Especializado na interpretação historicamente informada da música de tecla ibérica e italiana, Marco Brescia apresenta um concerto ao cravo integralmente dedicado à obra para instrumentos de tecla do compositor e teórico espanhol Antonio Soler (1729-1783), autor de primeiríssima grandeza no contexto da música europeia do século XVIII. O concerto foi preparado especialmente para o 28º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, e será realizado nesta segunda-feira, dia 24, às 20h, na Igreja do Rosário, com entrada franca.
Soler foi organista do Real Monasterio de San Lorenzo de El Escorial, onde conviveu de perto com os célebres compositores José de Nebra e Domenico Scarlatti. “O compositor napolitano [Scarlatti] desempenharia influência decisiva no desenvolvimento da obra de tecla soleriana, que se equipara tanto em nível de exigência técnica como em qualidade musical à magistral obra scarlattiana, embora, na minha opinião, Soler dê um passo além de Scarlatti”, afirma o especialista.
Segundo ele, a faceta de teórico musical de Antonio Soler – da qual é fruto o tratado La llave de la Modulación y antigüedades de la Música (Madrid, 1762) – contribui para “uma ousadia e modernidade harmônica sem precedentes”, que, em alguns casos, como o do Preludio y Fuga en Do Mayor que abre o programa do concerto – “beira o paroxismo”.
Assim como Scarlatti, mas de forma ainda mais enfática, Soler incorporou nas suas obras de tecla vários elementos provenientes do folclore espanhol, valendo-se, nas suas famosas sonatas para instrumentos de tecla – dedicadas ao infante Gabriel de Borbón, de quem foi tutor musical durante as estâncias da família real no mosteiro de El Escorial –, de “uma linguagem que gravita entre os estilos galante e clássico, mas também utilizando com maestria o contraponto estrito nas suas fugas e intentos”.
Com o objetivo de introduzir o público do Festival às particularidades da obra desse importante autor, o programa do concerto é composto por quatro sonatas bipartidas (R53, R54, R37, R84) e uma sonata em três movimentos (R65), encerrando-se com o célebre Fandango, “obra vibrante e de incontornável virtuosismo, que é sempre um renovado desafio para o intérprete mais experimentado”, ressalta Marco Brescia.
Pioneirismo
O músico ressalta sua alegria de estar de volta à programação do festival sete anos depois de um concerto realizado no intimismo da Capela da Santa Casa durante a 21ª edição, em 2010. “Lembro-me sempre desta bela experiência com especial carinho; a capela repleta de um público muito atento, que reagiu entusiasticamente à proposta artística.”
Fundador do Festival Internacional de Música Antiga de Diamantina, o especialista considera que o festival juiz-forano tem proporcionado a diversos músicos a oportunidade de travar o primeiro contato com a música da América portuguesa e a música antiga – todo um novo universo musical que muitos abraçaram, e em cujo enquadramento puderam desenvolver a sua vocação. “Foi também graças à base possibilitada pelo festival juiz-forano que diversos músicos de excelência puderam alçar voos ainda mais altos e especializar-se na prática da Música Antiga em alguns dos mais prestigiosos centros superiores de ensino musical à escala internacional”.
Ainda segundo Brescia, o festival, ao longo da sua história, “foi o maior responsável pela formação de público e pela consolidação do conceito da prática historicamente informada da Música Antiga no Brasil, e, graças ao seu pioneirismo, o caminho para a realização de outros eventos dedicados à Música Antiga – como é o caso do festival diamantinense, cuja direção artística tenho a honra de assinar desde a sua criação em 2015 – hoje se encontra ampla e duradouramente aberto”.
Oficina
Além do concerto, Marco Brescia ministrará uma oficina para cravistas, clavicordistas e organistas no festival. “Pelo próprio percurso da minha formação musical eu tendo fortemente a integrar o ensino dos instrumentos de tecla histórica em vez de compartimentá-lo de forma estanque por instrumentos”, explica o professor, que iniciou seus estudos no piano e em seguida passou por órgão, clavicórdio e cravo.
Segundo ele, a fronteira entre os instrumentos antigos de tecla era tão tênue quanto imperceptível à época, de modo que parece “algo artificial e, sobretudo, alheio à prática histórica” o estabelecimento de fronteiras demasiado rígidas entre o aprendizado dos mesmos. Despertar os instrumentistas para essa integração é precisamente o que Brescia pretende com sua oficina dedicada à prática historicamente informada da música de tecla ibérica e italiana, em que os alunos vão percorrer um repertório tanto genérico quanto dedicado a um determinado instrumento.
Na opinião de Brescia, há ótimos cravistas, tanto docentes como discentes – e titulações bem consolidadas de Bacharelado, Mestrado e Doutorado no instrumento no Brasil – e algum avanço, “demasiado tímido” em sua opinião, se pode notar em relação ao órgão histórico, embora não exista titulação acadêmica específica na prática historicamente informada desse instrumento.
O especialista também reconhece que o Brasil já dispõe de cravos de excelente qualidade construídos no país. Ele cita como exemplo os instrumentos de César Ghidini, órgãos históricos restaurados por alguns dos organeiros mais reputados do mundo (Bernardt Edskes, Gerhard Grenzing, Frédéric Desmottes) – com absoluto destaque para os instrumentos de Mariana, Tiradentes, São João del Rei e Diamantina. “Mas ainda me parece algo débil o conceito de integrar os instrumentos de tecla histórica num ensino mais inclusivo, o que, a meu ver, é essencial para o desenvolvimento de um olhar mais holístico sobre a música de tecla antiga.”
Prestígio e tradição
Foi graças ao primeiro lugar conquistado na categoria principal do X Concurso Nacional de Piano Arnaldo Estrela de Juiz de Fora, realizado pelo Centro Cultural Pró-Música há 20 anos, que Marco Brescia obteve uma bolsa do Governo da Espanha para um curso de alta especialização em piano promovido pela Escuela Superior de Música Reina Sofía. “Este foi o primeiro concurso que fiz, com imenso respeito por se tratar de um concurso de inequívoco prestígio e tradição no país, e foi para mim toda uma surpresa sair vencedor do mesmo, ainda mais se tratando da minha primeira experiência no gênero.”
Na Espanha, Brescia descobriu o “riquíssimo e apaixonante” mundo do órgão barroco ibérico, que paulatinamente foi ocupando o lugar do piano na sua vida. No aprofundamento do estudo tanto técnico-artístico como organológico do órgão de raiz ibérica na Espanha, Portugal e no mundo luso-brasileiro, e, consequentemente, na sua especialização no repertório de tecla histórica ibérica e italiana que secunda a evolução do instrumento nas suas várias vertentes, descobriu o clavicórdio, instrumento doméstico e íntimo no qual se exercitavam diariamente os organistas entre os séculos XVI e XVIII (“tal qual também o faço no século XXI!”). Daí para o cravo foi apenas um passo, “direto e natural”.
A Igreja do Rosário fica localizada na Rua Santos Dumont 215, no Bairro Granbery.
Todos os concertos noturnos serão precedidos de palestras ministradas pelo coordenador do Bacharelado em Música da UFJF, Rodolfo Valverde, com início às 19h, nos mesmos locais das apresentações..
Programa
Antonio Soler (Olot, 1729 – San Lorenzo de El Escorial, 1783)
Preludio y Fuga en Do menor
Sonata de Clarines en La mayor, R. 53
Sonata de Clarines en Do mayor, R. 54
Sonata en La menor, R. 65
. Andante cantabile
. Allegro assai
. Intento con movimiento contrario
Sonata en Re mayor, R. 37
Sonata en Re mayor, R. 84
Fandango
Carreira
Marco Brescia, cravo: organista italiano/brasileiro radicado no Porto (Portugal), especializou-se na interpretação historicamente informada da música de tecla ibérica e italiana, atuando nos mais renomados festivais e ciclos internacionais de concerto na Europa e Américas Central e do Sul, com destaque para as XXXIV Jornadas Internacionales de Órgano de Zaragoza; VII Festival Espazos Sonoros; II Ciclo de conciertos en órganos históricos de Gran Canaria; De lugares e órganos – Músicas e outras paisaxes de Compostela; IV Compostela Organum Festival – Xacobeo 2010; XXXV Festival de Música Antigua de Barcelona; Festival Cidade de Lugo / XLV Semana de Música do Corpus (ESP); VIII Festival de Órgão de Faro; II Festival de Órgão de Braga; I-II Festival Internacional IN SPIRITUM; V Festival de Órgão de Madeira; 40.o Festival de Estoril/Lisboa (PRT); I Artes Vertentes: Festival Internacional de Artes de Tiradentes; I-II Festival Internacional de Música Antiga de Diamantina; 21º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora (BRA); II Festival de Música Antigua de Panamá (PAN).
Brescia é mestre em Interpretação da Música Antiga/Órgão Histórico (Escola Superior de Música de Catalunya/Universitat Autònoma de Barcelona), com obtenção da prestigiosa matrícula de honor; e doutor em Musicologia Histórica/Organologia (Universidades Paris IV – Sorbonne / Nova de Lisboa), com obtenção da menção máxima, très honorable à l’unanimité. Atualmente, é pesquisador pós-doutoral da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal integrado ao Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical/Universidade Nova de Lisboa. É autor da edição crítica do “Libro de Órgano de Melchor López” (1781), publicado pelo Consorcio de Santiago em comemoração ao 800º aniversario de la Catedral de Santiago de Compostela.
Marco Brescia é cofundador do ensemble Favola d’Argo, tendo igualmente colaborado com conceituadas agrupações musicais como Ministriles de Marsias; Real Filharmonía de Galicia ou Il Combattimento. Desde 2006, forma um aclamado duo com o soprano Rosana Orsini, com quem gravou o CD “Angels and Mermaids: religious music in Oporto and Santiago de Compostela (18th/19th century)” (Arkhé Music, 2016). A sua discografia inclui o álbum para órgão solo “Zipoli in Diamantina” (Arkhé Music, 2017). Brescia é diretor artístico do Festival Internacional de Música Antiga de Diamantina (BRA) e do Ciclo de concertos de órgão: Vila Nova de Famalicão e Santo Tirso (PRT), bem como membro da Comissão do Governo Regional dos Açores para os Órgãos Históricos e da comissão científica para o restauro do órgão histórico do Palácio Nacional de Queluz (Portugal). Pelo seu trabalho em prol da salvaguarda e restituição do património organístico histórico brasileiro, foi condecorado com a Medalha de Honra Presidente Juscelino Kubitschek.
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