Ciência rompe com mito da democracia racial

No mês em que é celebrado o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, o portal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ouviu pesquisadores e pesquisadoras da instituição sobre a relevância dos trabalhos científicos, nas mais variadas áreas do conhecimento, que rompem com o racismo estrutural e com o mito da democracia racial brasileira. 

O Dia Internacional contra a Discriminação Racial é celebrado em 21 de março e foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em referência ao Massacre de Sharpeville, ocorrido em 1960, em  Joanesburgo, na África do Sul. Na ocasião, a polícia do apartheid vitimou quase duas centenas de pessoas que se manifestavam pacificamente contra o regime segregacionista.

Para a elaboração deste material, os pesquisadores foram provocados com a seguinte questão: “Na sua avaliação, qual é a importância das pesquisas que rompem com o racismo estrutural e com o mito da democracia racial?”. A imprescindibilidade da abordagem da temática do racismo e a riqueza dos depoimentos dos professores transformaram o que seria uma reportagem em duas publicações, ambas com as respostas dos docentes reproduzidas na íntegra. A primeira publicação pode ser conferida abaixo. A segunda estará disponível no portal da UFJF na próxima segunda-feira, dia 29. 

Esta iniciativa é resultado de uma parceria entre as diretorias de Ações Afirmativas e de Imagem Institucional e reforça o compromisso da UFJF com o respeito à diversidade e com o combate às desigualdades.

Confira os depoimentos

Fernanda Thomaz – Departamento de História

Fernanda Thomaz, professora do Departamento de História

As pesquisas têm um papel fundamental na nossa sociedade, que é o de construir/descontruir o imaginário social, as concepções, as ideologias. Se nós pensarmos, por exemplo, o racismo estrutural que temos hoje, a origem dele foi a partir da construção da noção de raça, do racismo científico. 

A concepção racialista atual teve origem em várias bases, mas também em formulações teóricas sobre a divisão e hierarquização dos povos a partir do biológico e do corpo físico. Isso se deu no meio acadêmico, científico. Esse discurso foi cada vez mais impregnando a sociedade, foi sendo utilizado pela mídia, nas produções artísticas, nas práticas e formulações políticas, cada vez mais integrando o imaginário social. 

Assim como conseguimos compreender que houve um processo de construção do racismo que também se deu no âmbito científico, a desconstrução desse processo também é possível. O reconhecimento do racismo e as reflexões sobre racismo possibilitam construir novos imaginários, novos olhares, novas pesquisas que tenham esse papel de eliminar o racismo. 

O reconhecimento do racismo e as reflexões sobre racismo possibilitam construir novos imaginários, novos olhares, novas pesquisas que tenham esse papel de eliminar o racismo. 

Por outro lado, a produção científica tem papel fundamental de comunicar e de possibilitar a formulação de outros materiais, como livros didáticos, que alcancem as pessoas. Trabalhos científicos, pesquisas científicas, orientam, por exemplo, muitas produções do cinema, das artes plásticas, do teatro, muitos artistas, ou seja, chegam de alguma forma em vários âmbitos da sociedade. 

Se olharmos especificamente para o Brasil e pensarmos sobre o mito da democracia racial, esse mito também é um discurso presente em vários âmbitos, mas formulado,  principalmente, no meio científico. Nesse sentido, na minha avaliação, o trabalho científico tem um papel importante na desconstrução e na luta contra o racismo. O meio científico tem uma relação dialética com a sociedade, ou seja, tanto é influenciado por ela quanto pode influenciá-la. 

É fundamental produzir conhecimento, refletir sobre o racismo, falar sobre o racismo, criticar, mostrar diferentes mazelas, diferentes formas de manifestação do racismo, dessa violência, dessa exclusão, e, a partir disso, favorecer a transformação das relações raciais.    

Hebe Mattos – Departamento de História

Hebe Mattos, professora do Departamento de História.

Acho que pesquisas não rompem com padrões sociais, elas os elucidam. Foi preciso que o racismo estrutural se tornasse um problema de pesquisa no Brasil (o que se consolida desde pelo menos a década de 1960), para que fosse possível demonstrar também as falsas premissas da percepção do Brasil como uma democracia racial.

Para isso, em várias áreas do conhecimento, foi necessário definir e fazer novas perguntas, fundamentais para identificar e fazer um diagnóstico cada vez mais preciso dos mecanismos de funcionamento e de reprodução do racismo no Brasil. Por exemplo, inserir a autoidentificação étnico-racial dos brasileiros nos censos e nas estatísticas foi uma dessas inflexões. Sem dados sobre raça/cor não é possível medir a desigualdade racial no país. 

Pesquisas não rompem com padrões sociais, elas os elucidam.

Apenas com o estatuto da igualdade racial (2010), essa identificação passou a ser uma informação, voluntária, mas universal, em todas as bases de dados brasileiras. Antes, a ausência de informação, teoricamente baseada num ideal de “democracia racial”, no qual as diferenças raciais não deviam importar, acabava por funcionar como uma ferramenta de reprodução de desigualdades. 

Desse modo, feita a pergunta, a violência do racismo estrutural brasileiro, filho de uma sociedade escravista liberal que se construiu estruturalmente racista sem precisar de leis de discriminação racial, e assim continuou a se reproduzir por todo o período republicano, vai se desvelando às lentes e às metodologias de pesquisa de diferentes áreas e pesquisadores.

Marco José Duarte – Faculdade de Serviço Social 

Marco José Duarte, professor da Faculdade de Serviço Social

Estamos falando de uma produção acadêmica, seja em que área de conhecimento for, que a perspectiva antirracista deve ser orientada e publicizada. Haja visto que a ciência não é neutra, primeira questão. Tanto que tivemos por longos anos o dito racismo científico, que foi fundamento e paradigma para muitas práticas científicas, profissionais e políticas. 

Penso que a outra questão, pertinente, é que ainda temos uma grande maioria de brancos – ou que se acham brancos, ao estilo caucasiano, e tudo o que isso representa – que produz conhecimentos no espaço da universidade, que ainda é branca em seu modo de fazer ciência, desde a escolha de determinados temas, do objeto, da metodologia até mesmo do referencial teórico. 

Que igualdade? Ainda vivemos um genocídio das populações negra, indígena e cigana, dos excluídos e aniquilados.

Por isso, é de suma importância que as pesquisas que produzimos e que orientamos rompam com essa estrutura racista presente, tanto no Estado, como na ciência, nas áreas de conhecimento e na sociedade como um todo. Afinal a dita democracia racial é um mito histórico, aliado à ciência, que forja um projeto de nação enganoso e perverso, que não altera as relações sociais e de poder.

Que igualdade? Ainda vivemos um genocídio das populações negra, indígena e cigana, dos excluídos e aniquilados, de fato, há séculos, materializando a necropolítica do racismo do Estado e da ciência. 

Por fim, penso ser em um novo projeto civilizatório e de humanidade que as pesquisas possam contribuir, a partir do campo democrático, associado às políticas de reparação, para que no espaço da universidade, a produção dos saberes científicos sejam de fato universal, plural e interseccional, com a cara do povo brasileiro, que as diferenças, um dia, não sejam marcadas pelas radicais desigualdades sociais e raciais existentes.