A importância da autonomia da gestão territorial e informacional pelas populações tradicionais ficou ainda mais evidente durante a pandemia da Covid-19 no Brasil. Diante do arrefecimento das políticas específicas de governo e Estado, diferentes povos indígenas, buscando prevenir a contaminação e combater a desinformação sobre a doença, adotaram medidas próprias nesse período. O assunto pautou o painel on-line realizado na manhã desta quarta-feira, 21, na 73ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sediada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
A professora, assistente parlamentar e doutoranda da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Célia Xakriabá, considera que a pandemia alavancou o desenvolvimento de estratégias próprias das comunidades indígenas. “Começamos a pensar, sem recursos diretos de Estado ou governo, as possíveis soluções. Criamos barreiras sanitárias, e, por meio do resgate de um projeto com a UFMG, passamos a monitorar a circulação de pessoas. Também iniciamos o monitoramento dos casos, em parceria com a Fiocruz”, elenca. O povo Xakriabá, que habita as margens do Rio São Francisco, em Minas Gerais, também adotou uma medida fundamental: a reativação da Rádio Xakriabá. “A linguagem difícil e as informações que circulam no WhatsApp acabam dispersando medo e pânico sobre a doença. Por isso a oralidade é importante. Ouvir outro Xakriabá orientando sobre a Covid-19 conectou as pessoas”, destaca.
Nessa seara, o professor kaiowá, Eliel Benites, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), revela que a reivindicação pelos territórios tradicionais, historicamente retirados dos povos indígenas, guia as lutas atuais. “Essa é uma condição para darmos continuidade aos saberes e ao povo guarani-kaiowá. A estratégia é demonstrar à sociedade – inclusive por meio da presença de acadêmicos indígenas – que nossa relação com a terra é muito específica, de equilíbrio. Pela falta de entendimento, muitas pessoas acabam legitimando a perda e a violência histórica praticada em relação aos indígenas no Brasil”, pontua. Já em relação especificamente à Covid-19, ele esclarece: “Na visão dos mais velhos, a Covid-19 vem pela forma de a humanidade se relacionar com a natureza, nesse processo de decomposição contínua”.
Intensificação das desigualdades
A professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Solange Maria Gayoso da Costa, explica que a pandemia intensificou o cenário de desigualdades regionais já existentes. “A Covid-19 revelou a ineficiência histórica das políticas de Estado, e também a direção de uma política que elege quem vai viver e quem vai morrer”. Ela também lembra que os próprios grupos indígenas se organizaram para criar seus protocolos sanitários e de levantamento de dados. “Eles realizaram ações por conta própria, em função da ausência da política estatal. Mesmo com a dificuldade de acesso à tecnologia, as comunidades também se mobilizaram para arrecadar recursos para adquirir insumos necessários ao combate à pandemia, como álcool em gel e máscaras”, explica.
Conforme a médica sanitarista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ana Lúcia de Moura Pontes, houve falta de planejamento e estruturação das ações da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) diante da gravidade da pandemia. “Vimos pouca execução orçamentária, não houve disponibilização de ferramentas de diagnóstico para monitoramento de casos ou de equipamentos de proteção. A Sesai atuou, mas sem planejamento estruturado para essa resposta”, revela. Ela vai além, ao afirmar que o movimento indígena não buscou substituir o Estado com suas ações: “o que se esperava é que ele cumprisse sua responsabilidade a contento”.
O evento
A reunião conta também com programação Jovem e Família, além de eventos culturais ao longo de sua duração. Todas as informações estão reunidas no hotsite da 73ª Reunião Anual da SBPC na UFJF.