Na segunda publicação da série Ações Afirmativas, desenvolvida em parceria pelas diretorias de Ações Afirmativas (Diaaf) e Imagem Institucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),  a entrevistada é a professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Georgina Helena Lima Nunes. O tema é a “A democratização do ensino superior promovida pela Lei de Cotas”.

Professora Georgina Nunes: “O Movimento Negro viabiliza o ingresso de uma ampla parcela da população brasileira, inclusive não negros, a esse espaço público e de direito de todos ” (Foto: arquivo pessoal)

A pesquisadora é educadora física, mestra em Educação pela UFPel e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nunes também coordena o Observatório Interinstitucional em Ações Afirmativas, que reúne quatro instituições federais de ensino da Região Sul: UFPel, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul), Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e Universidade Federal do Pampa (UniPampa). 

A série Ações Afirmativas, cujas publicações são sempre realizadas às quarta-feiras, no Portal da UFJF,  tem por objetivo destacar a relevância das cotas para a sociedade brasileira. Essas políticas públicas corrigem desigualdades acumuladas ao longo do tempo, revertendo representações negativas e combatendo preconceitos e discriminações. 

“É importante destacar que a implementação das ações afirmativas no Brasil está estreitamente ligada à atuação do Movimento Social Negro”, ressalta Nunes.

Confira a entrevista na íntegra:

Portal da UFJF – Comente, por favor, a relevância da Lei 12.711/2012, a “Lei de Cotas”, para a democratização do ensino superior público federal.
Georgina Nunes – A lei de cotas traz inúmeras contribuições para a  democratização do ensino superior, algumas de caráter imediato e outras a longo prazo. Primeiro, se constitui um projeto de sociedade cunhado pelo Movimento Negro que viabiliza o ingresso de uma ampla parcela da população brasileira, inclusive não negros/as e indígenas, a população branca,  a esse espaço público e de direito de todos os cidadãos/ãs.

“É preciso rever o que autoritariamente estava posto, ou seja, toda uma rotina administrativa, pedagógica, metodológica e inclusive epistêmica, que forjavam um sujeito único como ‘perfil’ de estudante da universidade pública”

O Movimento Negro tem sido incisivo no combate ao racismo e enseja-se que a presença de grupos historicamente violentados possam realizar uma abertura para tal enfrentamento em espaços onde o mesmo está institucionalmente implantado, a Universidade. Segundo, a democratização não se viabiliza apenas no acesso, mas, também, na forma como tais sujeitos demandam formas de acolhimento. Nesse sentido, é preciso rever o que autoritariamente estava posto, ou seja, toda uma rotina administrativa, pedagógica, metodológica e inclusive epistêmica, que forjavam um/a sujeito/a único/a como “perfil”de estudante da universidade pública. Tais presenças , corporalmente, questionam a hegemonia branca de uma universidade. Para tal questionamento, ainda  não se sabe, em âmbito nacional, quais têm sido as respostas. Com um racismo institucional presente nas estruturas da sociedade e, consequentemente, também na  universidade, acredita-se que as mudanças serão processuais. Todavia, precisam urgentemente ocorrer. Dentre muitos desafios, estão a adoção de currículo, enquanto relação social que se incorpora sob a forma de escolha de conteúdos que  interseccionem  questões de raça/etnia, gênero, classe social e sexualidades; revisão de espaços de convivência e relação com as culturas locais e ingressantes; organização arquitetônica que também denota relações de poder;  gestão de (des)afetos no interior da comunidade acadêmica alimentada por hierarquias instituídas;  intencionalidades didático-pedagógicas coerentes; reorganização de sentidos de burocracia. Enfim, a mudança curricular da universidade incide diretamente  na clássica relação saber/poder que até hoje tem privilegiado a uma minoria. 

Portal da UFJF – Fale-nos, por favor, acerca do perfil dos graduandos antes e depois da adoção das ações afirmativas.
Georgina Nunes – Não gostaria de falar em “perfil”, mas sim em presenças que constituem uma diversidade de significados, inclusive que rompe as lógicas do próprio “perfil”. A história mostra que o processo colonial homogeneizou as populações africanas em “negras” e nisso se perde o horizonte da riqueza cultural que cada grupamento étnico poderia contribuir para a humanidade e processos identitários que não se justificassem para a aniquilação do outro/a.  O mesmo ocorre no que tange aos povos originários que  foram restringidos à denominação de “índios”. Diria que, ainda timidamente, outros corpos, histórias, desafios circulam nesse espaço… Circulam individualmente e coletivamente. Àqueles/as que conseguem vencer as barreiras escolares e ideológicas impostas desde os primeiros anos de socialização escolar adentram a universidade com as lutas e reivindicações de seus grupos sem que necessariamente sejam ativistas.

“A história mostra que o processo colonial homogeneizou as populações africanas em “negras” e nisso se perde o horizonte da riqueza cultural que cada grupamento étnico poderia contribuir para a humanidade”

Suas presenças são fruto, memória e presentificação de um passado e ainda de um devir. Esse modelo de universidade necessita ser refundado a partir de conhecimentos historicamente negligenciados e que podem ser alternativos juntos aos já presentes para soluções locais e globais. Afinal, frente a um conjunto de desigualdades sociais existentes, a quem tem servido o conhecimento científico?

Portal da UFJF – A atuação do Movimento Social Negro foi fundamental para a consolidação da política de cotas no país. Conte-nos, por favor, quais momentos foram decisivos, na sua avaliação, para que a reivindicação tivesse êxito.    
Georgina Nunes – O Movimento Social Negro tem sido educador, propositivo e revolucionário em todos os tempos.  Desafiando a agência não negra e, ainda assim, projetando uma sociedade que não reedite sistemas de segregação. O Movimento Social Negro traz nas suas práticas, formas genuínas de aquilombamentos que reorganizam sensos de viver coletivamente, em partilha, numa relação de diálogo com um universo que não se esgota na materialidade,  que o capitalismo tão bem manipula sob a forma de estímulo a produtos na ordem da mercadoria,  na ordem das subjetividades  que  o ser  consumidor estimula.  A existência da hegemonia capitalista, patriarcal e racista é  uma existência  suprimida das qualidades do “simples”, do diverso, da conexão com espiritualidades, com modos de vida cuja estética da existência é potente, principalmente,  porque  é resistente às ameaças contínuas de genocídios, estatalmente, subsidiados.

“O Movimento Social Negro tem sido educador, propositivo e revolucionário em todos os tempos.  Desafiando a agência não negra e, ainda assim, projetando uma sociedade que não reedite sistemas de segregação”

O Movimento Negro  historicamente demanda as políticas, as aprova pela  mobilização  social e permanece fazendo o controle, o apoio e a denúncia para que as mesmas se efetivem. Todos os momentos para nós, negros/as são decisivos. Viver , a cada dia, é uma vitória. O racismo se transmuta e nossas resistências/sapiências também sob a forma de um conjunto de experiências que se complementam… nossa luta é ancestral!

Portal da UFJF –  Há alguma questão a acrescentar?
Georgina Nunes – Não.

Saiba mais:

“As questões legais e a política de ações afirmativas”

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