A pesquisa científica é um dos pilares da universidade pública. Conhecer quem produz o conhecimento é, também, valorizar a própria ciência. Com essa perspectiva, ao longo da semana da consciência negra, a UFJF publica uma série especial de matérias de entrevistas com pesquisadores negros. O objetivo é abrir espaço não apenas para a discussão acerca da representatividade na carreira acadêmica, mas também sobre quais ações, sejam institucionais ou tomadas por colegas pesquisadores, são necessárias para fomentar o antirracismo em espaços científicos.
Nesta quinta e última matéria, entrevistamos as pesquisadoras Cristina Bezerra, Fernanda Thomaz e Ana Tércia Oliveira, vinculadas aos cursos de Serviço Social, História e Matemática, respectivamente. A primeira, a segunda, a terceira e quarta matéria estão disponíveis on-line.
UFJF: Quais ações (promovidas tanto pelas instituições quanto pelos pares pesquisadores) são (ou seriam) significativas para combater o racismo na universidade e, especialmente, no âmbito científico?
Ana Tércia Oliveira: Acredito que campanhas de motivação a inclusão e a participação dos jovens pretos nos projetos de pesquisa são fundamentais no combate ao racismo. Ações como essa revelariam o talento dessa juventude, resultando no reconhecimento e valorização desses jovens.
“O primeiro elemento que precisamos vencer e realizar são ações no sentido de reconhecer a importância da população negra na construção da sociedade brasileira”
Cristina Bezerra: O primeiro elemento que precisamos vencer e realizar são ações no sentido de reconhecer a importância da população negra na construção da sociedade brasileira. Para além simplesmente da perspectiva da escravidão que é, sem dúvida, uma perspectiva significante, importante na história do Brasil – mas entender que a população negra constituiu a sociedade brasileira enquanto trabalhadores. Então, de tudo o que que nós temos hoje, é fruto do trabalho dessa população sobre a realidade brasileira.
A segunda questão, na minha opinião, são ações do ponto de vista afirmativo, que procurem dar visibilidade à presença da população negra nas universidades, tanto no seu quadro de professores, técnicos, de estudantes e de terceirizados. É retirar a invisibilidade que se tem sobre a população negra; é falar que eles existem, que eles estão na universidade e que eles têm questões diferenciadas para enfrentar no contexto dessa sociedade. Eu acho que uma outra ação significativa no combate ao racismo são as ações de formação, política e social. A universidade precisa passar por esse processo em que você enxerga o negro e enxerga a potencialidade que se tem nessa figura e nessa existência social do negro na universidade. Principalmente no que se refere a intelectuais negros, à produção de autores negros, à pesquisas que professores negros realizam… Isso significa, na verdade, que existe uma história não contada da população negra no Brasil, na universidade e na sociedade, e que precisamos recuperar essa história.
Fernanda Thomaz: Eu entendo que a universidade é uma instituição composta por pessoas. Então, penso que as formas de opressão que uma universidade implementa, carrega e reproduz é consequência das pessoas que estão ocupando este espaço. A instituição reproduz as relações sociais e, ao mesmo tempo, produz e reforça relações sociais; ela é influenciada pela sociedade e a influencia. Então, penso que, se vivemos em uma sociedade estruturada pelo racismo, as instituições inseridas nela também são mergulhadas e organizadas pelo racismo. As minhas ações em sala de aula, a forma como eu lido com os alunos e com os demais funcionários, a forma como eu penso meu conteúdo pedagógico, elas não são individuais. A princípio, sim, pois eu sou um indivíduo; mas ela é institucional também, por que eu estou representando uma instituição. O que eu quero dizer com isso é que, de diversas esferas e normas, é possível combater o racismo na universidade.
Acho que a implementação de políticas afirmativas, de uma forma tangencial, é importante a ser pensada – e que não seja só para ingresso, mas também para a manutenção do estudante, para ingresso e manutenção de funcionários, para melhores condições de acesso dentro da própria universidade. Na sociedade brasileira, raça está ligada à classe, portanto, a maior parte dos estudantes negros também são vulneráveis economicamente. Logo, nós temos que pensar sobre as condições materiais destes estudantes na universidade e os acessos para terem uma formação com mais qualidade.
Outro ponto importante é a Universidade não só pensar em formar pessoas conscientes, como também pensar em combater constantemente o racismo, seja ele expresso por qualquer agente social. E não só punir através de medidas administrativas, mas combater desde a formação, com acompanhamento, orientação. Esses processos administrativos precisam ser olhados com cuidado, até mesmo para gente visualizar o racismo e sair da naturalização do mesmo.
“Refletir sobre as contradições sociais e as formas de opressões históricas fazem parte do combate ao racismo.”
Agora, as pessoas têm que agir de uma forma diferente, pensando o quanto o racismo está estruturado dentro da Universidade. Quando falo isso, é diverso: é desde você conseguir dar “bom dia” para a mulher da faxina que, sabemos, são, em maioria, mulheres negras moradoras da periferia. É preciso perceber que aquelas pessoas são incluídas na instituição, porque aquelas que são mais excluídas da Universidade não são os estudantes, não são os técnicos, mas sim, são os terceirizados. Eles que fazem o trabalho mais braçal, menos valorizado, estão mais vulneráveis em cargos que são ocupados, em maior parte, pela população negra. Você incluir essas pessoas possibilita não apenas a autoestima delas, mas também possibilita os alunos a olharem de outra forma esses sujeitos que estão dentro da universidade. Quando temos discussões sobre a implementação de políticas na universidade, incluímos professores, alunos e os técnicos… Ainda que os terceirizados não sejam efetivos, eles também estão trabalhando na universidade, eles fazem parte do corpo da universidade.
Quanto aos professores, eu acho que tem muito o que se fazer. Nós temos cursos que são majoritariamente eurocêntrico, sem nenhuma preocupação em refletir, por exemplo, sobre o lugar racial na produção acadêmica. E quando eu falo eurocêntrico, é porque essa conjuntura geopolítica é racializada desde que entendemos a hegemonia européia pelo mundo. Quando fala-se em população negra só se estuda escravidão. Pouco se entende que estudar República é também estudar pessoas negras, por exemplo. Parece que estudar questão racial é uma coisa à parte. Refletir sobre as contradições sociais e as formas de opressões históricas fazem parte do combate ao racismo. Mesmo que eu estude Física, é possível eu abordar a questão racial. Ainda que eu estude Biologia, é possível abordar a questão racial. Ainda que eu estude Medicina, é possível abordar a questão racial. Não só é possível, mas é necessário.
“A principal questão é sair do lugar de isenção e imparcialidade para encarar a realidade.”
É fundamental, não só para as Ciências Humanas, perceber quem são os produtores de conhecimento que a gente acessa. Eu escuto muita gente falar: “não vou ler autores negros porque não têm”. Como não tem? A gente não tem é vontade de procurar, ou pensamos só nos europeus – e, quando são autores brasileiros, devido às condições e à nossa sociedade extremamente desigual, sabemos que a maior parte dos intelectuais são brancos. Então, é importante pensar nesses produtores, nesses agentes, e incluir os alunos em sala de aula. A principal questão, e eu digo isso para os professores, é sair do lugar de isenção e imparcialidade para encarar a realidade. Porque nós somos totalmente parciais; quando nos colocamos como imparciais, estamos sendo mais parciais do que nunca. Quando a gente se coloca como apolítico, nós estamos sendo ainda mais políticos. Pois, se as relações estão acontecendo de um jeito desigual e eu não faço nenhum esforço para mudar isso, eu estou permitindo que ela se mantenha, se reproduza. Muitas das vezes, a minha posição, a minha fala e as minhas ações reforçam ainda mais, de uma forma até violenta, algo que eu acho que estou abordando imparcialmente.
UFJF: Quais são as pesquisas desenvolvidas por vocês – e a importância delas para a sociedade?
Ana Tércia: Minha área de pesquisa na Matemática é a área de Sistemas Dinâmicos. O objetivo das pesquisas nessa área é prever a evolução de fenômenos naturais ou humanos nos diversos ramos do conhecimento.
Um exemplo clássico é prever a evolução do movimento dos planetas no sistema solar. Outro exemplo seria a evolução de uma epidemia segundo uma regra que relaciona o presente com o tempo inicial.
Cristina Bezerra: Faço pesquisas em duas áreas: a de cultura e formação social no Brasil e a agrária. São duas pesquisas que têm uma interface. A importância, na minha opinião, é não só compreender os caminhos que a sociedade brasileira tomou ao longo da sua formação social, como também de que forma a cultura é uma expressão desses caminhos; como ela revela esses elementos que constituíram o Brasil historicamente e, então, como os desdobramentos disso nos interferem ainda hoje. Já a questão agrária diz respeito especificamente às relações de uso, posse e propriedade da terra, e como que o Brasil lida e movimenta essas questões do acesso à terra.
Essas duas pesquisas, sem dúvida nenhuma, bem como suas áreas, são importantes para porque revelam a realidade onde vivemos e também permitem que a Universidade cumpra uma função social. Para mim, isso é muito significativo: conhecer o Brasil do ponto de vista da questão agrária, da formação social e da cultura. São elementos que nos permitem agir sobre esse mesmo Brasil, procurando alternativas para seus principais problemas sociais, como o racismo, o machismo, e a dependência com vários elementos que caracterizam a sociedade brasileira e sua história.
Fernanda Thomaz: Eu trabalho com História da África. Especificamente, trabalho com Moçambique. A pesquisa de maior peso tem sido trabalhar para entender as agências dos africanos de diferentes vertentes no período colonial – como homens e mulheres têm agido e reagido contra a imposição colonial. E, muitas das vezes, com ações que permitem criar fissuras dentro do próprio regime, e mostrar que, ainda que ele seja impositivo, explorador e violento, também é um regime frágil. As pessoas agem, tanto interna quanto externamente, mesmo quando submetidas a esse tipo de situação. E resistem também.
Isso me faz pensar muito em relação ao nosso papel na sociedade: o quanto que, ainda que sejamos oprimidos, é necessário que a gente resista, que a gente aja. Meu trabalho é isso: olhar para o colonialismo para pensar nossas estrutura atuais de opressão, além da própria herança colonial. Isso faz pensar como é possível fragilizar esse sistema, resistir ao longo do tempo e romper com essas formas de opressão.
Também tenho trabalhado com gênero, percebendo formas de ações de grupos que são diversamente explorados – aí, pensando especificamente, no universo das mulheres negras africanas e como elas são agentes do processo histórico. O olhar para essas mulheres também faz pensar sobre o nosso lugar enquanto mulheres em uma sociedade racista.