Estudo da Unicef retrata cenário da exclusão escolar e aponta que país corre risco de regredir duas décadas (Imagem: Reprodução)

Direito humano fundamental, a alfabetização é a base de toda a educação. Oito de setembro é o Dia Mundial da Alfabetização, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para celebrar sua importância para o desenvolvimento social e econômico. No entanto, desde a eclosão da pandemia de Covid-19 e a suspensão das aulas presenciais decorrente das restrições impostas pelas autoridades sanitárias, a alfabetização de crianças no Brasil e em diversos outros países foi afetada de uma forma sem precedentes.

Segundo levantamento realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), instituição ligada à ONU, em novembro de 2020, mais de cinco milhões de meninas e meninos não tinham acesso à educação no Brasil, sendo as crianças entre 6 e 10 anos de idade as mais atingidas. Por ser uma etapa da escolarização que estava praticamente universalizada no país, o dado é preocupante, considerando ainda a estimativa de que a educação brasileira deve sofrer uma regressão de cerca de vinte anos.

Na Universidade Federal de Juiz de Fora, pesquisadores têm realizado inúmeras investigações relacionadas a essa problemática. A pesquisa “Escolarização e Pandemia: análise de trajetórias e equidade”, por exemplo, procura sistematizar os dados escolares e contrastar com bases sociais. Alguns resultados preliminares já apresentados em congresso de Sociologia em 2021 indicam que o cenário pandêmico é bem mais severo do que os números têm mostrado, em cerca de 20 ou 30% de subnotificação.

“O país está passando por uma grande crise social. A alta taxa de desemprego, a queda da remuneração e o crescente aumento da inflação afetam os grupos mais vulneráveis. E os efeitos sobre a escolarização são perversos. Afinal, as crianças são o futuro e representam gerações inteiras com limitações ou sem oportunidades educacionais”, pontua o coordenador do estudo, o professor do Instituto de Ciências Humanas (ICH), Fernando Tavares, que lembra o papel nacional da UFJF de referência nessa área, destacando a atuação do Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd).

Sob essa perspectiva, a evasão escolar é um dos riscos mais graves na retomada das aulas presenciais, sob pena de comprometer todo o futuro da educação brasileira, responsável pela formação dos cidadãos da sociedade nas próximas décadas. “Na área da alfabetização, o maior dano será, certamente, o quantitativo de crianças que não aprenderam a ler e escrever neste período pandêmico”, alerta a docente da Faculdade de Educação (Faced), Luciane Magalhães, líder do grupo de estudos e pesquisa Alfabetize.

O acesso à internet é ainda a principal limitação para a continuidade das atividades escolares (Foto: Ethan Liborio/Unicef Brasil)

O processo da alfabetização

“Aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo”. A famosa frase de Paulo Freire sintetiza a importância da alfabetização na vida de qualquer indivíduo. Para a pesquisadora da área da Educação, é preciso abrir espaço para o aprendizado para a vida, por meio de “projetos interdisciplinares que ampliem as experiências das crianças e seu conhecimento geral, proporcionando a formação de sujeitos curiosos, observadores, questionadores, inventivos”.

“A alfabetização depende da reflexão sistemática sobre a língua e da vivência com práticas diárias de leitura e escrita, por meio de muitos momentos de atendimentos individualizados ou em pequenos grupos, de acordo com as necessidades de aprendizagem de cada educando”, compartilha.

Essa compreensão de que a aprendizagem está relacionada à vivência e a diferentes experiências é imprescindível, na opinião de Fernando Tavares, para entender a alfabetização como processo: “é longo, não é de uma semana, um mês ou mesmo um ano”. O especialista menciona que alfabetizar vai muito além do aprendizado da língua, mas inclui também inúmeros outros domínios e conhecimentos, como “o letramento em matemática, a ideia de lateralidade, de senso espacial, da noção de tempo”.

É por isso que os estímulos que a criança tem acesso são oportunidades para favorecer o desenvolvimento e enriquecer a aprendizagem. Ainda que as crianças continuem aprendendo em diferentes contextos, é preciso ressaltar que o papel da escola continua sendo fundamental. “A escola organiza e sistematiza essas experiências e o conhecimento. O primeiro ano no contexto escolar é o de maior salto de aprendizagem”, afirma.

Limitações pelas telas

Os desafios impostos no ensino remoto emergencial são ainda maiores para as crianças que estão começando a escolarização, justamente quando estão sendo alfabetizadas. “Não podemos dizer que isso seja impossível, uma vez que várias professoras têm conseguido êxito, mas não sem o apoio familiar. O que temos observado em nossas investigações é que a atuação da família tem sido crucial”, informa Magalhães.

“O acesso restrito à informação ainda é um grande impedimento para o aprendizado”, enfatiza Luciane Magalhães, professora da Faced (Foto: Arquivo pessoal)

Na percepção da pesquisadora do grupo Alfabetize, as maiores dificuldades são as restrições interacionais impostas pelo distanciamento físico: “Quando o professor desenvolve uma atividade em pequenos grupos em sala de aula, ele pode acompanhar todos ao mesmo tempo, ouvindo as reflexões e questionamentos das crianças; enquanto atende um grupo, os outros alunos estão interagindo entre si, discutindo. Isso não é possível fazer no modelo online em uma sala de aula virtual”.

A docente cita ainda outras dificuldades, como a baixa qualidade da internet, a falta de um espaço adequado em casa ou mesmo a interferência nem sempre benéfica de familiares.

O dilema da equidade

Considerando as múltiplas disparidades sociais, Tavares acredita que quanto mais estrutura se tem em casa, menos dependente dessas estruturas e recursos a criança será na escola. Tal estrutura pode ser entendida de formas variadas, como atenção de familiares, livros ou materiais pedagógicos, recursos diversos, entre outros. Por isso, o jogo de forças é bastante desigual, à medida que as famílias que concentram mais recursos são aquelas que matriculam seus filhos em escolas com mais estrutura.

É desse pensamento que decorre a importância de fortalecer a escola pública, que acaba atendendo uma clientela que já tem menos condições em seus lares. “É injusto que quem já não tem oportunidade em casa estude em uma escola precária”, lamenta Tavares. Investir na escola pública, portanto, é fomentar o desenvolvimento social.

“A gente luta para que a educação se construa a partir da tolerância, do diálogo e da interação com pessoas diferentes; é assim que acontece o aprendizado”, destaca. Nesse sentido, todos precisam trabalhar para reinventar a escola brasileira, para que envolva, acolha e promova mais equidade em busca de uma educação mais plural e equilibrada.

Caminhos possíveis

Professor do ICH, Fernando Tavares percebe a escola como a usina da sociedade, onde se formam os processos sociais (Foto: Arquivo pessoal)

O foco no período de volta às aulas deve ser na recuperação da escolarização dos meninos e meninas. “É importante resgatar e recebê-los de braços abertos, com diagnóstico preciso sobre o estágio que estão e como vão poder progredir”, sugere o pesquisador.

O profissional da educação, sob sua ótica, tem formação e condições de fazer as adaptações necessárias na didática e currículo para planejar e preparar esse retorno de forma adequada. “As escolas precisam lançar mão de uma série de possibilidades para que não haja abandono nem desmotivação.” Dentre as estratégias, ele cita três que podem ser utilizadas: recuperação paralela, aulas de reforço e aprovação com dependência.

Seguindo esse raciocínio, Luciane Magalhães defende que as secretarias de educação deverão auxiliar as escolas na organização de grupos de profissionais que possam alfabetizar as crianças que não venceram esta etapa: “Será preciso criar novas oportunidades por meio de experiências adequadas à faixa etária”.

Quanto às iniciativas para recuperação desse período, a docente tem acompanhado as ações governamentais. “Na rede federal de ensino, as crianças, em fase de alfabetização, têm participado de aulas síncronas, com horário reduzido, com o auxílio de estagiários. Na rede estadual, tem sido desenvolvido o Plano de Estudo Tutorado. E no âmbito municipal, utiliza-se a forma assíncrona, com aulas gravadas e disponibilizadas nas mídias sociais”.

Em Juiz de Fora, o grupo Alfabetize pretende criar, em 2022, projeto de extensão em parceria com a Secretaria de Educação para atender escolas da cidade. “A proposta é envolver graduandos e profissionais que fazem parte do grupo de estudos para oferecer assessoria às professoras alfabetizadoras e às crianças”, almeja.