A pesquisa científica é um dos pilares da universidade pública. Conhecer quem produz o conhecimento é, também, valorizar a própria ciência. Com essa perspectiva, ao longo da semana da consciência negra, a UFJF publica uma série especial de matérias de entrevistas com pesquisadores negros. O objetivo é abrir espaço não apenas para a discussão acerca da representatividade na carreira acadêmica, mas também sobre quais ações, sejam institucionais ou tomadas por colegas pesquisadores, são necessárias para fomentar o antirracismo em espaços científicos.
Nesta terceira matéria, entrevistamos os pesquisadores Carolina Bezerra e Willian da Cruz, vinculados ao departamento de Ciências Humanas do Colégio de Aplicação João XXIII e ao departamento de Matemática da UFJF, respectivamente. A primeira e a segunda matéria estão disponíveis on-line.
UFJF: Quais ações (promovidas tanto pelas instituições quanto pelos pares pesquisadores) são (ou seriam) significativas para combater o racismo na universidade e, especialmente, no âmbito científico?
Carolina Bezerra: “Uma discussão que eu e diversos pesquisadores da UFJF apontamos, há muitos anos, é que precisamos combater o racismo institucional por meio da articulação entre ensino, pesquisa e extensão. Não basta não ser racista: precisamos de ações antirracistas, no sentido de possibilitar que a Universidade se consolide não apenas no acesso, mas também na permanência da população negra e de grupos marginalizados. O espaço universitário ganha muito com a vinda de estudantes quilombolas, negros, LGBTQIA+… Essa diversidade promove uma pluralidade de perspectivas teóricas, valores civilizatórios e visões de mundo, o que acaba gerando impacto no âmbito científico.
“Não basta não ser racista: precisamos de ações antirracistas, no sentido de possibilitar que a Universidade se consolide não apenas no acesso, mas também na permanência da população negra e de grupos marginalizados.”
O que eu defendo é, por exemplo, o seguinte: um médico só vai transformar sua visão sobre saúde e atendimento da população negra quando, na Medicina, se estudar uma disciplina sobre relações étnico-raciais. É o mesmo com o Direito; nossa justiça não é equânime para a população negra e demais minorias. Outra coisa que defendo são articulações de campanhas, na área de comunicação e divulgação científica, voltadas para tornar transparentes e acessíveis para a população quais são os conhecimentos produzidos na Universidade.
Outra questão é a necessidade desse conhecimento ser utilizado por meio da articulação entre a Universidade e as secretarias municipal e estadual de educação. Acho necessário o investimento na formação de professores no sentido de auxiliar na implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que estabelecem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira, africana e indígena em todas as escolas do país, públicas e particulares. Possibilitamos, assim, que esses conhecimentos e saberes, bem como práticas antirracistas, estejam presentes nos currículos dessas escolas.
Junto a isso, as pesquisas dos vários campos de conhecimento relacionados à população, à história e à cultura negra precisam ser campos de conhecimento divulgados, ensinados e transmitidos às novas gerações de profissionais que a Universidade forma. Só assim conseguiremos ter uma análise mais cuidadosa às questões relacionadas, para citar alguns exemplos, ao genocídio da juventude negra e à violência obstétrica contra mulheres negras.
É importante frisar que uma pesquisa de dois anos atrás apontou que Juiz de Fora é a terceira cidade do país com maior desigualdade racial. Esse é mais um exemplo de como a Universidade precisa analisar esses dados e índices e, então, revertê-los por meio de pesquisadores e propostas concretas para a elaboração de políticas públicas, a formação de professores, a divulgação de campanhas antirracistas – atitudes que refletem em várias áreas, como cultura, educação, saúde, lazer, segurança e políticas públicas.”
Willian da Cruz: “Estou coordenando um programa de extensão chamado ‘Encontro Temático da Comunidade Negra de Juiz de Fora’. Este programa tem a participação de outros quatro professores pesquisadores de áreas distintas da UFJF: Julvan Oliveira, Fernanda Thomaz, Francione Carvalho e Zélia Ludwig. Nosso trabalho visa desenvolver encontros que tratem principalmente do papel do negro na região de Juiz de Fora e também a inserção do negro em diversas áreas científicas, dentre elas, a Matemática, a Arte, a Educação, a História e a Física.
“Este é um dever de todos nós pesquisadores e professores, quer sejamos pretos, pardos, brancos, etc. É uma luta de todos nós!”
O nosso objetivo é desenvolver não somente uma ação de combate ao racismo, mas também, principalmente, uma consciência antirracista que verifique as brilhantes contribuições dos negros no desenvolvimento científico nessas diferentes áreas. Outra meta é posicionar-nos de forma a repudiar e confrontar, com práticas antirracistas, tudo que pode ter algum lastro com o racismo que, como todos sabemos, é estrutural em nosso país, pois está impregnado em nossa sociedade, naturalizado pelas instituições e, principalmente, não reconhecido por quem nos representa. Precisamos agregar mais e mais docentes pesquisadores nesta conscientização. Cada um, em sua respectiva área, pode ser vetor de conhecimento e propagação desta consciência negra, desta consciência antirracista.
A principal ação que julgamos ser significativa é o desenvolvimento da consciência antirracista, da consciência negra que, por meio de estudos, pesquisas, leituras e principalmente interesses, possa construir uma sociedade calcada no respeito e na promoção de verdadeiras oportunidades. Este é um dever de todos nós pesquisadores e professores, quer sejamos pretos, pardos, brancos, etc. É uma luta de todos nós!”
Quais são as pesquisas desenvolvidas por vocês – e a importância delas para a sociedade?
Carolina Bezerra: “Minha área de pesquisa abarca as relações étnico-raciais, e está relacionada com o diálogo entre os saberes científicos, os saberes escolares e os saberes tradicionais. Realizei meu mestrado e meu doutorado em comunidades quilombolas, pesquisando como, por meio da oralidade, memória e ancestralidade, são são transmitidos os conhecimentos, o patrimônio material e o imaterial, de geração para geração. A partir do tripé ensino, pesquisa e extensão, acompanho a implementação da educação escolar quilombola nessas comunidades, com oficinas sobre racismo, preconceito e discriminação; com trabalhos para pensar atividades de geração de emprego e renda para as comunidades quilombolas; e por meio do diálogo entre elas e o poder público local.
“Há a necessidade de superação do racismo, do preconceito e da discriminação para que a nossa sociedade consiga alcançar o desenvolvimento cientifico, tecnológico e educacional tão necessário para regimes democráticos.”
Como sou professora do Colégio de Aplicação João XXIII, procuro trazer esses conhecimentos das comunidades quilombolas para a minha prática pedagógica e para o espaço escolar. Já participei de cursos nos quais a UFJF foi pioneira, como encontros de saberes, nos quais mestres indígenas, quilombolas e de agroecologia vieram à universidade para lecionar disciplinas. Assim, se estabelece uma relação de considerar os saberes desses mestres e seus conhecimentos. Também tenho acompanhado alguns projetos relacionados à necropolítica e à violência – um deles é junto ao Coletivo Marielle Franco, do qual faço parte, que vem estudando a violência de gênero no ambiente acadêmico. E, quando essa questão toca a dimensão étnica-racial, percebemos como as mulheres negras são as que sofrem essa violência de uma forma mais complexa, a partir da sobreposição de vulnerabilidades entre raça, gênero e classe social.
A importância do meu trabalho pra sociedade está relacionada à questões que vieram muito à tona nessa pandemia e evidenciaram a problemática do racismo estrutural e institucional da sociedade brasileira. Vemos isso refletido nos índices alarmantes relativos à população negra – seja a desigualdade (entre homens e mulheres, principalmente mulheres negras, que são a base da pirâmide social); seja o acompanhamento do genocídio da juventude negra; seja a relação no tocante aos direitos humanos. Há a necessidade de superação do racismo, do preconceito e da discriminação para que a nossa sociedade consiga alcançar o desenvolvimento cientifico, tecnológico e educacional tão necessário para regimes democráticos.
Sobre as comunidades quilombolas, estamos em um momento de retrocesso muito grande. Esses grupos, historicamente vulnerabilizados, têm tido seus processos de reconhecimento e titulação de terras prejudicados e paralisados, porque isso entra em conflito com os interesses de grandes grupos, especialmente em Minas Gerais – como mineradoras, madeireiras e empresas que plantam eucaliptais. Esses grupos impactam no ecossistema dessas comunidades quilombolas, cuja relação com o meio ambiente e a terra é fundamental para seus desenvolvimentos, bem como superação de desigualdades.
Se hoje temos unidades de conservação e espaços preservados ecologicamente, foi porque esses grupos, a partir de seus valores civilizatórios, criaram uma relação importante com o ambiente. Hoje, vários conceitos falam de desenvolvimento sustentável, mas sabemos que esses são saberes fundamentais cultivados há gerações que infelizmente, por conta dessa hierarquização e supervalorização dos valores ocidentais e europeus, faz com que a sociedade não se atente para a importância dessas comunidades quilombolas, indígenas e agroecológicas para o Brasil.”
Willian da Cruz: “Sou doutor em Educação Matemática pela Universidade Anhanguera de São Paulo, e mestre em Educação Matemática pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Desenvolvo pesquisa na área da Educação Matemática, buscando desenvolver os aspectos semióticos e o uso dos experimentos mentais no ensino e na aprendizagem em Matemática.
“A Matemática tem um papel importante na sociedade porque, em si, tem condições de desenvolver um meio de reflexão para se promover o bem comum.”
O nosso foco é entender a natureza dos objetos matemáticos, suas formas de representação e comunicação – buscando, desta forma, desenvolver um ensino e, consequentemente, uma aprendizagem mais significativa para este conteúdo que causa ‘horrores’ em muitas pessoas. A nossa tese é que, sem efetivamente desenvolver este olhar semiótico para os aspectos que já citamos, o ensino desta disciplina continuará sendo mecanizado e conduzido com pouco esclarecimento sobre como os objetos matemáticos se constituem.
Entendemos que a Matemática é um fenômeno sócio-cultural que depende de interpretações. Interpretar é entender as diferentes representações e aplicações de seus conceitos, e isto faz diferença se pensarmos em uma sociedade que precisa desenvolver criatividade, autonomia e, ao mesmo tempo, vivenciar ações comuns – isto é, promover a cidadania. Como parte do contexto sócio-cultural, a Matemática tem um papel importante na sociedade, não somente por ser considerada uma ferramenta para diversas outras ciências, mas também porque, em si, tem condições de desenvolver um potencial criativo e tornar-se um meio de reflexão para se promover o bem comum.
Matemática não pode ser reduzida simplesmente a uma decoreba de fórmulas ou cálculos sem reflexão. Quantos de nós ainda não somos capazes de responder o que é Matemática? Isto me incomoda e me faz, a cada escrita, a cada estudo, a cada orientação, a cada dia, mostrar os caminhos para entender, primeiramente, o que não é Matemática; para, então, constituir uma concepção de Matemática para ensiná-la. Isto só é possível com o olhar para Educação Matemática como uma área que tem a responsabilidade desenvolver a relação do sujeito humano com a Matemática.”