Escravizados, excluídos das escolas, impedidos de votar. A reparação por esses e muitos outros erros ou crimes históricos cometidos contra a população negra começaram a ser reparados há pouco tempo. A Lei de Cotas é uma dessas políticas que, há apenas dez anos, foi implementada para corrigir as discrepâncias no ingresso no ensino superior. Já a Lei 12.990, que determina reserva de 20% de vagas nos concursos públicos para negros é ainda mais recente, de 2014.

A revisão dessas políticas está prevista uma década após suas publicações, mas pesquisadores defendem que este é um período muito curto de análise. “A distância dos salários ainda é racializada, causada pela escravidão, que estruturou as funções sociais de acordo com a cor da pele. Os trabalhos bem remunerados são ocupados por pessoas brancas e aqueles de baixa remuneração que evocam menor formação educacional, pelos não brancos”, argumenta o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) Cléber Santos Vieira. Em junho, ele esteve na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ministrando curso sobre “Ações Afirmativas e Heteroidentificação”.

Histórico reforça a exclusão

Vieira destacou o histórico de exclusão do povo negro brasileiro pela legislação desde a  Constituição Política do Império em 1824, pela qual só poderiam se tornar eleitores aqueles que tivessem renda mínima de 200 mil réis e só poderiam ser candidatos a deputados aqueles que tivessem mais de 400 mil réis de renda líquida. Já em 1854, o decreto conhecido como Reforma Couto Ferraz propôs mudanças no ensino primário e secundário, mais uma vez excluindo das escolas os escravos, além dos que tivessem doenças contagiosas e os não vacinados. E, em 1881, pouco antes da abolição, a Lei Saraiva decidia que só estariam aptos a serem eleitores aqueles que soubessem ler e escrever. 

A maioria da população brasileira era agrária e de fato não sabia ler ou escrever. Em 1872, o primeiro censo brasileiro mostrava que, para a população de cinco anos ou mais, a taxa de analfabetismo marcava 82,3%. Estima-se que, para os indivíduos com mais de 10 anos, a porcentagem era de 78% de analfabetos. Dessa forma, a exigência de saber ler e escrever para concluir o direito ao voto impedia o alargamento da participação popular. O número de eleitores, com a Lei Saraiva, despenca de mais de um milhão de votantes para cerca de 145 mil.

“Após a abolição, o que fazer com o negro e a negra libertos? Eles estavam conquistando espaço como cidadãos. Porém, o Estado interdita essa participação, uma vez que a condição era ser letrado”, questiona Vieira, lembrando ainda que o direito ao voto só seria concedido à população analfabeta, formada em grande parte pela população que havia sido escravizada, quando foi promulgada a Emenda Constitucional nº 25 à Constituição de 1967 em 1985, mais de 100 anos depois da Lei Saraiva. 

A reparação legal nasce a partir do Projeto de Lei (PL) 1.332, de 1983, proposto por Abdias Nascimento, importante ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras e então deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro. Segundo a Constituição de 1967, em vigor na época, todos são iguais perante a lei e, por isso, para Abdias Nascimento, haveria a necessidade de implementar ações sob o princípio da isonomia social do negro em relação aos demais representantes étnicos da população.

“Estamos falando de um Projeto de Lei de 40 anos atrás, que já apregoava isso. De lá pra cá, passamos pela Assembleia Constituinte de 1988 e por diferentes governos e o que temos hoje é um processo que, com muito esforço, instituiu as cotas”, reforça Vieira.

Assim surge, na agenda da comunidade negra, a luta por Políticas de Ações Afirmativas. A partir deste entendimento, é proposta a implementação do sistema de cotas, projeto pensado e viabilizado pelo movimento negro. “O direito social é uma agenda que surge no movimento negro, primeiro como uma denúncia, depois como uma reivindicação por políticas públicas, com objetivo de combater as desigualdades sociais e raciais”, declarou o professor.

Quem corrobora com a fala de Vieira é o diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira. Ele destaca que as políticas de Ações Afirmativas, especificamente as cotas, é uma luta do movimento social negro. “Essas políticas só começaram a ser implementadas no Brasil após a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Durban, na África do Sul, em 2001. O movimento negro teve participação importantíssima nas pré-conferências organizadas aqui no Brasil, assim como na Conferência das Américas, levando para os relatórios dessas respectivas convenções várias reivindicações de reparações, entre elas as cotas para negros nas universidades. No entanto, o racismo que ainda está presente na estrutura de nossa sociedade fez com que o Estado brasileiro aprovasse a Lei 12.711, somente 11 anos depois de Durban e 124 anos da abolição”.

Reflexos do sistema de cotas no serviço público

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do segundo trimestre de 2021, dos 30,2 milhões de brasileiros que recebem até um salário mínimo por mês, quase 20 milhões são pessoas negras. Hoje, 43,1% dos negros ocupados recebem até R$ 1.100,00. Já entre as pessoas brancas, apenas 24,1% recebem até um salário mínimo. Tais dados reforçam informações preocupantes sobre a remuneração da população negra.

Nesse cenário de grandes desigualdades, a Lei 12.990 constitui um marco. Após sete anos de vigência, seus dispositivos já orientaram inúmeros processos seletivos em órgãos como a Polícia Federal, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a Fiocruz e as universidades públicas. O documento do Ipea ainda revela que houve um incremento significativo na quantidade de pessoas negras que ingressaram no serviço público. Em 2010, o percentual de negros ingressantes era de 29%, enquanto em 2020 esse índice subiu para 43%.

No ano da medição, no entanto, ainda era possível ver clara diferença entre os números de brancos e negros no serviço púbico. No total, 57% eram brancos e 35%, negros. Um dos pontos destacados pelo diagnóstico final do documento é que o percentual de negros e negras no setor público tem crescido gradualmente, mas que os níveis de segregação e diferenças salariais tiveram pequenas melhoras entre 2012 e 2019. Homens e mulheres brancos seguem em ocupações com maior remuneração. Por isso, as Ações Afirmativas para pessoas negras no setor público vêm se ampliando.

Professores da UFJF comentam representatividade nas universidades

Professora do curso de História do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UFJF desde 2013, Fernanda Thomaz conta que, em seu departamento, há um total de 26 docentes, sendo somente duas negras. Fernanda lembra de uma pesquisa realizada no ano de 2016 pela Diaaf, quando foi levantado que, em um universo de cerca de 1.500 docentes da UFJF, apenas 18 eram negros. Essa discrepância é confirmada por dados do Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) do Ministério da Educação (MEC). O levantamento, de 2019, revelava que, de 383.683 docentes de instituições públicas e privadas de ensino superior, apenas 5.154 se declararam negros, o que representa o percentual de 1,34%.

“A discussão sobre as cotas no serviço público ainda é recente. O que vemos, na realidade, é a concentração da população negra no serviço terceirizado, em cargos como segurança e serviços gerais. E essas pessoas nunca estão incluídas nas discussões em torno da melhoria das condições de trabalho. Existe um crivo racial em torno dos cargos ocupados, que são evidenciados por menores salários, menor segurança de trabalho. Por isso, acredito ser necessário pensar em todos e todas que trabalham na Universidade, independente de serem servidores concursados”, reflete a professora.

Fernanda acredita que tanto as cotas para ingresso nos cursos de graduação quanto para os concursos públicos fazem parte de um processo a longo prazo, que ainda não se completou. “O objetivo principal das cotas é a reparação, que não deve ser encarado como algo individual, mas sim coletivo. Existe uma desigualdade histórica, que cria diferenças estruturais sociorraciais. Por isso, considero a reparação como algo processual. As cotas são importantes, sim, como medidas a médio prazo, não como finalidade. O ideal, na verdade, é que as pessoas não precisem das cotas, mas que tenham acesso a uma educação de qualidade e a condições de trabalho mais equânimes”.

Para o professor do Departamento de Matemática do Instituto de Ciências Exatas (ICE) da UFJF, Willian Cruz, a Lei 12.990 é mais uma forma de criar nos órgãos públicos um sistema de equidade social, buscando superar as marcas do racismo estruturado nas instituições. “Em um país onde a escravidão durou 388 anos e onde não foram dadas as devidas condições de vida social, econômica e até mesmo humana para os negros ditos libertos, valorizar tais leis se torna uma obrigação de todos nós que pensamos em uma sociedade efetivamente justa, antirracista, humana e mais ainda, com uma efetiva ação para a promoção da igualdade racial”, ressalta Cruz, que vem desenvolvendo uma pesquisa que tem por objetivo conhecer a comunidade negra no âmbito da UFJF. 

Segundo o professor, já é possível identificar setores da Universidade que não têm servidores negros e negras. “Temos um número que, em média, não ultrapassa 25% da participação de negros e negras nos ambientes funcionais, o que é um dado a ser revisto, visto que fazemos parte de uma sociedade que, segundo dados do IBGE, conta com mais de 50% de sua população identificada enquanto negra”, finaliza. 

Confira as matérias já publicadas na série sobre os 10 anos da Lei de Cotas: 

Cotistas são 47% na UFJF; percentual de negros triplica em dez anos

“Cota não é esmola, é política de inclusão e equidade”