Samuel Alves Coutinho da Costa tinha apenas 10 anos de idade quando o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.711, em 29 de agosto de 2012. Ele estudava em uma escola estadual na cidade de Valença, no estado do Rio de Janeiro, e cresceu se inspirando na mãe, técnica em enfermagem. Desde muito novo, sabia que a área da saúde seria sua escolha na hora de pensar em uma profissão. Já no ensino fundamental, um professor de Biologia o incentivou a correr atrás do sonho de lidar com pessoas, ajudar o próximo e se tornar médico.

Atualmente cursando o terceiro período da Faculdade de Medicina, ele entrou na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em 2020 através do Programa de Ingresso Seletivo Misto (Pism), utilizando o grupo A das cotas. As vagas deste grupo são destinadas a candidatos pretos, pardos ou indígenas, com renda bruta mensal familiar inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado todo o ensino médio em colégios públicos. 

Samuel representa a mudança do perfil dos estudantes que compõem as universidades. A UFJF deu início a esse processo antes da Lei de Cotas, com a implantação de seu próprio sistema ainda em 2006. Mas foi a determinação federal que tornou nítida a transformação dentro das salas de aula do ensino superior. Em 2006, 18,6% deram entrada como cotistas, ao passo que já no primeiro ano da Lei, o percentual saltou para 33,6%. Hoje, eles são mais de 47%.

Encerrando a série especial de reportagens que celebram essas conquistas durante o décimo aniversário da Lei, é preciso compreender os desafios para o futuro e como anda a tramitação que corre no Congresso Nacional para a avaliação da política. “Historicamente, as universidades não foram feitas para nós. É muito incrível que, mesmo longe do ideal, existam políticas que possibilitam que o preto, o pobre, a pessoa com deficiência, todos estes grupos que foram e são excluídos possam ocupar esses espaços”, diz Samuel que foi atendido, pela primeira vez, por um médico negro aos 20 anos de idade.

Como está o andamento da revisão no Congresso

Relator do Projeto de Lei da Câmara (PLC) sobre as cotas em 2008, o senador pelo estado do Rio Grande do Sul, Paulo Paim (PT) acredita no sucesso da política. Ele também foi responsável pela apresentação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288), no ano de 2010, e precisou defender o assunto no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012. 

“Foi uma discussão dura, mas saímos vitoriosos e garantimos a constitucionalidade da política de cotas, o que tornou mais fácil tramitar a proposta no Congresso Nacional.” Ele lembra que foi preciso dialogar com os movimentos sociais, em especial, coletivos e grupos negros. Também foi preciso  travar conversas com lideranças parlamentares que eram contrárias à matéria, o que continua sendo fundamental para a continuidade do sistema. 

O senador ressalta que, entre 2010 e 2019, o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%. Porém, do total de matriculados em todo o país, 38,15% são negros, um índice baixo para a população brasileira, que é formada, de acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por 56% de pessoas pretas e pardas.

A Lei de Cotas é, portanto, uma criança, mas já mostrou a mudança na vida de milhares de brasileiros, pois ela oferece oportunidade, fortalece a esperança e propicia mobilidade – Paulo Paim

 “A Lei de Cotas é, portanto, uma criança, mas já mostrou a mudança na vida de milhares de brasileiros, pois ela oferece oportunidade, fortalece a esperança e propicia mobilidade, não apenas para os jovens e adultos que estão cursando as universidades e institutos federais, mas também para uma nação que clama por direitos e igualdade”, declara.

Segundo Paim, o Senado está profundamente envolvido na temática racial. “Já realizamos diversas audiências públicas sobre a avaliação da Lei de Cotas. Apresentei o projeto de Lei 4.656, de 2020, para aprimorar a legislação. Contudo, a revisão da Lei, que não perde a sua vigência, compete ao Ministério da Educação (MEC), à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e à Fundação Nacional do Índio (Funai)”, explica. 

Ele acredita que a avaliação não será votada este ano, por causa do conturbado cenário político em ano de eleições. A pauta, que deve ser discutida de maneira cuidadosa, provavelmente será apreciada somente em 2023.

“Precisamos de cotas para que o Brasil deixe de ser o nono país mais desigual e racista do mundo. Mas, enquanto isso não se torna realidade, o Congresso Nacional, o Poder Executivo, o Poder Judiciário e toda a sociedade, inclusive as instituições privadas, precisam seguir rumo à inclusão e oportunidade para todas e todos no Brasil.” 

O desafio da permanência dos cotistas

Segundo Paulo Paim, levantamento realizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) identificou 67 projetos em tramitação no Congresso, dos quais 31 afetam a reserva de vagas para negros, 20 propõem a ampliação das reservas de vagas e 16 que tratam de outros aspectos como programas de assistência estudantil. 

A assistência é tema inerente às cotas e requer total atenção diante da situação econômica do país e dos limites estabelecidos pelo teto de gastos. “As cotas democratizam o acesso, mas permanecer na universidade é um constante desafio”, declara a pró-reitora de Assistência Estudantil da UFJF, Cristina Bezerra. Ela explica que tais políticas não são pensadas somente para estudantes cotistas, mas que, quase sempre, são esses alunos e alunas que procuram a assistência estudantil por conta de questões raciais e socioeconômicas. “A Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (Proae) tenta garantir os apoios pedagógicos,  psicológicos e socioeconômicos, além de oferecer bolsas e auxílios para que esses cotistas vivenciam com tranquilidade o cotidiano universitário.”

A principal fonte de recursos para garantir essa permanência de alunos vem do Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), do Governo Federal, mas não supre mais a demanda dos acadêmicos. Os recursos chancelados via plano eram de R$20,6 milhões em 2016  e, agora, são de R$16,4 milhões, segundo a Lei Orçamentária (LOA) de 2022 – uma redução de 20%. Em 2021, foram repassados apenas R$13,9 milhões. A UFJF já vivenciou um cenário no qual praticamente a totalidade dos estudantes que se enquadravam nos critérios de vulnerabilidade socioeconômica eram atendidos, o que não acontece mais. Além do número de alunos que precisam do apoio financeiro ter aumentado, os recursos diminuíram e, por isso, é preciso redistribuir esse montante de forma a garantir o maior número de beneficiários.

Com as bolsas acadêmicas acontece o mesmo. Não é mais possível oferecer o mesmo número de bolsas para as centenas de projetos acadêmicos, extensionistas, de treinamento profissional e pesquisa mantidos pela UFJF. Tanto o valor como o volume delas diminuíram em razão dos cortes. A parcela do orçamento empenhada para esse fim saiu de R$16,7 milhões em 2016 para R$12,5 milhões em 2022, o que representa menos 25%.

Sem as bolsas e vendo a necessidade de ajudar no rendimento familiar, muitos alunos trancam ou abandonam seus cursos. A pró-reitoria de Graduação da UFJF já tem feito um levantamento sobre evasão nos últimos anos e a reunião desses dados estará disponível no Censo da Educação Superior em 2023. Segundo o pró-reitor da pasta, Cassiano Amorim, a perspectiva é preocupante, mas somente com uma pesquisa mais ampla os prejuízos causados na educação poderão ser melhor avaliados. Na conta do abandono das vagas, provavelmente entrarão os cortes no orçamento das universidades, a situação econômica do país que impede jovens de se dedicarem exclusivamente aos estudos e a pandemia de Covid-19.  

Já o reitor da UFJF, Marcus David, destaca que é muito grave a situação das universidades federais. “Pode-se afirmar que, entre as consequências mais nefastas da atual política orçamentária, sem dúvida nenhuma as restrições de recurso para as políticas de assistência estudantil são as mais graves no atual momento. Tal arroxo compromete a política que garante a permanência dos nossos estudantes mais vulneráveis e a eficácia da polícia de cotas, que tem um papel inestimável na superação das graves desigualdades do nosso país”.

Mudança de perfil na graduação influenciou cotas nos programas de pós

A mudança de perfil dos discentes possibilitada pela política de cotas trouxe também a necessidade de revisão do ingresso nos cursos de pós-graduação como mais uma medida para garantir a permanência na universidade. “Percebemos que os alunos cotistas às vezes terminavam a graduação, não conseguiam emprego imediatamente na sua área e encontravam dificuldades de ingressar na pós”, comenta a pró-reitora de Assistência Estudantil Cristina Bezerra.

Na UFJF, a decisão veio em 2021. Por meio da Resolução nº 67, o Conselho Superior instituiu a reserva de 50% das vagas nos processos seletivos de mestrado e doutorado para negros, povos e comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ciganos, etc), pessoas trans e travestis, pessoas com deficiência e refugiados ou migrantes humanitários.

Para a pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa da UFJF, Mônica Ribeiro de Oliveira, a institucionalização da medida representa um grande avanço. “A pós-graduação sempre foi um setor dedicado às elites por exigir dedicação integral. Desta forma, só aqueles candidatos com condições socioeconômicas estáveis podiam se submeter com sucesso nos processos seletivos. Essa realidade tem sido transformada pela mudança no perfil dos alunos da universidade pública, muito mais diversificada e plural.”

O sistema de cotas possibilita que diferentes temas cheguem aos cursos de especialização, mestrado e doutorado. Temas que, se não fossem trazidos por esses alunos cotistas, jamais chegariam aqui – Cristina Bezerra

Assim, ao seguir na carreira como pesquisadores, esse grupo também promove outra importante mudança na academia: “o sistema de cotas possibilita que diferentes temas cheguem aos cursos de especialização, mestrado e doutorado. Temas que, se não fossem trazidos por esses alunos cotistas, jamais chegariam aqui. As cotas interessam aos estudantes, mas os cotistas também interessam à Universidade, porque estudantes negros, indígenas, com deficiência, trans e travestis trazem determinadas discussões que antes não eram consideradas importantes no meio acadêmico”, complementa a pró-reitora Cristina Bezerra.

O mestrando Júlio Mota, que ingressou pelas cotas para pessoas trans no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, confirma a afirmação. “No Brasil, estima-se que 70% das pessoas trans não completaram o ensino médio e que apenas 0,02% estão nas universidades. Neste sentido, as cotas desempenham a função de inserir e garantir a continuidade de trans e travestis ocuparem este espaço. Além disso, possibilitam a construção do pensamento científico por essas pessoas, que, historicamente, sofrem um processo de apagamento de suas identidades.”

A resolução da UFJF possibilita os programas a implementarem a reserva de vagas de maneira imediata, mas gradativa em relação ao percentual. Alguns já destinam metade das vagas às cotas, outros ainda estão iniciando esse processo com percentuais menores.

Democratização
Marcus David reitera o crescimento de percentual de cotistas na UFJF de 2006 para 2022. Números citados no início desta matéria que revelam um salto de mais de 150% na presença de estudantes de escolas públicas, baixa renda, negros e indígenas e com deficiência na Universidade. Presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) durante o último ano, o reitor da UFJF destaca a importância da defesa integral por parte das universidades federais da manutenção das cotas.

“Temos o entendimento de que, a partir desta política, as instituições federais, ao permitirem a democratização do acesso desses estudantes, contribuíram de forma inestimável para o processo de desenvolvimento social do nosso país, superando injustiças histórias na nossa sociedade”, afirma David.

Para o reitor, é preciso avaliar os dados que refletem o sucesso das cotas. Seja na graduação ou nos mais recentes processos de inclusão nos programas de pós. “Sabemos que a legislação previa uma avaliação após os 10 anos da Lei. Esta política cumpriu seu papel de garantir o ingresso de uma grande parcela da população que, anteriormente, não tinha acesso ao ensino superior de qualidade”, finaliza.

Leia o Especial 10 anos da Lei de Cotas