Os anos de 1970 foram desafiadores para a educação brasileira diante do período do Regime Militar. Apesar do olhar atento dos militares sobre a Universidade , os relatos narram que a instituição soube sobreviver ao sistema político daquela época. A década trouxe avanços na consolidação dos cursos, na ampliação da estrutura física do campus, mas, principalmente, fez surgir novas vozes de luta e de resistência.
Aprovada no vestibular da UFJF em 1970, Adenilde Petrina foi a primeira da família a ter acesso à universidade. “Não tive professoras e professores negros. Pouquíssimos eram os estudantes negros. Eu era a única da minha turma. Era tão raro, mas tão raro uma aluna negra de Juiz de Fora estudar na UFJF que um professor jurava que eu era de Cabo Verde e me chamava, inclusive, de cabo-verdiana. Na época, às vezes, a Universidade recebia estudantes africanos.”
A questão racial não era, na verdade, uma questão a ser debatida. “Nos anos de 1970, aos negros e negras cabiam as tarefas consideradas menores. Eu não tinha consciência da discriminação naquela época, porque, até então, só vivia no meu quadrado. Não sabia o que era racismo e discriminação. A experiência na Universidade me mostrou isso.”
Apesar das dificuldades, reconhece que houve um lado positivo nessa experiência, pois pode perceber e tomar consciência sobre a necessidade de estar junto aos seus, na periferia, no Santa Cândida. “Até hoje temos muitos reflexos daquela época. É dado mais destaque aos brancos que lutaram contra a ditadura. A luta dos negros é invisibilizada. Nós sabemos, mas é pouco falada. Só se fala um pouco do Osvaldão [Osvaldo Orlando da Costa, integrante do Partido Comunista do Brasil e um dos principais integrantes da Guerrilha do Araguaia]. A invisibilidade era tanta que me deu a certeza de que meu lugar é na periferia.”
Quarenta e sete anos após ingressar no curso de Filosofia, Adenilde recebeu o título de doutora Honoris Causa pela Universidade. O ato representou a coroação de uma caminhada iniciada no final dos anos 60 em busca de uma comunidade mais digna, em que as pessoas pudessem ser donas de si. “A UFJF mostrou que nós poderíamos, enquanto mulheres do bairro Santa Cândida, conquistar uma vida melhor para os moradores e para nossas crianças. O aprendizado que trouxemos da Universidade foi útil para analisarmos a nossa realidade, para termos segurança e para buscarmos as melhorias que precisávamos.”
Contemporâneo de Adenilde na UFJF, José Antônio Lages também foi aluno de Filosofia entre 1974 e 1977, coincidindo com o período da Ditadura Militar, e lembra que o curso ainda era realizado no antigo Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL). “Havia todo um um cerceamento da liberdade de manifestação, de mobilização, e resistimos contra a ditadura. Eu, inclusive, fiz parte do movimento estudantil. Na época, éramos ligados a um grupo mais afinado com o posicionamento da Igreja Católica, então, tínhamos os embates de manifestações. Foi um período de muita resistência e eu cheguei a ser eleito presidente do Diretório Acadêmico (DA) da Filosofia, do ICHL”, relembra Lages.
Interessado pelas questões relacionadas a representatividade estudantil, em meados de 1976, compôs uma das chapas para o Diretório Central dos Estudantes (DCE) que era apoiada por forças progressistas. “Perdemos a eleição. Foi a primeira vez na UFJF que uma chapa não ligada aos movimentos de esquerda se elegeu. O outro concorrente se identificava com a direita.”
Em relação às desigualdades de raça, classe e gênero, Lages conta que já havia pessoas de camadas populares compondo a Universidade nos anos de 1970, mas que a comunidade negra possuía pouca representatividade. “A questão de gênero, eu acho que, pelo menos na área de humanas, havia mais mulheres do que homens. Mas, a discussão política desse tema, relacionada ao direito das minorias, não era uma questão tão evidente. Acho que toda a luta política da época, que era grande, principalmente do movimento estudantil, se centrava ‘abaixo à ditadura’ e pela defesa das liberdades democráticas.”
Arte na censura
O professor aposentado da Faculdade de Comunicação José Luiz Ribeiro relembra sua trajetória ainda como estudante, enquanto presidente do Diretório Acadêmico Tristão de Ataíde (DATA) – que posteriormente veio a ganhar o nome do jornalista Vladimir Herzog – e, posteriormente, como professor e diretor de teatro do Grupo Divulgação. “É uma história de luta. Nós tínhamos todas as dificuldades de censura, mas aprendemos a ir pra frente e conseguimos fazer inúmeros espetáculos.”
Diante de um cenário de cerceamento, o Grupo Divulgação surge em meio à ditadura, em 1966, formada por membros da antiga Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile), e liderado por Ribeiro. As ações são desenvolvidas desde àquela época, mas somente a partir de 1971, passaram a serem realizadas no Fórum da Cultura.
“O Grupo Divulgação nasce como um centro de estudos teatrais e esse foi o primeiro passo que demos para crescer, inclusive dentro da UFJF. Com esse Centro de Estudos, tivemos uma quantidade enorme da apresentação de Clássicos e dessa forma revertemos os problemas impostos pelo Regime Militar.” Ribeiro relembra as peças do grupo que sofreram com a censura: “‘Diário de um Louco’ foi proibido na hora da estreia, ‘Matar Sade’ veio com tantos cortes que ficou impossível montar e ‘O Santo Inquérito’ sumiu na burocracia”.
Som aberto
Ainda na área cultural, o Som Aberto foi um movimento importante para refletir a cultura local na década de 1970. Reflexo de manifestações que lutavam por liberdade, criatividade e contestação, foi uma atividade que transformou a vida da comunidade acadêmica e dos moradores de Juiz de Fora. Além de apresentações musicais, inspirava e revelava talentos das mais diversas áreas como na literatura, na dança, no teatro e na pintura.
Idealizada por um grupo de universitários liderados pelo então presidente do DCE, Ivan Barbosa, a primeira edição aconteceu em uma manhã de outubro de 1974, com apresentação da banda A Pá no anfiteatro do antigo Instituto de Ciências Biológicas e Geociências (ICBG). O sucesso foi tanto, que os eventos seguintes reuniram não apenas os alunos da UFJF, mas secundaristas que queriam participar de um movimento cultural promissor em um tempo de opções limitadas pela força da ditadura na cidade-sede da 4ª Região Militar.
Formado pela faculdade de Medicina no final dos anos 70, Márcio Itaboray aponta que fazia parte de um grupo musical conhecido como “A Pá”, o qual ele considera um dos mais importantes que foram criados na UFJF. “Quando criamos o Som Aberto apareceram várias pessoas para tocar naquela época, entre eles, os músicos Márcio Hallack e Estêvão Teixeira. Enfim, era um movimento interessante, pois havia poesia, literatura de cordel, trazíamos apresentações de Ballet, concerto de harpa e cravo. Também trouxemos cantores como a Sueli Costa e João Bosco que, no início da carreira, vinham e comiam no Restaurante Universitário.”
Entre as diversas experiências, Itaboray também lembra sobre o momento em que a UFJF comprou uma aparelhagem de som e sobre o período em que as apresentações do grupo começaram a ser gravadas. “Isso nos deu um pouco de trabalho porque fomos chamados para depor. Mas, ainda assim, era um movimento em que subíamos para o campus, pela Avenida Gentil Forn, e tocávamos das 10h às 13h, depois continuávamos pelos bairros vizinhos. Em 2016, uma atitude interessante, foi quando a Universidade reviveu o Som Aberto e o A Pá se apresentou na concha acústica”, aponta.
A agente cultura e lazer, atualmente funcionária terceirizada da UFJF, Kátia Dias, conta que foi estudante da Instituição nos anos de 1970. A relação com o Som Aberto, que começou por ser uma simples fã nos anfiteatros do ICBG, evoluiu quando atuou como repórter do Diário Mercantil atenta aos caminhos da cultura na cidade e no Campus durante os anos 1970.
“O projeto surgiu espontaneamente e era a voz dos universitários em prol da liberdade e da democracia. Os grupos ‘A Pá’ e ‘Coisa e Tal’ inspiravam os estudantes ávidos por expressar uma poética própria, seja na música ou na literatura, que também se destacava naqueles momentos tão especiais. Foi com base nessa efervescência que a Pró-reitoria de Cultura (Procult) revisitou o Som Aberto em 2016, com uma proposta mais ampla e abrangente, embora igualmente fascinante e bem-sucedida, ocupando a Praça Cívica”, recorda Kátia.
Metáforas
Atualmente exercendo o cargo de diretor de Imagem Institucional da UFJF, o professor decano da Faculdade de Comunicação, Márcio de Oliveira Guerra, narra como era ser um estudante de jornalismo nos anos de 1970. “Foi um período complicado, pois os nossos professores tinham muito receio sobre o que poderia ser dito dentro da sala de aula. Me lembro perfeitamente que o professor de Teoria da Comunicação, José Luiz Ribeiro, usava várias metáforas para falar com a gente.”
Segundo Guerra, essas metáforas eram entendidas por todos os estudantes porque o coletivo convivia com a incerteza da existência de um espião do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). “Na nossa turma tinha um, mas como eles não tinham discernimento, o cara era mais velho e destoava completamente de todos nós e ficava muito constrangido. Era muito difícil conviver com essa situação de incerteza, de insegurança, de medo que poderia ser dito, de perguntar, mas a Comunicação sempre soube ser criativa para vencer esse tipo de autoritarismo.”
Sufoco
Segundo o relato do técnico-administrativo em Educação (TAE) aposentado, Antônio José Cedrola, ao projeto Memória em 14 de agosto de 2008, a administração da UFJF conviveu bem diante do cenário de ditadura e no período não foi aberto nenhum inquérito. No entanto, alguns fatos merecem registro. Entre eles, no reitorado de Gilson Salomão, os professores Luiz Flávio Rainho e Itamar Bonfati desapareceram e o irmão de Rainho, Fernando, procurou o reitor para expor a situação. “O doutor Gilson saiu do campus e foi procurá-los. Não havia nenhum registro das autoridades competentes, mas havia um órgão extra que não era da Polícia Civil, nem do Quartel General (QG). O general estranhou, mas apurou o caso e descobriu a atuação desse órgão e pediu que os professores fossem soltos.”
Outra memória de Cedrola está relacionada a uma das Olímpiadas Universitárias ocorrida entre os anos de 1970 e 1971. Uma partida de tênis seria decisiva para dar a medalha de ouro para a faculdade de Engenharia ou para a de Medicina. Considerando que o futuro engenheiro teria maiores possibilidades de vencer a partida, outro estudante de medicina, chamado Cláudio Martins de Miranda Chaves, pegou o competidor, colocou um capuz no rosto dele, o jogou dentro de um fusca e o levou embora.
“Um cara da padaria viu aquela cena e ligou para o QG dizendo que um sujeito tinha sido sequestrado. O pessoal da repressão passou a mão no Cláudio alegando sequestro, mas o ato não tinha nada de político, era apenas molecagem de estudante. Mas, ainda assim, o enquadraram na Lei de Segurança Nacional. Para resolver a situação, foi necessário que o reitor da época interviesse, e com a ajuda do pró-reitor de Ensinos Fundamentais, professor Acerto Santin, foram ao promotor militar e explicaram a situação.”
UFJF 60 anos
Para celebrar a data, a Diretoria de Imagem Institucional traz a proposta de recordar os mais diversos momentos vividos pela comunidade acadêmica ao longo dos 60 anos. A iniciativa consiste em envolver as pessoas da comunidade para compartilharem suas recordações pelo e-mail ufjf60@comunicacao.ufjf.br ou pelas redes sociais usando a #UFJF60anos.
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*Retificado às 18h25 do dia 21/10/2020, o primeiro parágrafo que trata sobre José Antônio Lages