Ao escrever em italiano, Prisca Agustoni queria construir um repertório próprio sobre a tragédia conferindo universalidade diante da emergência ambiental e ecológica no mundo (Foto: BAK / Julien Chavaillaz)

“Aquelas imagens que chegavam, evocavam um fato de proporções apocalípticas, e me fizeram pensar na insignificância e na pequenez da nossa espécie, diante das dimensões e da força (destrutiva) da natureza.” Os rompimentos das barragens em Mariana (2015) e Brumadinho (2019) levaram a escritora e professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Prisca Agustoni, a escrever o livro de poemas “Verso la ruggine”, que acaba de ganhar o Prêmio Suíço de Literatura. 

A cerimônia oficial de entrega do prêmio acontece em 19 de maio na cidade de Solothurn (ou Soletta, em italiano), na Suíça alemã, em meio ao mais importante festival literário do país, as Jornadas Literárias de Solothurn. Na ocasião, Prisca fará a leitura da obra e conversará com o público presente. 

Escrito em italiano, “Verso la ruggine” também tem uma versão em português, com o título “O gosto amargo dos metais” (7Letras, 2022), traduzido e recriado pela própria autora. O manuscrito do trabalho garantiu à Prisca o Prêmio de Poesia da Cidade de Belo Horizonte em 2021. 

Obra já foi apresentada em leituras pela Europa e receberá o prêmio em um dos principais eventos de literatura da Suíça – Foto: BAK / Julien Chavaillaz

Prisca Agustoni é natural da região suíça de Lugano, área de predominância da língua italiana (a Suíça é uma confederação com quatro regiões linguísticas nacionais – alemã, francesa, italiana e reto-românica) e desde 2003 se divide entre o país europeu e o Brasil. O Prêmio Suíço de Literatura é concedido pelo Escritório Federal de Cultura do país, aos sete livros que se destacaram no ano anterior, nas quatro línguas oficiais do país. As obras vencedoras são escolhidas por um colegiado formado por críticos, professores universitários e escritores europeus.  

Sobre o tema, a autora conta que os crimes ambientais lhe geraram um grande impacto, levando-a a um silêncio interior. Guardadas as devidas proporções, ela faz um paralelo com “O meridiano”, do poeta romeno Paul Celan (1920-1970), sobre sua tentativa de voltar a escrever poesia, após o massacre no campo de concentração de Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial. 

“Também me senti impelida a tentar escrever algo, a partir da tragédia ambiental, que estivesse ‘aquém’ da linguagem poética existente, ou melhor, me senti convidada a tentar encontrar as palavras essenciais para falar daquilo sem falar de mim (do meu impacto emocional) e sem fazer desses textos um documentário tipo ‘tomada direta da realidade’. Queria outra coisa”, afirma.  

Para isso, optou pelo italiano. Ao escrever em outra língua, a autora se viu “obrigada” a procurar um outro repertório linguístico, não atrelado ao que leu e viveu sobre a tragédia. A experiência serviu de filtro e caminho para reconstruir a “barragem emocional” que havia se rompido diante da magnitude do desastre. 

“Fui criando, ao longo dos anos, um pequeno dicionário específico da tragédia, em italiano, onde anotava palavras, imagens, expressões, aquilo que queria que entrasse – paralelamente à progressiva eliminação daquilo que sobrava e precisava ser cortado”, conta Prisca, que destaca outro motivo para a busca por um repertório linguístico diferente: o público para quem escrevia não estava emocionalmente envolvido com os fatos narrados. 

Nessa jornada, encontrou uma linguagem “óssea, escarna, essencial, quase como fosse uma síncope ou um tropeço.” A visão da destruição a fez refletir na formação do planeta ao longo das eras e em como destruição e criação se avizinham, numa perspectiva temporal maior que a humana. 

“Por isso pensei em propor uma narrativa fragmentária do fato dividida em jornadas, como as jornadas bíblicas. Essas jornadas, narradas de forma muito distante do meu ‘eu subjetivo’, como uma lente externa que tudo vê mas não julga, compondo a primeira parte do livro, são seguidas por uma sequência de vozes, de poemas cujos títulos são os nomes de alguns sobreviventes”, conta a escritora. 

Publicação foi atrasada pela pandemia 

“Verso la ruggine” ficou pronto no fim de 2019. Estava previsto publicar o livro de poemas no primeiro semestre de 2020, porém uma outra crise humanitária interrompeu o processo – com o advento da pandemia do Coronavírus, a editora italiana parou. 

Finalmente a obra foi publicada após dois anos, em maio de 2022, pela Interlinea, de Novara, cidade localizada na região do Piemonte, no norte da Itália. No mês seguinte, a versão em português, “O gosto amargo dos metais”, chegava ao mercado brasileiro. “Durante esses dois anos de pandemia, traduzi e recriei o livro em português, a partir do desenho inicial feito em italiano”, explica. 

“(…) a literatura pode sensibilizar e até antecipar certos acontecimentos que nos atropelam”

Desde a sua publicação, a obra obteve destaque na imprensa da Itália e da Suíça italiana. Resenhas foram publicadas em veículos, como os jornais Le Monde Diplomatique-Italia e Il Sole 24 Ore, além da revista Viceversa Letteratura. Na avaliação da autora, o que motivou o interesse pela obra e o recebimento do prêmio é o diálogo do texto com a “emergência ambiental e ecológica”. “(Isso é feito) a partir de uma perspectiva literária, isto é, mostrando como a literatura pode sensibilizar e até antecipar certos acontecimentos que nos atropelam. Veja que esse livro foi escrito antes da pandemia, mas certos leitores já me disseram que parceria ter sido escrito durante o período pandêmico.”

A boa acolhida por parte do público europeu também pode ser comprovada na turnê de leituras das obras vencedoras, promovida pelo Escritório Federal de Cultura, como forma de divulgar a literatura suíça internamente e fora do país. 

“O público gosta de ouvir os sons das línguas e, em geral, entende bastante bem o idioma italiano. Mas há uma fronteira evidente, a linguística, que nem sempre é possível superar. De onde a tradução se torna esse poderoso instrumento de diálogo e mediação cultural. Recebi comentários muito comovidos de pessoas presentes, e isso me deixa bastante feliz”, afirma. 

Da Suíça, com raízes em Minas Gerais

Mesmo buscando manter pés no chão e cabeça ocupada com os projetos do presente e os novos desafios, Prisca Agustoni acolhe o sentimento de felicidade com a honraria recebida por parte do governo suíço. Reconhecimento de que o meio literário costuma sentir falta. 

“Acho que foi através dele (o livro) que consegui aos poucos sentir quanto sou enraizada nesse chão doído e amado que é Minas Gerais”

“É prazeroso saber que se é lido e principalmente, que o trabalho de construção da obra  – que é tudo menos ‘de impulso’ ou ‘fruto da mera inspiração’ – foi visto e valorizado.”

Felicidade que se manifesta, também, em poder confluir seus diferentes mundos culturais e linguísticos em seu trabalho artístico –  o francês, o italiano e o brasileiro. São camadas que se sobrepõem, vivem juntas, se alternam. Ao lembrar o processo de tradução dos poemas para o português, Prisca aponta que a empreitada foi trabalhosa e difícil, porém necessária. Além de ter sido uma das que mais a alegrou até o momento. 

“Acho que foi através dele (o livro) que consegui aos poucos sentir quanto sou enraizada nesse chão doído e amado que é Minas Gerais.”