Estocar medicamentos em casa é um hábito cultural do brasileiro. É comum encontrar, no fundo de um armário, uma caixa repleta de embalagens de anti-inflamatórios, analgésicos, relaxantes musculares e descongestionantes nasais. Por mais que a automedicação por si só possa ser nociva ao nosso organismo, associado a ela surge outro problema: o descarte indevido de medicamentos vencidos. 

Segundo dados do Conselho Federal de Farmácia, o Brasil está entre os dez países que mais consomem medicamentos no mundo. Por volta de 10 mil toneladas de resíduos desse gênero são geradas por ano pela população, e podem causar sérios danos ao ambiente se não forem manejados corretamente. “Os rejeitos químicos em rios e afluentes podem exercer influência no desenvolvimento bacteriano e fúngico, contaminando animais e consequentemente os seres humanos”, é o que explica Maurílio Cazarim, pesquisador e professor da faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Essas substâncias, caso não sejam devidamente tratadas, podem até mesmo gerar efeitos terapêuticos ao indivíduo que consumir a água contaminada. 

Logística reversa

A cadeia produtiva daquilo que fazemos uso no cotidiano varia de acordo com suas características, mas os extremos são os mesmos: saem da produção e chegam ao consumo. Entretanto, o que acontece após um produto ser descartado não configura como uma preocupação para boa parcela da sociedade. É nesse ponto que entra em ação a logística reversa, que visa analisar e desenvolver o melhor percurso de um rejeito desde o seu descarte até seu destino final, seja ele a reciclagem, o tratamento ou despojamento. 

No caso dos produtos farmacêuticos que podem causar impactos nocivos à natureza, o descarte adequado passa pela separação em categorias como sprays aerossóis, sólidos, semissólidos e outros produtos. Cabe ao estabelecimento que comercializa estes medicamentos disponibilizar à população recursos para que o processo seja feito de maneira segura, como mobílias de segregação para cada tipo de fármaco e sacolas que diferenciem os materiais biológicos. No Plano de Gerenciamento de Resíduos de Saúde das farmácias é preciso constar esse planejamento. A Farmácia Universitária da UFJF é um ponto de coleta desses rejeitos; lá, os materiais coletados são descartados de maneira segura e adequada pela Coordenação de Sustentabilidade da Universidade. 

Regulamentação

O Decreto Federal nº 10.388 de 5 de junho de 2020 normatiza a logística reversa de medicamentos domiciliares, vencidos ou em desuso. Este dispositivo acrescentado à Política Nacional de Resíduos Sólidos visa contribuir para a destinação ambientalmente adequada dos resíduos farmacêuticos. Em Juiz de Fora, a lei municipal n.º 13.442 de 2016 obriga farmácias, drogarias e farmácias de manipulação a instalarem pontos de coleta, em local de fácil visualização, para recolhimento de medicamentos impróprios para o consumo ou com data de validade vencida. O descumprimento da legislação caracteriza infração sanitária grave, implicando, em última instância, na cassação do Alvará de Funcionamento do estabelecimento. 

Boas práticas

Além do descarte correto, o uso racional e apropriado dos medicamentos é de extrema importância para o tema. Cazarim explica que cabe ao farmacêutico orientar o paciente quanto à melhor maneira de consumir determinada substância, ou seja, na dose e no tempo de utilização corretos. “Cada caso é um caso: há medicamentos que são indicados para um paciente e não para outro, mesmo que ambos possuam a mesma doença”, ressaltou. Essas ações, aliadas à logística reversa e à educação em saúde dos serviços farmacêuticos oferecidos à comunidade, contemplam as boas ações referentes ao manejo adequado de rejeitos farmacêuticos.

Importância da ciência

Cazarim é autor de um dos projetos aprovados pela Chamada Universal 01/2021 da Fapemig, sob o tema Programa de Logística Reversa De Medicamentos Da Farmácia Universitária Da UFJF: Análise Do Descarte De Medicamentos Provenientes De Farmácias Caseiras E Rejeitos Farmacológicos Encontrados No Rio Paraibuna. A hipótese a ser testada no projeto é se há relação do perfil de uso dos medicamentos de farmácia caseira com os rejeitos encontrados no rio Paraibuna, analisados nas águas correntes do corpo hídrico. 

A pesquisa se iniciou com a implantação de um sistema de descarte na farmácia universitária, quando foi avaliado o uso de medicamentos pela população. Lá, há um aparato completo para o descarte correto dessas substâncias como a mobília adequada, a abordagem do paciente feita pelo farmacêutico e a instrução aos funcionários para que a segregação dos medicamentos seja feita contemplando o Plano de Gerenciamento de Resíduos de Saúde. Os dados coletados serão referentes ao consumo da população do distrito oeste de Juiz de Fora, que engloba os bairros São Pedro, Borboleta e Santos Dumont. 

A segunda parte do desenvolvimento é a análise de quais substâncias serão encontradas no rio, que será feita baseada no trabalho da pesquisadora, Gabrielle Quadra, que concluiu o doutorado esse ano pelo Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Conservação da Natureza da UFJF, em parceria com cientistas suecos. Cazarim explica que, apesar de o perfil desses rejeitos não se alterar consideravelmente em um curto espaço de tempo, uma dificuldade metodológica do projeto é o fato de que esse banco de dados é do ano de 2018. Outras variáveis a serem excluídas são as provenientes de resíduos farmacêuticos gerados pela excreção humana – quando há o consumo e a eliminação das substâncias pelo corpo – e o descarte correto ou lavagem de máquinas da indústria farmacêutica. Apenas interessa à pesquisa os dados de medicamentos que faziam parte das farmácias caseiras da população. 

O objetivo, portanto, é gerar informações que contribuam para a tomada de decisão pela gestão local do Sistema Único de Saúde sobre a quantidade e tipo de medicamentos descartados, além de fomentar o protocolo de tratamento com medicamentos classificados como “venda livre” e que estão relacionados à formação do estoque caseiro de remédios. “Essa associação vai nos permitir traçar estratégias e políticas de saúde voltadas para a educação da comunidade e também ações de controle ambiental das águas e do meio ambiente. Com base nos resultados, será possível reformular a política de assistência farmacêutica para orientação ao uso e ao descarte correto desses medicamentos”, destacou o pesquisador.