Giovanna Sarto
Como foi o processo até chegar lá nos EUA, e especialmente em Dayton?
Em dezembro de 2023, próximo às festividades de Natal, tomei conhecimento de algo que se revelou um verdadeiro presente: um edital específico da Marian Library, voltado para pessoas pesquisadoras na área de Mariologia. A Marian Library, localizada na Universidade de Dayton, uma pequena cidade do estado de Ohio, Estados Unidos, é amplamente reconhecida por abrigar um dos maiores acervos do mundo de textos sobre Maria, estudos em Mariologia e pesquisas relacionadas ao fenômeno da devoção mariana. Ela ocupa a segunda posição em termos de acervo mariano global, ficando atrás apenas da biblioteca da Pontifical Gregorian University, em Roma, que detém o maior acervo mariano do mundo.
Mas ainda que Mariologia seja um ponto da minha pesquisa de doutorado, o
edital parecia, à primeira vista, distante da minha realidade. Isso porque o estado de Ohio é um estado bastante conservador da região Centro-Leste, e pensei que, por tal influência, os pressupostos do edital também poderiam estar alinhados com um contexto tradicional e institucional da Igreja Católica. Isso, de fato, gerou em mim uma certa dúvida sobre a viabilidade de minha participação, especialmente considerando que meu projeto de pesquisa articula temas de religião com questões de raça, gênero e sexualidade de forma crítica e interseccional, fundamentada em perspectivas decoloniais e queer.
No entanto, após um diálogo sensível e franco com minha orientadora, profa. Dra. Andrea Sidnei Musskopf, refleti sobre as possibilidades que essa experiência poderia abrir e decidi submeter meu projeto ao edital, mantendo o foco na inovação e no caráter subversivo de minha proposta, desafiando também os limites do discurso religioso e acadêmico em torno do tema.
Para minha surpresa, em janeiro de 2024 recebi a confirmação de que meu projeto não só havia sido aprovado, mas também promovido para uma categoria superior de pesquisa do Instituto Internacional de Pesquisa Mariana (IMRI). Em vez de ser classificada como “estudante de pós-graduação com pesquisa em andamento”, como inicialmente me inscrevi, a banca classificou minha proposta no nível de "pesquisadora visitante". Essa mudança foi um marco importante, pois me proporcionou acesso privilegiado a materiais raros e de grande valor, além de me aproximar diretamente do corpo docente do departamento de Religious Studies da Universidade de Dayton e da equipe de pesquisadoras e pesquisadores da Marian Library. Durante minha estadia entre os meses de junho e julho de 2024, tive à minha disposição acesso amplo à biblioteca, e uma sala pessoal de trabalho.
Um pouco sobre minha pesquisa e meu trabalho no IMRI
Sob o título “The liberating potential of devotion to the Black Virgins in the Latin American Mariological tradition: a feminist contribution” e trabalhando diretamente com referências importantes (como a professora Neomi DeAnda, que se tornou também uma amiga querida), concentrei-me em três objetivos. O primeiro foi destacar uma fundamentação histórico-sociológica recente para situar o símbolo específico de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, no campo mais amplo das representações das virgens negras, investigando questões de gênero e sexualidade em uma Mariologia da e para a libertação. Depois, numa segunda fase, centrei-me no estudo do desenvolvimento e transformação das interpretações mariológicas no campo político e religioso latino-americano mais alargado, e algumas das suas expressões na história. Esse caminho me ajudou a retomar os aspectos de gênero e sexualidade do caso específico da devoção a Nossa Senhora Aparecida a partir de uma perspectiva mais madura, e que também impactasse de forma positiva as redes de pesquisas e diálogo na IMRI.
Nesse sentido, acessei diferentes materiais, fiz uma revisão bibliográfica do meu próprio trabalho e mergulhei no acervo da Biblioteca. Dentre os muitos materiais coletados, três merecem destaque: O arquivo número 5392 – “O.L. Of Aparecida X Brazil”, dos Arquivos Sutton; o livro Black Madonna: a womanist look at Mary of Nazareth, de Courtney Hall Lee; e, por fim, artigos especiais e inéditos publicados pelo pesquisador Michael Duricy diretamente nos acervos da UD. Estes três materiais foram, sem dúvida, pérolas para a minha investigação.
Essa experiência proporcionou avanço na minha pesquisa, me proporcionou também a oportunidade de publicar uma contribuição em inglês e reforçou a importância de estabelecer diálogos internacionais, trocando saberes e abordagensmetodológicas entre diferentes contextos acadêmicos. A interação com a Universidade de Dayton foi rica em múltiplas perspectivas e desafios, especialmente por confrontar minhas propostas teóricas com um ambiente acadêmico e cultural distinto.
No entanto, mais do que a validação de meu projeto em uma universidade estrangeira, o que se destacou, para mim, nessa vivência, foi a maneira como ela reforça o valor e a qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão desenvolvidos na Universidade Federal de Juiz de Fora e, de maneira especial, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião (PPCIR). É graças ao ensino público, gratuito e de qualidade de minha instituição de origem, do apoio do departamento e de minha orientadora, com seu compromisso com a pesquisa crítica e de vanguarda, que eu tenho tido oportunidades tão significativas como essa. Em minha experiência pessoal, esse tipo de educação – humana e cidadã – prepara estudantes não só para o mercado de trabalho, mas para desafios contemporâneos. Nos mune com ferramentas suficientes para fazermos contribuições relevantes em debates acadêmicos de grande complexidade.
Além disso, esse intercâmbio de saberes também reforçou a relevância das abordagens feministas/queer/ decoloniais/interseccionais no cenário global. Pude perceber que há uma crescente abertura para temas que desafiem os padrões normativos estabelecidos e busquem uma compreensão mais plural, algo que se alinha profundamente com os ideais de inovação e transformação que permeiam o compromisso de pesquisa que tenho assumido. Acredito que essa disposição vai também de encontro com o trabalho realizado nas instituições brasileiras, com suas raízes sólidas em um pensamento crítico e no compromisso com justiça social, o que é fundamental para o fortalecimento de diálogos internacionais transformadores.
Para além do trabalho teórico-bibliográfico
Durante minha estadia na UD, produzi um artigo de título “BlackMadonna and It’s ‘Strange History’ in Brazil. A Feminist contribution to the studies on Our Lady Of Aparecida” que foi publicado na Revista Acadêmica eCommons da Universidade de Dayton, como fruto da minha pesquisa. Para além disso, participei de diversas reuniões – formais e informais – com o corpo docente do departamento de Religious Studies, especificamente, e com o corpo docente do College of Arts and Sciences, de forma geral. Também dei entrevista à assessoria de imagem institucional da Universidade e participei de alguns eventos. Dentre elas, destaco a Imago Dei Conference: Embracing the Dignity of LGBTQ+ Persons, realizada de 27 a 30 de junho, organizada pela Marianist Social Justice Collaborative e pela North American Marianist Family. Esse foi um evento de grande proporção, de caráter nacional, voltado para a comunidade católica LGBTQ+ do país, e foi um marco significativo tanto no meu desenvolvimento profissional quanto pessoal. Reforçou os princípios que orientam minha trajetória como pesquisadora, especialmente de uma Ciência da Religião não desconectada da realidade prática, comprometida com a construção de uma cidadania inclusiva e com a luta pela justiça social. A participação na Imago Dei Conference não apenas me proporcionou a inserção em uma comunidade acolhedora e segura, mas também facilitou a criação de redes profissionais com pesquisadoras e pesquisadores dos mais diversos lugares dos EUA, engajadas/os em diversas frentes teológicas, políticas e científicas.
Outro encontro significativo foi uma reunião que tive com o Padre Johann Roten, acadêmico de renome internacional e autoridade na área de Mariologia. O Padre Roten dirigiu o IMRI e a Marian Library por 15 anos e, atualmente, continua a lecionar no IMRI. Nascido na Suíça, foi um dos discípulos próximos do Papa Bento XVI e continua a ser uma figura de autoridade no cenário acadêmico. Além disso, foi membro de uma comissão do Vaticano sobre a figura de Maria na década de 1990 e serve, frequentemente, como consultor para dioceses globais em questões que incluem desde processos de canonização até investigações e estudos sobre aparições marianas. Durante nosso encontro, discutimos questões complexas sobre os limites e as possibilidades de diálogo entre o feminismo e o catolicismo, bem como os desafios para repensar temas de dissidência sexual e de gênero dentro da teologia católica mais tradicional. De forma inesperada, o Padre expressou grande interesse pelo papado de um de meus antepassados, Giuseppe Melchiorre Sarto, o Papa Pio X – o que resultou em uma conversa interessante sobre esse período da história da Igreja. Foi, sem dúvida alguma, uma reunião que me proporcionou uma valiosa troca intelectual e que estabeleceu uma ponte significativa com uma figura de destaque no contexto Vaticano.
Finalmente, destaco também a excelente relação que estabeleci com o Departamento de Relações Internacionais Universidade de Dayton. Em uma das conversas com o diretor dessa área, ele manifestou um grande interesse em explorar a possibilidade de firmar uma parceria de intercâmbio com a minha universidade de origem, a Universidade Federal de Juiz de Fora. O objetivo seria proporcionar a estudantes brasileiras e brasileiros a oportunidade de estudar e vivenciar a experiência acadêmica em Dayton. Após meu retorno ao Brasil, o responsável por esse setor entrou em contato novamente, reiterando o interesse e solicitando minha ajuda para facilitar a conversa sobre tal potencial parceria com a UFJF. Com isso, tomei as providências necessárias, encaminhado ao Departamento de Ciência da Religião (PPCIR) e à Diretoria de Relações Internacionais (DRI) as informações e os contatos. Tenho grandes expectativas de que esse projeto possa gerar frutos positivos não apenas para a UFJF e a
UD, mas também para outras pesquisadoras e pesquisadores, sobretudo jovens que estão começando a jornada acadêmica. Acredito que isso possa criar oportunidades e impactos significativos em ambos os lados. Assim como o Marian Library Fellowship Program foi a minha primeira experiência nos Estados Unidos, e foi transformadora em termos de desenvolvimento profissional, pessoal e linguístico, acredito que ter a possibilidade de expandir essa rede de contatos pode gerar maior circulação internacional da produção acadêmica brasileira, incentivando a publicação em inglês para aumentar o impacto global.
Giovanna Sarto é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Link da galeria de fotos – Giovanna Sarto – Relato de experiência internacional