Por muito tempo, a mulher foi considerada mero acessório do homem, posse do pai ou do marido. Não podiam participar da vida política nem ingressar em universidades. Com movimentos como o feminismo e o sufragismo, mulheres ganharam cada vez mais espaço em vários ramos da sociedade. Muitos diriam que hoje já não existem mais diferenças no tratamento entre homens e mulheres. Porém, resquícios deste cenário ainda perduram no contexto atual. Apesar de terem os mesmos direitos assegurados pela Constituição Federal, o serviço doméstico e o cuidado dos filhos ainda são vistos como papéis femininos. Muitas mulheres enfrentam uma jornada dupla diariamente, trabalhando fora e sendo as principais responsáveis pela casa. 

Produção científica durante o isolamento social

Um estudo realizado na Universidade de Toronto no Canadá, sugere que, em todas as disciplinas, a taxa de publicação de mulheres caiu em relação à dos homens em meio à pandemia de Covid-19. Uma pesquisa da Universidade de Stanford mostra que os acadêmicos do sexo masculino têm mais chances de ter uma parceira que não trabalha fora de casa, já as suas colegas do sexo feminino, especialmente as das ciências naturais, têm mais chances de ter um parceiro que também seja acadêmico. Mesmo naquelas residências em que ambos são acadêmicos, o estudo mostra que as mulheres realizam mais trabalho doméstico do que os homens; o mesmo se aplica aos cuidados infantis.

De acordo com dados reunidos por reportagem publicada na Nature, durante a pandemia, é mais provável que as mulheres sejam as responsáveis por cuidar de parentes doentes. Além disso, o fenômeno da baixa produtividade de pesquisadoras durante o isolamento social é mais observado em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, porque as mulheres tendem a ter mais filhos nesses países. Também destaca que professoras, em média, assumem mais responsabilidades pela educação, de modo que a mudança repentina para o ensino on-line – e os ajustes curriculares necessários – afeta desproporcionalmente as mulheres. 

“Para trabalhar com pesquisa precisamos de muitas horas de trabalho, que demandam silêncio e concentração. Além de uma carga grande de planejamento de ações e redação de textos e documentos”, reforça Priscilla de Faria.

O censo de grupos de pesquisa do CNPq mostra que desde 2016 o número de mulheres na ciência se equiparou ao de homens. “Nele vemos que o número de mulheres liderando grupos de pesquisa cadastrados é igual aos de homens. Em condições desiguais atingimos esse patamar. Mas agora é preciso rever a forma de contabilizar o que chamamos de “produtividade”, pois a desigualdade de condições de trabalho será mais evidente com a pandemia”, revela Priscila de Faria Pinto, pesquisadora do Departamento de Bioquímica do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). Priscila tem três filhos, dois adolescentes e uma criança de 4 anos.

De acordo com a pesquisadora, conciliar o “fazer ciência” com a maternidade já não era uma tarefa fácil. “Para trabalhar com pesquisa precisamos de muitas horas de trabalho que demandam silêncio e concentração. Além das atividades docentes regulares presenciais (aulas teóricas, práticas, orientações, reuniões), temos uma carga grande de planejamento de ações e redação de textos e documentos.” Ela conta que isso tem sido uma tarefa ainda mais delicada em um ambiente cheio de estímulos externos. Além disso, o espaço de tempo reservado para atividades de trabalho se mistura com todas as funções domésticas. “Os filhos requerem vários cuidados e atenção. Acompanhamos muitas atividades deles como escola, atividades extraclasse, alimentação, lazer. Mas os horários não conseguem ficar mais definidos e temos que contar com a colaboração e compreensão de todos. Uns dias são melhores, outros piores.”

Maternidade e ciência 

Com o intuito de levantar a discussão sobre a maternidade e paternidade dentro do universo da ciência do Brasil, foi criado em 2018 o grupo “Parent in Science”. O projeto foi idealizado pela professora Fernanda Staniscuaski da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e conta com pesquisadores de diversos centros de pesquisa do país. Representando a UFJF, a professora Zélia Ludwig do Departamento de Física do Instituto de Ciências Exatas (ICE) foi convidada com o objetivo de levar uma visão além do gênero e da maternidade: a racial. “Sou mãe, sou cientista e mulher negra. O número de mulheres negras que chegam à universidade é pequeno. Por outro lado, mulheres negras que são mães fazem parte de um grupo grande, em sua maioria excluídas dos espaços de poder e das oportunidades na vida. Procuro trazer luz para essas discussões”, esclarece Zélia. 

“Eu sou experimental. Tivemos que parar as nossas pesquisas. E os prazos batendo na nossa porta. Estamos nos reinventamos a cada dia. Trabalhamos em grupo, formando rede de colaboradores a distância”, aponta Zélia.

Durante a pandemia o grupo percebeu a necessidade de entender como o trabalho remoto e o isolamento social estão modificando a vida dos pesquisadores e quais são as limitações dentro do cenário científico. Além disso, também focam nos grupos de pesquisadores que estão sendo mais afetados e questionam se ações a curto e longo prazos podem ser planejadas. Para isso, o grupo realizou um levantamento com participantes de pós-graduação, pós-doutorandos e docentes, com ou sem filhos. De acordo com os resultados, apenas 10% das pesquisadoras com filhos declararam ter tempo para continuar projetos de pesquisa em casa durante o isolamento. Em comparação, entre os homens em mesma situação, a porcentagem é maior: 17,4%. Entre os pesquisadores que não têm filhos, 36% dos homens afirmam conseguir se dedicar à pesquisa, contra 32% de mulheres que vivem o mesmo cenário. 

“O período de quarentena foi e está sendo complicado. Eu sou experimental. Tivemos que parar as nossas pesquisas. E os prazos batendo na nossa porta. Estamos nos reinventamos a cada dia. Trabalhamos em grupo, formando rede de colaboradores a distância”, aponta Zélia. De acordo com a pesquisadora, quando a pandemia passar, deve-se investir em ações que permitam a inserção e a permanência das mulheres nas universidades e em políticas públicas para que mães possam trabalhar sabendo que seus filhos estão em segurança

Adaptação ao cenário

Apesar de todas as desigualdades, para continuar produzindo as pesquisadores estão tendo que encontrar formas de se adaptarem. A professora Priscila Capriles do Departamento de Ciência da Computação destaca a importância da comunicação com os outros moradores da casa para que todos auxiliem nas atividades domésticas. “É importante ser sincero. Conversar com seu parceiro e dividir as tarefas. Tem que ser algo que não seja sofrível pra ninguém. É um momento de não se cobrar muito. Temos que saber que algumas coisas não irão ficar como antes. Temos que aprender a ser mais tolerantes com as falhas e com os erros”. 

De acordo com Zélia Ludwig, este é um momento para cultivar a colaboração com outras pesquisadoras. “Vou fazendo o que posso. Trabalho com outros colaboradores (todas mães) e estamos escrevendo uns capítulos de livro. Tem sido puxado todas. Uma incentiva a outra. Vamos arrastando nessa colaboração fazendo o possível. Tenho conseguido avanços em função de uma rede de colaboradores”, esclarece. A pesquisadora aponta que uma das formas de lidar com esse cenário seria por meio da extensão de prazos.

“É importante conversar com o parceiro e dividir as tarefas, para que não seja sofrível pra ninguém. Temos que aprender a ser mais tolerantes com as falhas e com os erros”, reflete Priscila. 

Para Priscilla de Faria Pinto, uma redução das exigências sobre a produtividade seria bem-vinda. “Uma maior compreensão das dificuldades que o período impõe pode ajudar a reduzir as perdas. São tempos atípicos e demandam um olhar diferenciado”, expressa. 

“Essa sobrecarga é muito anterior a pandemia”

A pesquisadora Joana Machado da Faculdade de Direito da UFJF e integrante do Coletivo Marielle Franco – Mulheres UFJF afirma que a sobrecarga – grande desafio à produção científica das mulheres – é muito anterior à pandemia, ainda que tenha sido ampliada por ela. “Em um cenário de crianças 24h por dia em casa, sem escola; de eventual interrupção de rede de apoio, seja ela familiar (rede que em geral sobrecarrega outras mulheres da família, especialmente avós), ou rede contratada (trabalho doméstico precarizado, que novamente sobrecarrega outras mulheres, especialmente mulheres negras); há inevitável impacto nos arranjos domésticos”. Porém, destaca que “isso não necessariamente passa por uma redistribuição de trabalhos mais equilibrada entre homens e mulheres, o que, no caso de uma pesquisadora, também repercute sobre a sua produção científica”, explica.

“É necessário que se questione o modelo de acumulação que alimenta essa cadeia de exploração e de opressões entre a própria classe trabalhadora, superar o modelo que prioriza o lucro à reprodução da vida humana”, conclui Joana.

Segundo a Joana esse cenário é explicado pela Teoria da Reprodução Social. A sobrecarga diz respeito principalmente ao modo pelo qual a sociedade capitalista organiza o trabalho e como historicamente essa organização sobrepesa de forma diferenciada determinados grupos de pessoas, de acordo com marcadores de gênero, de raça, status de cidadania e de nacionalidade. “Sem que se durma, que se coma, que se tenha saúde integral não se produz classe trabalhadora saudável, apta, estável. Sem reprodução da vida humana (gestar, nutrir, educar) não há também o futuro dessa força de trabalho. Mas sob a lógica de acumulação capitalista importa esgotar ao máximo essa força de trabalho, reduzindo-lhe o custo reprodutivo”, esclarece. 

Desse modo, Joana expressa que para que a produção científica feminina, no contexto da pandemia, e para além dele, encontre menos barreiras, não basta enfrentar as desigualdades de gênero somente no ambiente doméstico e de trabalho. “É necessário que se questione o modelo de acumulação que alimenta essa cadeia de exploração e de opressões entre a própria classe trabalhadora, superar o modelo que prioriza o lucro à reprodução da vida humana”, conclui.