Segundo relatório da Antra, 131 pessoas trans foram assassinadas no Brasil em 2022 (Foto: Canva)

No próximo domingo, 29 de janeiro, é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A origem da data está no ano de 2004, quando foi lançada a campanha “Travesti e Respeito”, com a participação do Ministério da Saúde. Na ocasião, um grupo de ativistas lançou a ação no Congresso Nacional, em Brasília. 

Desde então, a data é um marco da luta de pessoas transgêneras e travestis, pessoas que se identificam com o gênero oposto ao designado ao nascimento. Uma luta que é por direitos, contra a violência, o preconceito e a invisibilidade no país que lidera as estatísticas de assassinatos de pessoas trans no mundo. 

De acordo com o relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 131 pessoas trans foram assassinadas no Brasil em 2022. A maioria das vítimas tem entre 18 e 29 anos e são transfemininas (travestis e mulheres trans). Nos casos em que foi possível identificar a identidade racial da vítima, a maioria era formada por mulheres trans e travestis negras (pretas e pardas). 

O dossiê traz dados do observatório Trans Murder Monitoring (TMM), organizado pelo projeto de pesquisa Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), da organização Transgender Europe (TGEU). O mapa que contabiliza os dados coletados desde 2008 mostra que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo – foram 1.741 homicídios desde então. De todos os assassinatos de pessoas trans em todo o mundo catalogados pela TGEU entre 2008 e setembro de 2022, 37,5% foram no Brasil. 

Por ocasião do Dia da Visibilidade Trans, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) abre espaço para reafirmar a existência de pessoas trans em nossa comunidade acadêmica e para os projetos de extensão voltados a essa população e seus familiares, abertos à população de Juiz de Fora e região. 

Promoção da cidadania e garantia de direitos

Marco José Duarte: “Saúde é direito, se a pessoa não tem acesso à saúde, é privação e violação de direito” (Gustavo Tempone)

Preencher uma lacuna de políticas públicas voltadas à população LGBTQI+ em Juiz de Fora foi o que motivou a criação do programa de extensão Centro de Referência de Promoção da Cidadania de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queer e Intersexos (CeR-LGBTQI+) na UFJF.

O programa teve suas atividades iniciadas em agosto de 2019 e desde março do ano seguinte o programa de extensão da UFJF trabalha com diferentes eixos. O principal deles é a promoção de apoio psicossocial e jurídico a vítimas de violência, facilitação do acesso ao processo transexualizador, além de contar com um um trabalho informativo nas redes sociais, escolas e com a realização de seminários e eventos. 

Segundo o coordenador do Centro de Referência e professor da Faculdade de Serviço Social, Marco José de Oliveira Duarte, a principal demanda diz respeito à violência. “Nós atuamos na garantia de direito, quando há uma denúncia de violência em casa ou violação de direito, acompanhamos o registro de ocorrência na delegacia. É preciso judicializar.”

Outro caso comum, segundo o coordenador, é a retificação civil, que é a mudança de nome e de gênero. “Com a entrada da criminalização da lgbtfobia na cena do Direito, nossa grande demanda é para garantir direito, respeito ao nome social, acesso ao serviço de saúde, ao processo transexualizador, à medicação, etc. Afinal, saúde é direito, se a pessoa não tem acesso à saúde, é privação e violação de direito”, reflete. 

Coordenadore do coletivo Força Trans, uma das entidades parceiras do CeR-LGBTQI+, com bolsa no programa de extensão, Sidney Aurum Monteiro, que também é estudante de Serviço Social, reitera que há um desconhecimento sobre os direitos das pessoas trans. 

“Muitas vezes as pessoas não sabem que têm direito a determinadas coisas, às vezes nem o profissional sabe que existe um direito para aquela pessoa atendida”, afirma. 

Sidney atua no acolhimento às pessoas que procuram o espaço. Depois desse primeiro contato, a pessoa é encaminhada aos parceiros da iniciativa, que funciona em conjunto com bolsistas, voluntáries e colaboradores que integram também a Faculdade de Direito e o curso de Psicologia. 

Sidney Aurum: “O problema não começa com ‘pessoas trans não conseguem entrar na faculdade’, as pessoas não estão terminando o Ensino Médio. Muitas vezes não terminam nem o Fundamental.” (Foto: Alexandre Dornelas)

“Para a formação profissional, eu acho muito importante. A faculdade, de uma forma geral, não prepara as pessoas para atender ao público LGBT. Eu vivi isso. A pessoa não saber a diferença entre nome social e nome de registro. A questão dos pronomes: que uma mulher trans precisa ser tratada no feminino”, relata Sidney, que se identifica como trans não-binárie.  

Durante a fase mais aguda da pandemia, o CeR-LGBTQI+ elaborou o projeto TranSolidariedade, em resposta à demanda de vulnerabilidade social imposta às travestis e mulheres trans trabalhadoras sexuais da cidade no período. Um grupo que ficou ainda mais vulnerável em tempos de Covid-19 e isolamento social. “Havia uma demanda grande por cesta básica, kit higiene, kit limpeza, máscaras, álcool gel. E nesse momento ainda não havia o auxílio emergencial. Demos orientação a elas para buscarem o auxílio”, conta Marco Duarte sobre o projeto vigente entre março de 2020 e agosto de 2021. 

Programa supre carência municipal existente há décadas

O CeR-LGBTQI+ foi uma das entidades que integraram o grupo de trabalho que elaborou a proposta do Plano Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da População LGBTQIA+ em Juiz de Fora. O plano foi aprovado pelo decreto municipal nº 14.997, assinado pela prefeita Margarida Salomão. O município conta, ainda, com o Conselho Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos da População LGBTQI, instituído em dezembro de 2022, pela lei nº 14.546. 

O programa acaba suprindo a uma demanda da Lei 9.791/2000, a chamada Lei Rosa, que determina a criação de um Centro de Referência do Município para a Defesa e Valorização da Auto-Estima e Capacitação Profissional do Cidadão Homossexual, bissexual e transgênero.“Agora falta um serviço municipal para atender a essa população. O que a gente demanda é cidadania”, afirma Marco Duarte. 

‘Pessoas trans estão sendo expulsas da escola’

O CeR-LGBTQI+ também atua no auxílio à entrada de pessoas trans no mercado de trabalho. Por conta das dificuldades originadas pelo preconceito e a marginalização, estudar e entrar no mercado formal de trabalho não é tarefa fácil. 

“O problema não começa com ‘pessoas trans não conseguem entrar na faculdade’, as pessoas não estão terminando o Ensino Médio. Muitas vezes não terminam nem o Fundamental. Essas pessoas estão sendo expulsas da escola antes de conseguirem seus diplomas. Só restam trabalhos informais e precarizados, em que, muitas vezes, estão sujeitas à extrema violência”, aponta Sidney Aurum Monteiro.

Essas dificuldades também são apontadas por outra fundadora do CeR-LGBTQI+, a militante de direitos humanos Dandara Felícia Silva Oliveira. Dandara é servidora técnico-administrativa da Faculdade de Medicina, a primeira TAE travesti preta da história da universidade, além de socióloga e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. 

Dandara: “A universidade tem uma das legislações mais avançadas na questão do uso do nome social, mas ainda assim, a gente vê a dificuldade de as pessoas conseguirem chegar a esse lugar. ” (Foto: Carolina de Paula)

“Há avanços, principalmente por conta da militância que tenta colocar cada vez mais as pessoas neste lugar, mas tem muito mais dificuldade para as pessoas conseguirem chegar à universidade. A escola é um lugar muito transfóbico. Nós somos poucas, a universidade tem uma das legislações mais avançadas na questão do uso do nome social, mas ainda assim, a gente vê a dificuldade de as pessoas conseguirem chegar a esse lugar. Nada acontece sem luta, o movimento social é o principal responsável pelos avanços no acesso a direitos”, afirma. 

 Além de voluntária no programa de extensão desde o início, onde atua na promoção e defesa dos direitos e cidadania da população LGBTQIA+, Dandara é coordenadora da Associação de Travestis, Transgêneres e Transexuais de Juiz de Fora (AstraJF), que tem origem na campanha TranSolidariedade, do CeR-LGBTQI+. Fundada em setembro de 2021, a AstraJF é uma instituição parceira do Centro de Referência.  

“A gente ajuda órgãos que precisam do nosso apoio para dar formação a outras pessoas, dialogamos com os instrumentos públicos da cidade a fim de que possam nos ajudar a desenvolver políticas públicas para a população LGBTQIA+”, destaca. 

O CeR-LGBTQI+ responde às demandas de pessoas que os procuram pela internet, pelo Instagram, YouTube e no blog. O e-mail é cer.lgbtqi@gmail.com. Familiares de pessoas trans também podem buscar pelo serviço. O projeto funciona presencialmente na Casa Helenira Rezende (Helenira Preta), da Faculdade de Serviço Social (antigo anexo da Casa Cultura da UFJF), onde atualmente é a Escola de Artes Pró-Música, na Avenida Barão do Rio Branco, 3372. O telefone da Casa é (32) 2102-6310. 

“Nada acontece sem luta, o movimento social é o principal responsável pelos avanços no acesso a direitos”

Dandara Felícia

O fim de semana será marcado por eventos em celebração ao Dia da Visibilidade Trans, com a organização do CeR-LGBTQI+, da AstraJF e do grupo Ballroom Kunt. No sábado, 28, a partir das 13h, haverá seminário sobre o Plano Municipal LGBTQIAP+. Os eventos se estendem durante a tarde, com exibição de filmes e debates. Já no domingo, 29, Dia da Visibilidade Trans, haverá a Marcha Trans, com concentração no Parque Halfeld, a partir das 10h. Às 12h, tem Feira LGBTQIA+ na Praça da Estação. No mesmo local acontece o evento cultural Trava Ball, com início às 14h. Saiba mais sobre a programação na página no Instagram do CeR-LGBTQI+. 

Atendimento psicológico para pessoas trans e familiares 

Outra iniciativa direcionada à população trans de Juiz de Fora e região é o projeto de extensão da UFJF Falatrans, desenvolvido pelo Departamento de Psicologia em parceria com outras instituições, como a Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) e colaboradores externos. Existente desde setembro de 2018, oferece atendimento psicológico e psicanalítico gratuitamente. 

“Enquanto a pessoa quiser e houver a necessidade, ela será atendida. São alunos de Psicologia que fazem os atendimentos. Temos estudantes e profissionais colaboradores”, afirma a professora do curso de Psicologia, Alinne Nogueira, coordenadora do Falatrans. 

Alinne: A ideia é sempre fortalecer esse espaço de escuta e de fala. (Foto: Alexandre Dornelas)

O projeto, segundo a docente, contribui para reforçar a rede de saúde mental de Juiz de Fora além de ser um espaço de escuta e fala para pessoas trans. Familiares das pessoas atendidas também podem ser acompanhados. “Há pessoas que sofrem violência social, discriminação, dificuldades no mercado de trabalho. A ideia é sempre fortalecer esse espaço de escuta e de fala. Também buscamos auxiliar no processo de transição, dando espaço para que cada um possa se descobrir nesse processo. E ter alguém com quem falar, que possa trabalhar suas questões, faz muita diferença”, acredita a coordenadora. 

O Falatrans conta com uma equipe de mais de dez estudantes do curso de Psicologia. Além dos atendimentos, os discentes passam por um “aprimoramento teórico”, empreendendo leituras e participando de debates. “Acredito que é um momento ímpar na formação deles, com a experiência clínica e o aprimoramento teórico”, afirma Alinne Nogueira. Atualmente, uma média de cinquenta pessoas são atendidas, nas formas presencial e on-line. O período de atendimento não é pré-estabelecido pela coordenação.

O Falatrans realiza seus atendimentos no Centro de Psicologia Aplicada (CPA), localizado no bloco do Instituto de Ciências Humanas. Para agendar uma sessão, é preciso entrar em contato com o CPA por telefone, deixar o nome e o contato. Posteriormente, um dos integrantes do projeto retornará a ligação, para agendar o início do atendimento. O telefone do CPA é (32) 2102-3121. 

Acolhimento a homens trans com HIV

Zuleyce: A iniciativa tem foco na realização dos exames de rastreamento de câncer de mama e câncer do colo do útero. (Foto: Alexandre Dornelas)

Existente desde 2016, o Semente é um projeto de extensão que atua no atendimento humanizado a homens transexuais, mulheres cisgênero heterossexuais, bissexuais e lésbicas que vivem com o vírus HIV. A iniciativa tem foco na realização dos exames de rastreamento de câncer de mama e câncer do colo do útero. 

Segundo a coordenadora do projeto e professora da Faculdade de Enfermagem, Zuleyce Lessa, a população atendida pelo Semente vive uma situação de “invisibilidade” quanto à atenção primária à saúde. “Principalmente os homens transexuais e as mulheres lésbicas. Porque buscam menos atendimento por medo do preconceito”, afirma. 

Profissionais e estudantes atuam junto aos pacientes, de forma acolhedora, como conta a coordenadora. “Nós aplicamos a Teoria Humanística da Enfermagem. E também com base em Paulo Freire, aplicamos um atendimento dialógico, com respeito à bagagem da pessoa”, relata Zuleyce. 

Os atendimentos são realizados no Serviço de Assistência Especializada (SAE) em HIV/Aids, localizado na Avenida dos Andradas, 523, Centro. O telefone é (32) 3690-7054. 

‘UFJF tem como princípio o respeito e a valorização da diversidade’

Na avaliação da pró-reitora de Extensão, Ana Lívia Coimbra, a universidade como parte da sociedade, que é “diversa e plural”, deve se abrir para reconhecer essa diversidade também no campo do ensino, da pesquisa e da extensão. 

“A UFJF tem como princípio importante o respeito e a valorização da diversidade. No campo da extensão, esse atendimento à comunidade LGBTQIA+, é fundamental porque é um espaço em que nossos estudantes colocam o conhecimento produzido pela universidade para o atendimento de demandas e reconhecimento de direitos. Isso oxigena a universidade, traz um espaço de solidariedade, respeito às diferenças e construção de políticas públicas”, destaca. 

Para a pró-reitora, os projetos também são importantes em nível acadêmico, por terem caráter interdisciplinar – articulam diversas áreas do conhecimento para atender às demandas da comunidade. 

“O reconhecimento dessa diversidade tem que se materializar em políticas públicas que atendam às pessoas que fazem parte dessa comunidade. Então eu penso que esses projetos cumprem um duplo eixo: atendimento à demanda de uma comunidade que precisa ser respeitada e, ao mesmo tempo, articula no nível da formação dos nossos estudantes e na formulação de políticas públicas para atender a esses segmentos”, finaliza.