Assim como tubulações de água e esgoto ficam ocultas debaixo da terra, o tema do saneamento básico também segue quase invisível na política nacional. As manifestações de junho, ao alijarem-no da pauta de demandas por saúde, educação e segurança, apenas perpetuaram essa miopia tradicional.
E, no entanto, é no campo sanitário que as deficiências do Estado brasileiro se manifestam da forma mais contundente.
Há algo profundamente errado com um governo –com um país– que se contenta em deixar 37% dos domicílios de fora da rede coletora de esgoto, aí consideradas as fossas sépticas ligadas ao sistema. Ainda mais vergonhoso, há no Brasil cerca de 8 milhões de pessoas sem acesso a um mero banheiro.
Verdade que eram 17% em 1995, mas não chega a ser motivo de orgulho cumprir só no século 21 um requisito tão básico de civilização.
No que respeita à água encanada, os 519 mil km da rede distribuidora chegam a 82,4% dos brasileiros –ainda longe da virtual universalização atingida na eletricidade (que alcança quase 99%) e no Ensino Fundamental (97% das crianças de 7 a 14 anos estão na escola).
Sem água potável de confiança e sem destinação segura de dejetos, a população fica sujeita a doenças da pobreza, como diarreia. Não é por acaso que saneamento básico é inerente à ideia de moradia digna.
Houve avanços, por certo. Em 2011, 1,3 milhão de casas foram conectadas à rede coletora de esgotos, um crescimento de 5,6%. Na de água houve 1,4 milhão de novas ligações (mais 3,1%). Mas já se calculou que, no ritmo histórico, a universalização conjunta desses serviços demoraria um século.
As metas do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) são de consecução duvidosa. Prevê-se que, em 2033, 93% dos domicílios de áreas urbanas terão esgotos coletados e tratados. A distribuição universal de água tratada, nas cidades, viria dez anos antes –na zona rural se consideram aceitáveis poços artesianos e fossas sépticas.
Para chegar a isso, todavia, seria preciso investir um total de R$ 508 bilhões nos próximos 20 anos (R$ 298 bilhões de recursos federais e R$ 210 bilhões de outras fontes –privadas, municipais, estaduais). São mais de R$ 25 bilhões por ano. Em 2011, porém, o investimento no setor se limitou a R$ 8,4 bilhões.
No orçamento do Programa de Aceleração do Crescimento para 2014, o saneamento terá de partilhar com os itens drenagem, pavimentação e mobilidade urbana os R$ 7,3 bilhões previstos para a rubrica Cidade Melhor. No monitoramento de obras do PAC, só 625 dos 7.098 empreendimentos sanitários aparecem como concluídos.
O realismo impõe reconhecer que o meio trilhão de reais não se materializará em duas décadas. Constatação deplorável, porque poucas coisas farão mais sentido para o verdadeiro desenvolvimento do país que dotar toda a população de serviços sanitários eficientes.
Internações e mortes por problemas gastrointestinais são mais raras hoje, mas ainda significativas: 462 mil e 2.100 por ano, respectivamente. Estima-se que 25% das internações e 65% das mortes possam ser eliminadas com a universalização de fontes seguras de água.
A Organização Mundial da Saúde afirma que R$ 4 são economizados em serviços de saúde para cada R$ 1 investido em saneamento básico. Além disso, há correlações que não deveriam ser ignoradas: o aproveitamento escolar de crianças onde há saneamento adequado aumenta 30%, e a produtividade do trabalhador, 13%.
É preciso, pois, buscar fontes alternativas de financiamento. A iniciativa privada seria uma opção óbvia, não fosse o caos regulatório que caracteriza o setor, a começar pela superposição de deveres entre as esferas governamentais.
Talvez o mais sensato, de início, seja atacar as ineficiências evidentes no sistema sanitário. Duas saltam à vista: perdas de água tratada e tributação irracional dos serviços.
A cada cem litros de água tratada lançados na rede de distribuição, quase 40 deixam de gerar receita para a operadora do serviço, seja por vazamentos, seja por ligações clandestinas. Se o desperdício caísse pela metade, calcula-se que R$ 37 bilhões seriam carreados para as concessionárias até 2030.
O setor de saneamento, por outro lado, passou a recolher mais tributos a partir de 2002, por força de mudanças na incidência do PIS e da Cofins. As empresas pagam cerca de R$ 2 bilhões anuais, que poderiam ser destinados a investimentos se fossem desoneradas.
Haverá eleições daqui a um ano. Os candidatos a presidente e a governador que não apresentarem propostas concretas para corrigir essas distorções gritantes darão mais uma demonstração de que o problema do saneamento, se depender deles, continuará enterrado. Cabe a seus eleitores impedir que essa forma abjeta de subdesenvolvimento prevaleça.
Fonte: Folha S. Paulo, editorial, 22.9.2013