviço procê, mas o primeiro mês tinha que dar o ordenado pra ela! Aí um grandão lá da Mascarenhas namorou uma vizinha minha, e essa moça contou pra ele as coisas que ela fazia. Dr. Mascarenhas era muito amigo do Dr. Junqueira, contou que a moça vendia, ele pôs ela na rua na hora.
Só tem elogios para os antigos patrões da Santa Cruz. Dr. Celso, dr. Junqueira, dr. Chicão, Francisco Monteiro, dr. Isaac, todos foram ótimos, se preocupavam com os operários deles. Dona Elza mora ali até hoje na Roberto de Barros, uma casa pegada, a primeira casa que vai daqui pra lá virando a rua São Sebastião, é a única que tem da família. A casa de um deles tinha saída pelos fundos, que dava dentro da fábrica, chegava de manhã, ficava na cabeceira de uma máquina, dava bom dia, perguntava se as moças já haviam tomado café. Outro dos donos ia até à porta da tecelagem na hora da saída, para olhar as operárias passarem. Tenho muito bem que falar dos meus patrões! Graças a Deus não posso me queixar de nada. Quando nós saímos, quando nos aposentamos, eu mais a minha irmã, recebemos uma gorjeta, e compramos isso aqui. Foi onde nós compramos esse pedacinho pra nós ficar.

“Tudo na época era fábrica de tecido, e a gente trabalhava na fábrica”, conta Emília. (Ilustração: Marlene Perlingeiro Crespo)
x.x.x.x.x.x.
Emília mora no Dom Bosco há 32 anos. Viveu antes na avenida Sete de Setembro, depois no Manoel Honório, e mudou para a rua Espírito Santo, número 608, onde hoje guardam móveis. Teve um lote no Ipiranguinha, quase sem valor, mas passou para a frente, era muito morro. Conhece a cidade na palma da mão. Fica brava se alguém diz que é de Juiz de Fora e não sabe onde fica, por exemplo, o Grupo Antônio Carlos. Ali eu estudei, com dona Andréia Macedo, professora de fama, ela metia a régua, mas valeu a pena, não cheguei a tirar diploma, nem nunca levei reguada dela, mas tinha medo. E medo é proteção.
No começo, no Dom Bosco, eram só ela e a irmã, moravam em dois cômodos. A irmã se casou, pela segunda vez, e o cunhado foi morar na mesma casa. Ele é pedreiro, aumentou mais um quarto em cima e outro embaixo, foram arrumando devagar. Além dessa irmã, Emília tem a caçula, que mora no Ipiranga. É viúva, ela criou uma menina que tava no instituto, morreu, deixou uma casinha pra ela. Os outros já morreram. O mais velho ficou sempre solteiro, era quem ajudava no sustento da família, quando saíram de Chácara.
Um dos irmãos morreu no Rio de Janeiro, mudou-se para lá, largou a mulher depois de sofrer muita desfeita, ficou casado 29 anos e nove meses, levou a sério a história paterna de casamento não ser apenas para um ou dois dias. Foi para o Rio apesar do aviso: nas terras alheias boi berra como vaca. Faz dez anos que morreu. Aí quando ficou ruim, pra morrer, ele ligou pra mim, ia fazer uma cirurgia, e morreu. Nunca foi na cadeia, não desencaminhou família dos outros, criou dois filhos muito bem criados. Esses dois sobrinhos de Emília moram em Belém do Pará, são professores, ela já foi visitá-los três vezes. Na nossa família só tem esse meu irmão que teve um casal de filhos, o resto ninguém mais teve filho.
Quem também morreu no Rio de Janeiro foi um cunhado de Emília, marido daquela irmã que mora no Ipiranga. E que adorava esse marido. Mas brigavam demais. Um dia ele falou que, se fosse para chegar ao ponto de levantar a mão um contra o outro, preferia sair de casa. Nessa parte ele teve vergonha, foi embora pro Rio, mas depois de morto ainda me deu trabalho, me pôs andando naquele Rio de Janeiro igual uma doida procurando onde tava enterrado.
A irmã precisava do atestado de óbito do marido, e Emília viveu uma epopeia para conseguir o documento. Foi no Caju, no Catumbi, Irajá, nada. Correu na Santa Casa – diziam que os mortos ficavam todos arquivados lá – , onde um homem que batia na máquina de escrever deu a informação: está no cemitério de Inhaúma. Vai dar o atestado também? Não, mas queria cobrar 40 mil réis. Ela não pagou e seguiu em frente. Chegou no Inhaúma, fracasso. Era para ir no cartório do Méier. Cheguei lá, paguei 35, peguei o telefone e falei com meu irmão: Ó! Já tô com o defunto tá na mão!
x.x.x.x.x.x.
Nas horas vagas, finais de semana, a operária tecelã se divertia. Para sair dançando não precisava muita coisa, bastava arranjar uma caixa batendo e um pandeiro, ia para os bailes, para os ranchos de carnaval. Tinha o Quem Pode, Pode, o Quem Não Pode Deixa, Rouxinóis, Aventureiros… O Não Venhas Assim eu fui direto! Ia dr. Dilermando, Viana Júnior. A diretoria era dona Maria Barva, seu Adolfo, pessoas de influência. Emília chegou a fazer parte da diretoria de um dos ranchos, mas não gostava de desfilar, nunca saiu na rua. Eu de cara pelada fazer marmota pros outros? De jeito nenhum!
Conhecia os músicos, muitos eram da banda do 2º Batalhão, que gostavam de tocar também fora do Exército. Conheceu Nelson Silas, magrinho, que trabalhava de leiteiro. Antigamente tinha aquelas carroças de leite, e os meninos entregavam leite nuns vidros assim, entregavam nas portas. Emília também conheceu o sambista Mamão, orgulho musical juizforano, era vizinho dela, de frente, morava na rua João do Rio, no Manoel Honório. A mãe dele chamava ele de Alemão! Alemão! Aí ficou Mãozinho, Mãozinho, agora é Mamão! E tinha o Tonicão, o seu Álvaro, o Djalma, o João Batista, da Turunas. Aliás, a Turunas do Riachuelo, criada em Juiz de Fora no ano de 1934, é a primeira escola de samba de Minas Gerais, e a quarta do Brasil. Outros tempos… Romântica, Emília lembra das músicas, canta…
x.x.x.x.x.x.
Gosta de mudanças. Onde está o Shopping Independência era um pasto. Diz que é o progresso que chegou no Dom Bosco, e está empurrando o povo para as beiradas. Não há mais terrenos para vender. Acha isso bom. Quem pode pode, quem não pode deixa, entendeu? Porque se todo mundo ficar parado numa coisa só então o mundo não vai pra frente! Regredir pra que?
Irrequieta, Emília garante que se a pessoa não é curiosa não arranja nada na vida. Concorda comigo? Com esse espírito, foi ter também um pouco de experiência política. Trabalhou no final dos anos 1940 na campanha do prefeito Dilermando Cruz Filho, que era do PRM, o Partido Republicano Mineiro, um dos protagonistas da política do café-com-leite, São Paulo-Minas, tempos das oligarquias da República Velha. Falta de juízo, menina! Eu queria me meter, queria saber das coisas, queria saber como é que era… Gostava da UDN, nada de Partido Trabalhista, muito menos Partido Comunista.
— O Riani era colega de futebol quando eu morava no Manoel Honório, tinha o ABC, o time de futebol que jogava pra lá. Depois ele se meteu na política, o pessoal fala que não, mas eu conheço a coisa, o falecido seu Orlando, pai do Riani, era comunista de papo amarelo, comunista mesmo… Eu não entrosei muito nisso não, pelo que eu ouvia falar, aquele tal do Fidel Castro, antigamente tinha que entregar o filho lá pro governo dele. E você trabalhava, não recebia dinheiro, você tinha comida, roupa, calçado, tal, tal… Mas, vem cá! Que negócio é esse? O dinheiro tem que sair na minha mão, quem trabalhou foi eu! Uai! O governo dava tudo.
Clodesmidt Riani é referência na vida política de Juiz de Fora. Foi uma das principais lideranças da esquerda trabalhista operária no Brasil na década de 60, e sofreu com a ditadura militar. Nascido em Rio Casca, em 1920, é filho de Orlando Riani, presidente do Sindicato dos Têxteis de Juiz de Fora nos anos 1930, e foi para Juiz de Fora, onde mora até hoje, com seis anos de idade. Operário que viveu também a experiência de aprendiz, Clodesmidt Riani trabalhou na Tecelagem Moraes Sarmento. Mais tarde ingressou na Cia. Mineira de Eletricidade, foi criador e presidente do Sindicato dos Eletricitários de Juiz de Fora, vice-presidente da CNTI – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria e presidente do CGT – Comando Geral dos Trabalhadores. Três vezes eleito deputado estadual pelo PTB, amigo de João Goulart, foi preso em 1964. Torturado, negou-se a assinar declaração de que Jango seria comunista. Cassado pelo AI-1, foi solto em 1971, aposentou-se em 1983, e em 1984 retornou aos estudos, concluindo o curso de Direito. Elegeu-se deputado ainda em 1982, pelo PMDB.
x.x.x.x.x.x.
A curiosidade de Emília estava em toda parte. Católica, criada pelos pais na Igreja da Glória, queria sempre saber mais, perguntava isso e aquilo. Na igreja falavam muito do inferno, ameaçavam. Chegou um dia em que morreu um dos irmãos dela, e para ele não ficar ardendo no fogo eterno tinha que rezar missa de 7º dia, se não a pessoa passa no purgatório e vai para lá. Mas você sabe onde é que fica o inferno? Tá vendo, ninguém fala! Eu dizia: meu irmão, que ajudou a criar a gente, foi tão bom, agora tá sofrendo no purgatório, onde é que ele está, meu Deus?! Emília pagou 2 mil réis ao padre Aluízio para acabar com aquilo, o padre rezou a missa no dia das Mães, agarrou a falar das mães, esqueceu de tocar no nome do irmão dela. Que foi pedir explicação, afinal tinha acertado isso antes, pagou à vista, e ele respondeu que o que valia era a intenção. Sim, mas não é irmão dele que vai pro inferno.
Emília saiu dali furiosa. E preocupada com o irmão. Encontrou na saída da igreja uma americana, que lhe entregou um papelzinho. Conversa vai, conversa vem, Emília ainda revoltada deu um esculacho na gringa: — A senhora está aqui falando comigo, por que não vai ficar lá na sua terra? Se fosse lá não ia falar nada, porque o mesmo ódio que o americano tem do negro, o negro tem do branco, vocês são uma pá de gente que não vale nada, vive brigando e depois vem me dar papel aqui. Falou aí também o orgulho de ser afrodescendente: não considera preconceito ser chamada de negra, se me chamar de loira sim vou brigar até cair!
Mas o medo pelo destino do irmão continuava, digamos, infernizando Emília. Acalmou-se, concordou em dar seu endereço para a mulher. Que foi à casa dela, disse a Emília que o seu irmão não estava nem no céu nem no inferno, estava dormindo, pois a morte é um sono eterno, e quem o havia matado era o Diabo, e não Deus. Emília respondeu que já havia lido a Bíblia e não havia encontrado nada disso. A tréplica da estrangeira: não bastava ler, tinha que estudar. Eu precisava tirar essa confusão da minha mente. Marco Maciel falou uma vez, quando ele foi ministro da Educação, que muita gente não sabia ler, sabia agrupar palavras. Fiquei com uma raiva dele, menina… Mas não é que o bandido do homem tinha razão?!
Emília já era apaixonada por leitura, não deixa passar nenhum livro ou revista na frente dela, então entrou mesmo com força nos grupos de estudos bíblicos, topou o desafio de aprender mais. Estudou com eles durante três anos, uma porção de livros, começou também a ir à casa dos outros, mas sempre respeitando a opinião alheia, não discute com ninguém, cada um na sua. A gente recebe aquilo que a gente faz, né? Deus mata, Deus cobra, Deus faz, mas que Deus é esse que é um malandro, que vai lá e vem cá! Dá, tira, dá, tira. Eu queria saber era isso, o porquê. As respostas de tudo nosso é por estudo. É testemunha de Jeová há 40 anos, e continua frequentando as reuniões, no Mundo Novo, às quintas e sábados, vão de táxi, ela com a irmã, na volta sempre conseguem carona.
x.x.x.x.x.x.x.
A saúde segue boa, aos 86 anos está tinindo, não tem diabetes, só um certo medo de que os anos trabalhando em pé na fábrica tenham lhe estragado os ossos. Uma das pernas entortou, a outra tem prótese, ambas inchadas, usar meias ajuda, andar é dificultoso. Eu usava bengala, minha irmã usa, mas agora estou com uma muletinha, que fica mais fácil pra mim andar, porque minhas pernas tão ficando cada vez mais fracas. Só isso, o resto tá tudo bem!
Colesterol controlado, segue firme comendo gordura de porco. Garante que faz menos mal que óleo vegetal – conta que esse óleo você joga assim num cano, vai dando aquela crosta, e a gordura não, desliza. Cuida da saúde, estava com pressão alta, apesar de não beber, nem fumar. Ficou inconformada, mas resolveu tomar o remédio que o médico do SUS receitou. Mas fora disso eu não tenho nada, não! Nós tínhamos médico na fábrica, era o dr. Silva de Andrade, a gente ia lá por qualquer coisa, mas eu nunca fui doente, quando eu entrei na menopausa correu tudo bem.
Vaidosa até hoje. Sempre foi. Tem bracelete, argola, brinco, tudo de ouro. Peruca. Depois que o pai e mãe morreram, sem filhos, gastava com ela mesma. Calcei bem, vesti bem, andei bem vestida… Gostava de subir a Rua Halfeld depois de sete e meia, oito horas, para se exibir. Jovem é bobo! Que bobeira, né?! Comprei minha cama, olha ali no meu quarto, compro lençol caro, tudo que me agrada eu compro. Tem legumes ali, tem fruta… gastamos dinheiro é com a gente.
Mesmo com a paixão pela fábrica, depois que se aposentou não teve nada de tristeza. A vida lhe foi ótima. Pode ir para o Rio, para os encontros da congregação, não tem que pedir licença para ninguém, vai a Belém a hora que quiser, os sobrinhos paparicam a tia, é só telefonar que mandam passagem. E canta. Enquanto cozinha e lava roupa, canta, está sempre cantando. Faz o serviço de casa assim, deixa tudo arrumado, tudo limpo. Passa pano na casa e lava o banheiro todos os dias. No dia em que não puder fazer isso, não sei o que será de mim. Mas eu tenho certeza que eu vou fazer até o fim, disso eu tenho certeza!
Para matar o tempo, além de cuidar da casa, ler e estudar a Bíblia, Emília ouve rádio. De um jeito muito dela: todos os dias, às sete da noite, depois de jantar, dorme, até meia-noite. Daí acorda e ouve o Planeta Rei. Música romântica direto, até as três da manhã. Ouve músicas lindas, da época em que dançava. Uma delícia. Pode pedir qualquer música, nunca pediu, mas está doida para ver se tocam uma música para ela. Pode ser aquela: “Amar é sentir o calor correr… não sei por que não te declarei meu amor…” É romântica, é mesmo. Ah, minha filha, vou contar só pra você: a gente tem que saber fazer as coisas…