O duo de flautas doces, formado por Cesar Villavicencio e Paula Callegari, de Uberlândia, passeia pelo repertório renascentista e barroco e revisita um compositor inglês do período Tudor em concerto gravado para o 31º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, a ser exibido nesta quinta-feira, 26, no canal do Centro Cultural Pró-Música no Youtube. Os músicos são integrantes do Grupo de Pesquisa em Música da Renascença e Contemporânea (Greco), que pode se apresentar em diferentes formações, de duas vozes a conjuntos com mais de 20 intérpretes.

Músicos de Uberlândia, Cesar Villavicencio e Paula Callegari, gravaram concerto especialmente para o Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga (Foto: Divulgação)

O Festival é organizado pela Pró-reitoria de Cultura e pelo Centro Cultural Pró-Música, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e se estende até segunda-feira, 30 de novembro, sempre via plataformas virtuais. As transmissões acontecem diariamente a partir das 19h, com palestra do professor de Música da UFJF, Rodolfo Valverde, destinada a fazer uma contextualização histórica dos programas dos concertos e, em seguida, às 20h, as apresentações musicais. 

“Foi um real desafio decidir o repertório para duas vozes (duas flautas doces, neste caso), dado o ineditismo e o vasto leque para essa formação”, explica Villavicencio. O duo optou por preparar um programa com peças da metade do século XVI publicadas em Veneza, uma peça da renascença tardia dos países baixos e um duo do alto barroco francês. Para o encerramento, unem-se a dois outros flautistas em uma colaboração internacional.

O programa é aberto com uma peça de Gioseffo Zarlino, que exemplifica o que esse compositor  considerava como “musico perfetto”, aquele que, além de dominar a técnica e a arte de tocar e compor música, conhecia profundamente a chamada música especulativa, que se refere aos fundamentos matemáticos do som. Como explica Villavicencio, esse conceito traz para nosso imaginário uma dimensão a mais para ser observada na inspiração interpretativa. “As proporções matemáticas relacionadas ao som eram consideradas as mesmas que regiam a organização do universo, uma dimensão que reflete claramente a visão trazida pelo Humanismo, na qual a observação do mundo não era feita mais somente através da crença religiosa, mas por meio da ciência.”

Em seguida, Villavicencio e Callegari apresentam um duo em cânone do pouco conhecido Augostino Licino. “Cânones são composições que representam um produto direto da aplicação prática da tal música especulativa, pois indica em termos matemáticos a distância entre as vozes. O legado de Licino que conhecemos se resume a duas edições de cânones. Nesta apresentação, interpretamos o primeiro cânone do primeiro livro de 1545”, explica.

A terceira obra é uma versão do famoso madrigal italiano intitulado “Amarilli mia bela”, composto por Jacob Van Eyck, em 1649. Originalmente escrito pelo compositor Giulio Caccini e publicado em Florença em 1601, “Amarilli “ é, segundo Villavicencio, um exemplo do então revolucionário movimento que levou a propor a forma composicional conhecida por “monodia”, ou canto solo com acompanhamento, como alternativa para atingir mais clareza e inteligibilidade do texto. “Clamava-se, então, que a escrita polifônica feita em diversas vozes obscurecia a mensagem do texto e que esta nova proposta de ‘falar-cantando’ era mais apropriada.”

Em um grande salto para o século XVIII, o duo apresenta um dos exemplos musicais mais depurados do barroco: uma suíte de Jacques Martin Hotetterre, músico da corte de Luis XIV, na França, que foi um importante inovador da música em diversos aspectos. Multi-instrumentista (além da flauta transversal, tocava oboé, fagote de musette), escreveu métodos para esses instrumentos que foram amplamente divulgados na época. “Deste músico interpretamos uma suíte composta por uma sequência de danças que levam o ouvinte em uma verdadeira aventura musical, e finaliza com as instigantes variações de uma Passacaille”, destaca Villavicencio.

Participação especial
Para finalizar, o concerto conta com a participação especial dos flautistas María Martinez Ayerza, musicóloga que leciona no Royal College of Music, em Londres, e Guilherme dos Anjos, professor do Conservatório de Música e Artes Raul Belém, de Belém do Pará. Eles se unem a Cesar Villavicencio e Paula Callegari para tocar a quatro vozes a peça “Maske”, do compositor inglês Hugh Aston, do século XVI.

A parceria com Maria Ayerza e Guilherme dos Anjos surgiu há três meses. “Foi muito emocionante colaborar com gente do outro lado do oceano. Alimenta a esperança por uma sociedade mais colaborativa, empática e solidária que ajude a reconstruírmos um mundo com menos hostilidade, pluralista, tolerante e diverso no seu mais amplo conceito. Temos certeza de que a arte é capaz de ajudar a transformar sociedades e temos esperança de que nossa pequena apresentação ajude nesta árdua empreitada”, afirma Villavicencio.

Gravar com eles envolveu certa logística: Villavicencio e Paula gravaram com Guilherme dos Anjos na residência do casal, em Uberlândia, onde estão em isolamento junto com sua filha de nove meses e a mãe de Villavicencio, que tem 85 anos. A gravação foi enviada à Maria, na Europa, de onde ela gravou sua participação. O material retornou para o Brasil para a edição de Villavicencio. “O Greco possui aparelhos de boa qualidade para este objetivo. Assim podemos gravar o vídeo e o áudio separadamente. Ajuda também estudos que realizei no campo da sonologia no Conservatório Real de Haia para o preparo do material”, relata o flautista.

Inspiração
Villavicencio reconhece que não é possível comparar uma apresentação virtual com uma presencial, “insubstituível”. Mas ressalta uma particularidade do processo virtual: o acesso sem limites. “Tenho visto apresentações artísticas atingindo números realmente imensos, o que é a parte que, na minha opinião, legitima o uso desta plataforma. Com a experiência que tenho tido recentemente, somente me resta dizer que é um processo de aprendizado, um pouco dolorido por conta da tragédia sanitária, mas sem dúvida benéfico por dar a oportunidade de testar as vantagens e desvantagens da virtualidade.”

O flautista acredita que a iniciativa de realizar o Festival de forma virtual, tendo em vista a conjuntura atual, “é de muito proveito para a sociedade manter movimentos culturais que de alguma forma conseguem levar inspiração, deleite, informação e, certamente, esperança para os cidadãos”.

Villavicencio sabe bem do que está falando. Ele foi professor no Festival em 2009 e 2011 e também já se apresentou em concerto e palestra. “Paula já participou de quase todas as edições, chegando a levar os alunos da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em ônibus fretado para assistir ao Festival”, relembra.

Sobre o Greco
O Grupo de Pesquisa em Música da Renascença e Contemporânea (Greco) foi idealizado por Villavicencio com o objetivo de fortalecer a pesquisa e performance da música da Renascença com desdobramentos para a música contemporânea. “Havendo dedicado no passado muita atenção ao período barroco, pensei em constituir um corpo de pesquisa e criação musical focado simultaneamente na teoria e na prática do repertório dos séculos XVI e XVII e no desenvolvimento de processos criativos e interpretativos da música contemporânea”, explica. O projeto recebe apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) na categoria Jovem Pesquisador.

A proposta é recriar música do século XVI por meio de estudos que envolvem uma variedade de áreas de conhecimento. Parte da organologia, que se refere a conhecer os instrumentos usados durante o século XVI para poder conhecer o material físico usado então no fazer musical, e da filologia aplicada, que permite aprender como interpretar a música diretamente das partituras originais. O Greco também procura compreender o papel da música dentro do cenário cultural, científico, político e filosófico. “Desta forma, acreditamos seja possível chegar perto de uma compreensão mais profunda dos diversos estilos musicais da Renascença, fazendo de sua recriação uma prática cativante, tanto para o intérprete quanto para o ouvinte”, afirma.

A proposta do Greco também abraça a interpretação e a criação de repertório contemporâneo para os instrumentos antigos: “Até o momento nossos conjuntos estrearam nove composições que de alguma forma acreditamos estejam dando uma nova vida aos instrumentos do século XVI na contemporaneidade.”

A pesquisa do grupo já resultou em três congressos, com participação de convidados do exterior, assim como seus membros participaram de diversos congressos no Brasil e fora do país, além da realização de concertos em importantes festivais e duas parcerias na Itália com instituições que muito ajudarão nas pesquisas futuras do grupo. Logo antes da pandemia, o Greco iniciou colaboração com a renomada Schola Cantorum Basiliensis, visando à consolidação de mais uma colaboração internacional.

Os músicos
Cesar Villavicencio (Flauta doce) é pesquisador e intérprete da música dos séculos XVI, XVII e XVIII e da música contemporânea, além de ser um improvisador. Possui doutorado em Música, pela University of East Anglia (2008), Inglaterra; e pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), como bolsista da Fapesp (2012). Realizou estudos de bacharel em Música em São Paulo. Em 1998, obteve o diploma de Solista, no Conservatório Real de Haia, Holanda, o mais alto grau de formação oferecido por essa instituição. 

Desde 2015, dirige o projeto de pesquisa Jovem Pesquisador Greco (Grupo de Pesquisa em Música da Renascença e Contemporânea – Fapesp). Entre 1996 e 2000, desenvolveu junto do Instituto de Sonologia do Conservatório de Haia, e com apoio da bolsa “Virtuose”, do Ministério da Cultura, uma flauta contrabaixo, com a qual é possível processar sons ao vivo (a e-recorder). Seu trabalho junto de compositores rendeu dez obras novas para a flauta doce.

Paula Andrade Callegari (Flauta doce) é doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Música pela Universidade de Brasília (UnB), e licenciada em Música pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde é professora de Flauta doce e coordenadora do Grupo de Flauta Doce da UFU desde 2007. Foi professora de Flauta doce e Percepção musical no Conservatório de Uberlândia, entre 2006 e 2008, e ministrou três edições das “Jornadas Instructivas de Flauta Dulce”, em Montevidéu (Uruguai). Em 2013, recebeu a Bolsa de Aperfeiçoamento Técnico e Artístico em Música da Funarte. 

Desde 2015, integra o Grupo de Pesquisa em Música da Renascença e Contemporânea (Greco). No Brasil, participou de diversas edições dos festivais de música de Juiz de Fora, Curitiba (PR) e Brasília (DF), nas classes dos mais renomados professores da área. Foi bolsista do XXIV Curso Internacional de Música Antiga da Academia de Música Antiga de Lisboa e participa regularmente de congressos no Brasil e no exterior.