Em entrevista ao portal da UFJF, o professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), Aripuanã Watanabe, explica a estrutura do coronavírus, como ele é transmitido, qual o passo a passo da atuação do mesmo no organismo humano e quais são, até o presente momento, os caminhos para o tratamento da Covid-19. O pesquisador é especialista em Virologia, atuando principalmente na área de vírus respiratórios e diagnóstico viral, e é docente vinculado ao Departamento de Parasitologia, Microbiologia e Imunologia da UFJF.
UFJF: Como se dá a transmissão do novo coronavírus?
ARIPUANÃ WATANABE: O vírus 2019-nCoV é transmitido de pessoa para pessoa por meio de secreções expulsas da boca e nariz durante a fala, tosse ou espirro. Quando um indivíduo contaminado espirra ou tosse sem proteção, ou nas mãos, essas gotículas infectam superfícies ou se propagam no ar. Por isso o distanciamento é essencial. Pessoas sadias podem se contaminar se estiverem próximas desses doentes, ou se tocarem as mesmas superfícies e levarem as mãos na boca, no nariz ou nos olhos.
UFJF: O que são os vírus? Como funcionam?
AW: Os vírus são umas das estruturas mais simples que existem. Mesmo assim, possuem mecanismos complexos para replicação e manutenção na natureza. Todos os vírus têm um invólucro de proteína, onde, dentro, encontra-se o ácido nucléico (formado por DNA ou RNA). Alguns vírus tem uma invólucro extra que funciona como a parede de uma célula, chamada membrana bilipídica, formada por lipídios e, eventualmente, algumas proteínas. O novo coronavírus possui esse tipo de envelope viral, que é adquirido quando deixa a célula no processo de replicação.
Os vírus possuem algumas proteínas em sua superfície que reconhecem as proteínas das células hospedeiras. No caso do novo coronavírus, a proteína do vírus, denominada Spike ou, simplesmente, S, reconhece uma proteína chamada Enzima Conversora de Angiotensina do tipo 2 (ACE-2), presente nas células do trato respiratório, que serve como um receptor para o vírus. Por meio desse receptor, ele invade a célula e injeta seu ácido nucleico (RNA).
O que o vírus faz é sequestrar a maquinaria celular da célula: a partir desse momento, ela deixa de trabalhar para sua sobrevivência e passa a multiplicar as fitas de RNA e produzir as proteínas virais.
A superfície do vírus é coberta de estruturas que lembram espinhos de proteína e ajudam o parasita a ligar-se às células do hospedeiro. Se o espinho não “combinar” com os receptores das células, ele não consegue penetrar na célula e reproduzir-se, e a infecção é mal sucedida. Era o que acontecia com os humanos em relação ao coronavírus até então. Mas as mutações mudaram as proteínas dos espinhos, que acabaram tornando-se compatíveis com as nossas células.
O que o vírus faz é sequestrar a maquinaria celular da célula: a partir desse momento, ela deixa de trabalhar para sua sobrevivência e passa a multiplicar as fitas de RNA e produzir as proteínas virais. Além da proteína S, o 2019-nCoV possui as proteínas E, M e N. A proteína E está presente no envelope viral, atuando na montagem do vírus. Já a proteína M, inserida na bicamada lipídica, exerce função estrutural e participa, também, da replicação viral. Por fim, a proteína N funciona como uma capa, envolvendo o RNA; ela está localizada no nucleocapsídeo.
Ao final do processo de replicação, ácidos nucleicos e proteínas são juntadas dentro da célula, formando novas partículas virais, que acabam saindo dessa célula e repetindo o processo inicial. Diretamente ou indiretamente, essa célula vai morrer.
UFJF: Qual o passo a passo do coronavírus no organismo humano?
AW: Já no organismo, o novo coronavírus entra em contato com células do trato respiratório superior. Esse contato causa, inicialmente, uma infecção nas vias aéreas superiores, o que, normalmente, causa febre, dor de garganta e tosse. Esses sintomas são reflexos do sistema imunológico na tentativa de combater a infecção.
Após o contato com o trato respiratório superior, o novo coronavírus pode acabar progredindo para o trato respiratório inferior, causando mais problemas. Isso acontece, normalmente, depois de três a cinco dias, quando pode surgir falta de ar. Esse é um sinal de que o vírus está multiplicando nos pulmões e causando danos teciduais. A falta de ar é um sinal de gravidade da doença. Por isso, esse é o momento em que as autoridades de saúde recomendam a procura de atendimento hospitalar.
A falta de ar é um sinal de gravidade da doença. Por isso, esse é o momento em que as autoridades de saúde recomendam a procura de atendimento hospitalar.
UFJF: Por que o vírus atacam as células do respiratório superior?
AW: O vírus precisa encontrar uma célula que possua características que permitam sua multiplicação genética e possam produzir suas proteínas. Essas células devem agir de forma passiva ao vírus, não reagindo agressivamente ao seu contato. É uma estratégia evolutiva do próprio vírus. O novo coronavírus evoluiu e acabou adaptando-se para infectar as células do trato respiratório. Provavelmente, ao longo da evolução, ele testou quais células eram melhores para que pudesse se multiplicar. Quando encontrou essa célula, havia uma capacidade evolutiva e, a partir daí, ele seguiu esse caminho.
UFJF: O vírus pode se espalhar para outros locais além do pulmão?
AW: Alguns estudos internacionais relatam o encontro do novo coronavírus no sangue. Isso pode significar que ele conseguiu escapar do pulmão e está indo ao encontro de outros órgãos. Essa migração não é muito comum, mas é possível: células com o receptor ACE-2 podem ser encontradas em outros locais, como no coração, por exemplo.
UFJF: Quais são os mecanismos de combate ao coronavírus que o corpo humano possui?
AW: Nosso sistema imunológico possui duas linhas de defesa: a resposta imune inata e a resposta imune adaptativa. A resposta imune inata é a primeira linha de defesa do organismo. Ela age em poucas horas, quando o organismo percebe que há algo de errado acontecendo. Esse tipo de resposta não é específico para cada tipo de agressão: são substâncias químicas e células que tentam matar indiscriminadamente qualquer agente infeccioso que penetre o organismo, como bactérias, fungos, protistas e, como nesse caso, vírus. Causador da Covid-19, o novo coronavírus consegue transpor a resposta imune inata, causando a doença.
A reação do organismo à doença é muito individual. O sistema imunológico tem mecanismos incomuns entre todos os seres humanos – como uma impressão digital.
Em seguida, entra em ação a resposta imune adaptativa, mecanismos de defesa específicos que trabalham na produção de anticorpos. Entretanto, ela demora um pouco para, efetivamente, proteger o nosso organismo. Os anticorpos são formados a partir de antígenos que estão presentes nos envoltórios dos microorganismos e só combatem esse antígeno específico. Esses anticorpos, normalmente, são memorizados pelo sistema imunológico, que age mais rapidamente quando entra em contato com um antígeno já conhecido. No caso do novo coronavírus, por ser um vírus novo, nosso organismo não possui nenhum mecanismo de defesa residual contra ele, ou seja, não reconhece o seu antígeno e precisa de produzir anticorpos específicos contra ele, o que faz com que o tempo de resposta seja ainda maior.
A reação do organismo à doença é muito individual. O sistema imunológico tem mecanismos incomuns entre todos os seres humanos – como uma impressão digital. As pessoas que conseguem superar a doença, provavelmente, possuem um sistema imune mais bem preparado ou com maior facilidade para o combate para debelar essa infecção. Tudo depende de como o organismo vai reagir à doença enquanto forma sua resposta imune adaptativa, ou seja, produz seus anticorpos contra o vírus.
UFJF: Por que isso é mais difícil entre os grupos de risco?
AW: De forma geral, os doentes crônicos têm uma predisposição maior a agravar as infecções respiratórias virais, logo, não é uma exclusividade do novo coronavírus. Tanto é que os portadores dessas comorbidades, bem como os idosos, que também estão no grupo de risco da Covid-19, estão entre os contemplados na vacinação contra a gripe, por exemplo, que combate os vírus influenza H1N1 e H3N2.
Dados preliminares de alguns estudos também mostram que hipertensos, diabéticos e alguns cardiopatas possuem uma expressão maior do receptor ACE-2, o que facilitaria a entrada desse novo vírus nas células das pessoas.
Já entre os idosos, a infecção é mais suscetível graças a características do sistema imunológico, que tornam-se mais deficientes e com dificuldades de respostas com o passar da idade – o fenômeno chamado senescência imune. Essas pessoas também possuem pulmões e mucosas mais frágeis, o que os tornam mais vulneráveis a doenças virais.
UFJF: O que acontece nos casos fatais?
Estudos mostram que o novo coronavírus tem um desenvolvimento para agravamento muito rápido.
AW: Como explicado anteriormente, tudo depende do sistema imunológico do indivíduo infectado. Por isso, não dá para entender exatamente o motivo do porquê, em alguns casos, uma pessoa saudável morra e outra, com a saúde mais debilitada, seja curada da mesma doença. Aqueles que conseguem debelar a infecção com mais facilidade ou sem grandes problemas provavelmente possuem um sistema imune que, de alguma forma, está mais bem preparado do que o das que vão a óbito.
Quanto aos grupos de risco, é possível tentar explicar por que há mais casos fatais. Estudos mostram que o novo coronavírus tem um desenvolvimento para agravamento muito rápido. A média de dias, em casos graves, para o enfermo procurar o hospital é de cinco dias. Entretanto, no sétimo dia essas pessoas costumam precisar ser submetidas a uma unidade de terapia intensiva (UTI), ou seja, apenas dois dias após a hospitalização. Esse curto tempo impossibilita o organismo de conseguir uma resposta eficiente.
Nos idosos, por exemplo, a senescência imune faz com que esses pacientes precisem de quatro a sete dias para começar a produzir anticorpos, sendo que o pico de produção acontece por volta do 15º dia após o contato inicial com o microorganismo. Nesse caso, se o novo coronavírus está provocando internações na UTI em sete dias, não há tempo hábil para que o organismo responda de forma adequada.
Já entre os portadores de doenças crônicas, se comprovado o fato de possuírem maior número de células com receptores ACE-2, isso pode responder a questão. Nesse caso, a carga viral no paciente seria muito alta e o vírus reproduziria mais rapidamente, levando a quadros mais graves.
UFJF: Como deve ser o uso de medicamentos na Covid-19?
AW: Ainda não existem remédios comprovadamente indicados para o tratamento da Covid-19, nem mesmo um antiviral que o mitigue. O que se indica é utilizar medicamentos para amenizar os seus sintomas. Antitérmicos e analgésicos podem ser utilizados para o combate de febres e dores, por exemplo.
Esses remédios não são antivirais, portanto não possuem a capacidade de eliminar um vírus. Ainda assim, qualquer que seja o antiviral, este não será capaz de combater o novo coronavírus. Os medicamentos antivirais combatem vírus específicos, pois atuam para a mitigação dos processos de replicação desses microorganismos. Cada antiviral funciona de forma diferente, atuando contra vírus diferentes: eles podem inibir desde a entrada do vírus até a síntese de proteínas, a replicação do ácido nucleico ou a saída do vírus da célula hospedeira.
Ainda não existem remédios comprovadamente indicados para o tratamento da Covid-19. O que se indica é utilizar medicamentos para amenizar os seus sintomas.
Existe a possibilidade de algum medicamento já existente conseguir diminuir a replicação do novo coronavírus. Essa estratégia está sendo utilizada por diversos pesquisadores, pois seria uma forma mais rápida de combater o vírus. Porém, até o momento, nenhum medicamento se mostrou comprovadamente eficaz. Para que um medicamento possa ser liberado para o tratamento de doentes são necessários estudos clínicos que comprovem a eficácia e, principalmente, a segurança da droga.
UFJF: Existem testes de medicamentos em andamento?
AW: Dois medicamentos específicos para o tratamento da Covid-19 foram descobertos e estão sendo testados por pesquisadores chineses. De acordo com a publicação na revista Science, os fármacos impedem que o vírus se multiplique dentro do corpo humano, bloqueando a enzima protease, que possibilita a multiplicação viral. A Alemanha e a Holanda também já apresentaram pesquisas sobre remédios específicos contra a doença. O medicamento alemão atua contra mesma enzima que os remédios chineses, enquanto o holandês incapacita a proteína S.
Além disso, estão sendo realizados testes com medicamentos indicados para outras doenças para verificar se eles podem ser utilizados para o tratamento da Covid-19. Esses estudos são ainda iniciais, exploratórios, e não validam cientificamente a eficácia do medicamento para o tratamento da doença causada pelo novo coronavírus. Alguns desses remédios, como a cloroquina e a hidroxicloroquina, já estão sendo testadas em humanos, em estudos clínicos. Somente quando finalizados esses estudos, poderão ser indicados com maior segurança – ou descartados, dependendo do resultado – o uso dessas drogas.
Somente quando finalizados esses estudos, poderão ser indicados com maior segurança – ou descartados, dependendo do resultado – o uso dessas drogas.
Acredita-se que a cloroquina e a hidroxicloroquina possam impedir que o vírus libere seu RNA na célula. Quando o vírus acopla à célula, ele cria uma espécie de compartimento membranoso chamado endossomo. A célula, por sua vez, acidifica o interior deste compartimento, o que possibilita a liberação do RNA viral. Acredita-se que essas drogas possam impedir a acidificação do endossomo, consequentemente impossibilitando a liberação do ácido nucleico do vírus.
Outro medicamento estudado, a Ivermectina, atua sobre uma proteína chamada importina, que transporta proteínas do citoplasma da célula até o seu núcleo. Especula-se que o novo coronavírus utiliza essa proteína para levar algumas de suas proteínas para dentro do núcleo celular, contribuindo na replicação viral e reduzindo a resposta imune contra ele. Esse remédio bloqueia a ação da importina, o que impediria a ida das proteínas virais para o núcleo, fazendo com que a replicação não ocorra de forma eficaz.
Já o Remdesivir, medicamento usado para o tratamento do vírus HIV, possui uma ação sobre a polimerase do vírus, enzima que produz novas fitas de RNA a serem usadas como genoma. Se esse medicamento conseguir bloquear essa enzima no novo coronavírus, seria também impedida sua replicação.
UFJF: Por que podem ser observados efeitos adversos no uso desses medicamentos?
AW: Os remédios que estão sendo testados para o tratamento da Covid-19 foram anteriormente estudados para populações específicas, portadoras das comorbidades para as quais são indicados originalmente. Portanto, não é possível afirmar sem a realização de testes se estes medicamentos podem causar efeitos colaterais, principalmente aos grupos de risco da nova doença.
É uma balança muito delicada entre o quão bem o remédio faz e o quão mal ele pode fazer. A cloroquina e a hidroxicloroquina, por exemplo, podem causar alguns problemas cardíacos e, portanto, não devem ser indicadas para cardiopatas. Existem restrições e cuidados a se tomar. Na verdade, apenas o que vai poder responder isso são os grandes estudos clínicos, com milhares de pessoas, onde poderão ser percebidas consequências adversas e a porcentagem de um efeito ou de outro, positivo ou negativo. Esses estudos já estão sendo feitos há algumas semanas; a partir deles, poderão ser definidos com maior segurança o uso ou não desses medicamentos.
UFJF: E quanto ao desenvolvimento de vacinas?
AW: Nas vacinas, não é possível traçar a mesma estratégia dos medicamentos, ou seja, testar aquelas indicadas para outras doenças. A vacina precisa ser desenvolvida especificamente para o vírus. Elas agem imitando uma infecção por meio de um vírus atenuado (modificado para não causar doenças) ou por proteínas virais. Quando o nosso organismo percebe algo de diferente, a resposta imune adaptativa cria anticorpos para aquela “doença”. A ideia é que seja criada uma memória para, quando entrar em contato com o vírus selvagem, o organismo tenha uma resposta mais eficiente e em um período de tempo mais curto.
A vacina precisa ser desenvolvida especificamente para o vírus.
O processo de desenvolvimento de uma vacina para o novo coronavírus está sendo realizado de forma muito mais rápida que o normal. Uma vacina leva em torno de oito a dez anos para ser licenciada para uso na população. Prevê-se que a da Covid-19 leve de 12 a 18 meses. Muito provavelmente, portanto, teremos uma vacina para a doença entre o início e o meio do ano de 2021.