A empregada doméstica Reny Nunes de Melo, que mora no assentamento Fercal, a 26 quilômetros do centro de Brasília, vive um drama que afeta 43% dos domicílios brasileiros: a falta de redes de esgoto. Em períodos de chuva, principalmente, as fossas dos vizinhos transbordam e o esgoto corre em volta da sua casa. Depois de ficar na gaveta por seis anos, o governo lançou, no início deste mês, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) com o objetivo de resolver o problema da falta de acesso a água e esgoto tratados no país. Mas, na avaliação de especialistas, a proposta é irreal e cheia de falhas, o que ameaça o sucesso da meta de universalização dos serviços em 20 anos.
No caso do esgoto, o Plansab promete elevar a cobertura para 92% da população até 2033. Hoje, apenas 57% dos domicílios brasileiros são ligados à rede de esgoto, mas este número inclui as fossas sépticas. No acesso à água tratada, a meta é estender o acesso a 99% da população, em áreas urbanas e rurais, com aporte de R$ 508,5 bilhões. Porém, o plano não informa como o país dará um salto no nível de execução dos investimentos no setor — tradicionalmente baixo. E está baseado em cenários econômicos bem mais otimistas que o atual, com crescimento elevado e inflação baixa.
O investimento total do Plansab para o saneamento foi projetado num cenário em que o Brasil chegará a 2030 com taxa de crescimento de 4% ao ano e inflação de 3,5%. Porém, este ano o Brasil deve crescer só 2,3% e a inflação deve ser de 5,8%.
No cenário traçado pelo governo, os aportes federais pulariam de R$ 7,9 bilhões em 2011 para R$ 13,5 bilhões em 2014 e 2015 e R$ 17,5 bilhões em 2017, totalizando R$ 300 bilhões até o fim do plano. O restante seria complementado por estados, municípios, operadores privados e financiamentos externos.
Meta exige ampliar aportes em 60%
Nos dois cenários mais pessimistas para a economia, o crescimento é estimado em 3% ao ano e a inflação, em 6% ao ano, com investimentos federais de R$ 220 bilhões entre 2014 e 2033. O documento admite que, neste caso, haveria necessidade de aperto monetário para controlar a inflação e dificuldades de implementação de políticas públicas, com retração dos investimentos, mas mantém inalteradas as metas de universalização dos serviços.
— O Plansab é mais um protocolo de intenções do que um planejamento de longo prazo que se propõe, de fato, a atingir a meta de universalizar os serviços. É uma carta de intenção, porque está muito distante da realidade — disse o presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), José Carlos Barbosa.
De acordo com o Plansab, nos próximos cinco anos, o país terá de investir R$ 87,5 bilhões em saneamento, uma média anual de R$ 17,5 bilhões. Entre 2003 e 2011, foram contratados R$ 79,879 bilhões, mas desembolsados R$ 43,448 bilhões, o que equivale a R$ 4,8 bilhões por ano. Mesmo quando se analisam os projetos incluídos no PAC, que têm prioridade, a situação não é diferente: dos R$ 40 bilhões anunciados para o setor, entre 2007 e 2010, o Ministério das Cidades selecionou 1.700 projetos, num total de R$ 35,6 bilhões, mas foram executados somente R$ 9,8 bilhões, contando recursos só da União (média de execução de 31%).
Para especialistas, olhando a evolução da cobertura dos serviços de tratamento de água e esgoto e a média de investimento anual, nos últimos dez anos (entre 2002 e 2012), fica claro que as metas do Plansab não são factíveis. Nesse período, o índice de cobertura do serviço de água tratada subiu 2,4% e foram investidos R$ 28 bilhões, ou seja, foram gastos R$ 12 bilhões para cada ponto percentual a mais na cobertura. O índice está hoje em 84% e, para chegar a uma cobertura de 99%, por exemplo, será preciso investir por ano mais de três vezes o valor médio aplicado na última década, algo em torno de R$ 9 bilhões. Mantido o ritmo atual, o país chegaria a 2030 com cobertura de 88%.
No caso do esgoto, que hoje tem cobertura de 57%, a situação é ainda mais complicada: nos últimos dez anos foram investidos R$ 33 bilhões, ou seja, foram gastos em média R$ 3 bilhões por ano. Para alcançar a meta pretendida, seria preciso ampliar o investimento em mais de 60%. Mantido o ritmo atual, o Brasil chegará a uma cobertura de 76% em 2030. Segundo cálculos da Aesbe, nesse ritmo a universalização levaria 57 anos.
— O cheiro é insuportável e não tem o que fazer. Tem que esperar secar — reclama Reny Melo, que precisa conviver com o esgoto a céu aberto.
Vizinha de Reny no assentamento Fercal, em Brasília, a dona de casa Edna Aquino de Sousa contou que um caminhão jogou brita e pedras em cima da fossa para abafar o mau cheiro. Ela disse que as crianças adoecem com frequência e atribui o problema à falta de rede de esgoto:
— Os meninos adoecem muito. Têm diarreia e virose. Acho que é o esgoto.
Outra crítica ao Plansab é a falta de prioridade para ações destinadas ao tratamento do esgoto, um problema grave no Brasil e de solução onerosa. Estima-se que mais da metade do esgoto produzido no país é jogada diretamente em rios e no mar, poluindo o ambiente e mananciais.
— Isso agrava a escassez hídrica e encarece a conta de água para os consumidores — disse o economista Marcos Thadeu Abicalil, especialista sênior de Água e Saneamento do Banco Mundial.
— O plano apresenta medidas muito amplas e genéricas no sentido de orientar a efetiva execução dos investimentos necessários à universalização do saneamento no Brasil — observa o economista Gesner Oliveira, sócio da Go Associados e especialista na área.
Para ministério, cenário é factível
O Ministério das Cidades rebateu, em nota, as críticas ao Plansab: “No entendimento técnico do Ministério das Cidades, o plano é real, os cenários trazem uma visão factível e fortalecem o plano. Ademais, o monitoramento e avaliação do plano será permanente e sistemático para que possam ser identificadas possíveis distanciamentos da realidade prevista, de forma a se fazer as correções necessárias”.
Segundo o presidente da Aesbe, o governo precisa deixar claro quanto a União vai aplicar no setor, a fundo perdido, para ajudar estados onde a situação é mais grave e nos quais não há capacidade de endividamento, sobretudo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Fonte: Jornal O Globo, 23.12.2013