“Temporal deixa rastro de destruição em Muriaé”; “Ponto de ônibus é arrancado durante temporal em Juiz de Fora”; “Chuvas em Petrópolis já mataram 233 pessoas em 2022”. As três manchetes são alarmantes e se referem a acontecimentos recentes nos últimos meses em cidades da região Sudeste. As tragédias causadas por desastres ambientais não param por aí, e têm se tornado cada vez mais frequentes nos noticiários da grande mídia e nas redes sociais.
O sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU), lançado em 2022, alerta para impactos irreversíveis causados pelo aquecimento global. Para que se possa manter o alcance limite de 1,5ºC estabelecido pelo Acordo de Paris, o mundo deve atingir o pico de emissões de gases do efeito estufa (GEE) nos próximos três anos. Isso porque a cada fração de grau no aquecimento global, os efeitos das mudanças climáticas se tornam mais intensos, de acordo com 278 cientistas de 65 países que assinam o documento.
Em função desse contexto em que as mudanças climáticas tendem a intensificar a frequência e os perigos provocados pelos eventos extremos, as cidades precisam estar preparadas para lidar com essas ocorrências, de modo a minimizar consequências desastrosas. A Iniciativa Construindo Cidades Resilientes (MCR 2030, na sigla em inglês), do escritório das Nações Unidas para a Redução de Desastres (UNDRR, na sigla em inglês) busca tornar as cidades mais seguras, prevenindo riscos e promovendo inovação e investimentos.
Parceira da Iniciativa, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) tem se destacado dentre as instituições que colaboram com a estratégia global de tornar as cidades mais resilientes. Para isso foi criado o “Programa de análise da resiliência a desastres no contexto municipal”, coordenado pelo professor Jordan Henrique de Souza, da Faculdade de Engenharia, para selecionar dois municípios conforme previsto no edital de chamamento público, que também foi divulgado pela ONU no site da MCR 2030.
O objetivo principal é capacitar servidores municipais para desenvolverem o Plano Local de Resiliência (PLR) a partir de uma mentoria realizada por professores da UFJF com o apoio da UNDRR, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais. Ao término do programa, os municípios participantes receberão um relatório técnico com as análises da equipe de mentoria referente ao PLR. As inscrições para as prefeituras interessadas em participar do programa estão abertas até 16 de dezembro de 2022.
O programa compreende uma etapa de capacitação de servidores públicos dos dois municípios selecionados por meio de um curso de especialização lato sensu. Para a coordenadora do curso, a professora da Faculdade de Engenharia, Gislaine dos Santos, é a primeira vez que uma universidade propõe uma pós-graduação exclusivamente para tratar das Cidades Resilientes a Desastres, com o apoio da UNDRR. A especialização foi criada em decorrência do sucesso de outros três cursos gratuitos de extensão, no formato online, realizados em 2021 e 2022, totalizando 428 concluintes, sendo 85% deles atuantes no poder público.
Além dessa oferta, a UFJF também desenvolve projetos de extensão voltados à melhoria da capacidade organizacional dos governos locais, oportunizando o acesso a ferramentas, tecnologias e metodologias para a gestão de riscos. O objetivo é propiciar que as cidades estejam aptas para enfrentar os eventos de origem natural, não apenas lidando com as consequências, mas evitando prejuízos maiores: “Uma cidade boa para se viver não é isenta dos riscos, mas aquela onde tanto o poder público quanto a população buscam se preparar para resistir a acontecimentos adversos. Essa forma de agir e pensar é chamada pela ONU de resiliência”, destaca Gislaine.
Para Jordan Souza, isso mostra que a Universidade está atenta para os problemas da sociedade, buscando formas de melhorar as condições de vida da população, especialmente das mais vulneráveis socialmente. “Em muitas cidades brasileiras falta o conhecimento da Engenharia na ponta e o desafio é contribuir com propostas e soluções a partir de nossa visão acadêmica e científica. Ao criar o Programa com uma pós-graduação em cidades resilientes, gerando um produto que é o Plano Local de Resiliência, a UFJF abre portas para uma inovação na metodologia de análise da resiliência a desastres no contexto municipal. Este aspecto de inovação tem sido amplamente apoiado pelo Centro Regional de Inovação e Transferência de Tecnologia (Critt), por meio do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da UFJF”, reflete.
Resiliência como um processo
Para definir uma cidade resiliente é preciso fazer uma análise complexa que considera diversos parâmetros, sendo que o chefe do executivo precisa estar comprometido a partir de uma autodeclaração e autoavaliação da capacidade resiliente do município para superar os desafios e cumprir os requisitos definidos. A abordagem programática da MCR 2030 é construída em torno de um roteiro que orienta as cidades sobre como melhorar a resiliência ao longo do tempo. São três estágios principais: A (Indução e orientação), B (Evolução) e C (Implementação). “Quanto maior o estágio, maior a capacidade do município de não sofrer tão intensamente com os desastres, com redução de mortes e perdas econômicas”, comenta.
É preciso analisar com cautela o posicionamento das cidades nessas etapas, na opinião de Souza, sobretudo porque o processo de resiliência precisa de amadurecimento institucional. “Há municípios que tiveram contato com a iniciativa muito recentemente e já estão se autodeclarando no estágio B e C. É preciso pontuar que se leva um tempo para que a população perceba um movimento e haja de fato uma preparação para esses eventos adversos. Algumas cidades já entram em estado de emergência ou até mesmo de calamidade pública com uma quantidade de chuva não tão atípica para os últimos anos.”
Um dos principais gargalos, para o especialista, está na questão de financiamento, inclusive internacional, sendo esse um dos tópicos a ser abordado na especialização lato sensu ofertada pela UFJF. “Não podemos esquecer que os códigos de obras, na grande maioria das cidades, se atentam a aspectos urbanísticos e não preveem restrições de ocupação nas áreas sabidamente de riscos”, acrescenta.
Com relação ao mapeamento de áreas de risco, o pesquisador explica que houve uma evolução metodológica ao longo dos anos. No início dos anos 2000, havia uma metodologia de setorização idealizada pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas. Posteriormente, foi desenvolvido um modelo mais sofisticado, conhecido como metodologia GIDES baseada em parâmetros topográficos, o que propiciou melhoria nessa definição e delimitação de área crítica.
Fatores como inclinação do terreno, tipo de solo, característica construtiva das edificações, drenagem e inundação são utilizados como parâmetro para que se possa fazer a análise desses locais mais vulneráveis a eventos ambientais de grande impacto. Além da delimitação de área, o detalhamento do aspecto topográfico permite ainda fazer simulações relacionando com outros riscos aos quais o município está sujeito, tais como a dengue ou atividades com produtos químicos e substâncias nocivas ao meio ambiente. “É preciso ter um olhar mais holístico nesse mapeamento, levando em conta as várias dimensões de perigo de cada cidade”, observa o pesquisador.
Múltiplas abordagens
Em função da complexidade e das demandas diversas, o programa da UFJF conta com o envolvimento de pesquisadores de diferentes áreas. Segundo o professor e geógrafo Christian Ricardo Ribeiro, do Departamento de Ciências Humanas do Colégio de Aplicação João XXIII, as análises de risco hidrológico devem levar em conta não apenas os limites político-administrativos, mas também a bacia hidrográfica. A Lei Federal n.o 9.433/1997 definiu a bacia hidrográfica como a unidade territorial de referência para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, que tem como um de seus objetivos a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais.
Para o docente, a tendência geral de ocupação urbana das bacias se dá do exutório para as cabeceiras, ou seja, das partes mais baixas para as mais altas, e existe uma relação direta entre as alterações provocadas pela urbanização no ciclo hidrológico e a ocorrência de inundações. Por isso mesmo, é fundamental que as medidas de controle das inundações, sobretudo as medidas não estruturais relacionadas à regulamentação do uso e ocupação do solo urbano, levem em conta toda a extensão da bacia hidrográfica.
Também integra a equipe a professora Rayla Amaral Lemos, do Departamento de Fundamentos, Métodos e Recursos em Fisioterapia, da Faculdade de Fisioterapia. Em sua perspectiva, é impossível pensar em cidades resilientes fora do contexto interdisciplinar e multiprofissional. “A ocorrência de desastres implica em impactos de curto, médio e longo prazo no que tange à vida e saúde das populações em nível individual e coletivo. Se num primeiro momento as preocupações são focadas no socorro às vítimas, em estágios subsequentes há que se pensar na manutenção dos serviços de saúde necessários a todos os usuários da rede, que podem ser afetados pelo desastre e também nas consequências de longo prazo sobre a saúde coletiva daqueles que viveram o evento”, ressalta.
Nesse sentido, é preciso um diagnóstico ampliado da resiliência das cidades que possibilite mapear e caracterizar todos os equipamentos e serviços de saúde e sua capacidade de resposta, governança e articulação em situação de desastres. A partir disto, deve-se construir um plano específico para o setor de saúde capaz de prever as necessidades e potencial resolutivo do município aos eventos adversos. “Essa é uma tarefa minuciosa e que envolve a articulação com vários setores e equipamentos diferentes da rede de Saúde, que incluem desde serviços de urgência e emergência, como de vigilância em saúde, os assistenciais, o poder público, instituições de ensino, dentre outros”, sintetiza.
Para se ter uma dimensão da série de demandas que podem surgir para o setor em caso de desastre, imagine a ocorrência de rompimento de uma barragem ou grande inundação. “De imediato, é preciso pensar no socorro às vítimas, em especial aquelas em situação de vulnerabilidade como as pessoas com deficiências ou restrição de mobilidade, idosos, crianças etc. Em um segundo momento, tem-se que garantir o acesso ao sistema e serviços de saúde de doentes crônicos e usuários, bem como o abastecimento de insumos e medicamentos. Também é necessário o monitoramento e a vigilância para verificar, por exemplo, contaminação de mananciais e aparecimento de outras doenças ou consequências diretas ao desastre. Há que se pensar nas estratégias educativas e de controle social, além das sequelas e efeitos de longo prazo, como adoecimento mental e em toda a estruturação da rede em vários âmbitos (financeiro, recursos humanos) para amparar cada uma dessas necessidades.”
Tecnologia em prol da proteção e Defesa Civil
Um dos projetos de extensão protagonizados pela UFJF resultou no Sistema Álea, um aplicativo para mapeamento de áreas de riscos. Desenvolvido em parceria com o Departamento de Ciência da Computação, o software está em estágio de constante aperfeiçoamento. O trabalho foi coordenado pelo professor Marcelo Caniato, tendo feito inicialmente o licenciamento gratuito para o Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais, a partir de uma base de mapas de 144 municípios na área de abrangência do 3º Comando Operacional de Bombeiros (COB).
O aplicativo Álea foi pensado na possibilidade de uso em celulares e tablets em campo, com todas as informações armazenadas em um servidor web, contribuindo assim com a governança das informações de áreas de riscos. “Além dos riscos geotécnicos e hidrológicos, outras tipologias podem ser mapeadas no aplicativo”, informa Caniato. Em paralelo, foi desenvolvida uma capacitação de uso do aplicativo e dos principais conceitos relacionados ao mapeamento.
O Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais fez um pedido para que fosse feita a ampliação da base de mapas para todo o estado, mas ainda está sendo realizado esse processamento de base cartográfica. Conforme afirma Jordan Souza, a principal dificuldade no momento é relacionada à questão tecnológica, por conta do grande volume de dados a serem processados, da ordem de terabytes. Em 2021, ainda com as restrições da pandemia, foi feita uma validação do aplicativo para três municípios: Muriaé, Conselheiro Lafaiete e Ubá. Os resultados estão compilados em relatório.
Pesquisa está alinhada aos ODS da ONU
As ações de pesquisa da UFJF estão alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). A iniciativa citada nesta matéria se alinha aos ODS 1 (Erradicação da pobreza), ODS 3 (Saúde e bem-estar), ODS 9 (Indústria, inovação e infraestrutura), ODS 11 (Cidades e comunidades sustentáveis) e ODS 15 (Vida terrestre).
Confira a lista completa no site da ONU.
Outras informações
Programa de análise da resiliência a desastres no contexto municipal: ufjf.br/resiliencia/
Aplicativo Álea: ufjf.br/sistemaalea/
Iniciativa Construindo Cidades Resilientes: mcr2030.undrr.org/