Racismo através da intolerância religiosa é o tema desta matéria, a segunda da série especial em homenagem à Semana da Consciência Negra (Foto: Tânia Rego/Agência Brasil)

Amor em tempos de cólera é coisa rara. Em épocas que a intolerância se espalha pelos espaços da sociedade, tornando as diferenças mais visíveis que as semelhanças, é fácil deixar de reconhecer no outro um semelhante. Olhando para trás, reconstituindo nossa história, os caminhos e os processos que nos trouxeram até aqui, raro é encontrar algum tempo que não tenha sido de cólera. Alguns mais que outros, porém, figuram como decisivos no surgimento das fissuras que, aos poucos, vão nos afastando.

A Semana da Consciência Negra representa um momento em que relembrar esse passado se mostra urgente, se não para resgatar e celebrar o que nos uniu, então para identificar aquilo que nos separa. E, nessa investigação, encontrar uma rota para superar as fissuras que, permanecendo, continuam a crescer. Este é um dos intuitos desta segunda matéria da série especial em homenagem às comemorações voltadas para a consciência negra.

Preconceito religioso

Se a discriminação racial pode ter vários rostos, no campo religioso ela assume uma face particularmente cruel. Perseguidas desde sua chegada involuntária às terras brasileiras, as religiões africanas sobreviveram apesar dos esforços para suprimi-las. Ainda hoje sofrem com a violência, seja simbólica ou literal.

Foi esse estigma que motivou a professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Sônia Regina Corrêa Lages, a desenvolver a pesquisa “Exu – Luz e Sombras – uma análise psico-junguiana da linha de Exu na Umbanda”, na qual, utilizando das teorias da psicologia, investigou a origem subconsciente desse preconceito.

Perseguidas desde sua chegada involuntária às terras brasileiras, as religiões africanas sobreviveram apesar dos esforços para suprimi-las. Ainda hoje sofrem com a violência, seja simbólica ou literal.

Exu: do endeusamento à demonização

Simbólico para essa discussão, Exu ocupava uma posição de destaque na mitologia de seus fiéis antes que a mesma atravessasse o pacífico e se ramificasse. Com atributos semelhantes ao do deus grego Hermes, era prerrogativa do orixá a comunicação entre homens e divindades. Também eram de seu domínio a transformação das coisas, suas origens e sua fertilização, assim como o sexo.

Na ocasião das expansões marítimas, quando o contato entre os dois povos se estreitou, a natureza da entidade pareceu particularmente ofensiva ao pudor cristão dos europeus. Frequentemente associado a um grande falo, Exu não caiu bem aos estrangeiros e seus conceitos acerca de sexualidade.

Instantaneamente ligado ao mal pela moral católica de então, e por influência desta, o orixá perdeu seu aspecto fálico e ganhou chifres e tridente. Esta construção maniqueísta sobre a divindade permanece até hoje, mesmo em alguns terreiros. Enquanto em alguns templos, como os de influência do espiritismo kardecista, o Exu seja interpretado como uma entidade benéfica, na Umbanda — mais sincrética e receptiva às concepções cristãs de bem e mal — o orixá ainda apresenta uma natureza demonizada.

 A pesquisadora da UFJF, Sônia Lages, utiliza das teorias da psicologia para investigar a origem subconsciente do preconceito, especificamente, com o Exu, entidade ligada à Umbanda (Foto: Tânia Rego/Agência Brasil)

O preconceito através da psicologia

Tendo como foco a interpretação da entidade por essa denominação religiosa, a pesquisadora Sônia Lages observou Exu sob a perspectiva de Carl Gustav Jung, que propõe o conceito de arquétipos. “Existem determinadas formas na psique que estão presentes em todo o tempo e lugar. Estas formas, somente após se tornarem conscientes, é que adquirem um conteúdo. Os arquétipos se referem às experiências humanas e são energias psíquicas representadas através de imagens. Essas imagens chegam na consciência através de símbolos, que são os autênticos agentes de transformação da libido e os elementos indispensáveis para a saúde e sobrevivência psíquica”, explica Sônia.

Sob esta ótica, Exu seria um símbolo associado ao arquétipo “sombra”. Este representa a vida instintiva dos indivíduos, seus desejos e pensamentos não aceitos pela sociedade, muitas vezes desconhecidos por seus próprios donos. “Diz Jung que a sombra é uma parte viva da personalidade, que por isso quer comparecer de alguma forma. Sendo assim, ela fará de tudo para se manifestar, se projetará no mundo através de atitudes irracionais, selvagens, causando sofrimento não só à própria pessoa, mas até mesmo a toda uma coletividade.”

No contexto social brasileiro, o Exu serve como “bode expiatório”. No campo das tensões sociais, a demonização do orixá serve como mais um mecanismo de colonização ideológica

 

Além de símbolo religioso, no contexto social brasileiro, o Exu serve como “bode expiatório”, a partir do que a professora define como um mecanismo de projeção, através do qual indivíduos e coletividades observam no outro características psicológicas consideradas más pela moral hegemônica. Por esse processo, a entidade — concebida em um conjunto de crenças que não compreende o conceito de “diabo” — é demonizada pela mente do europeu colonizador, onde está presente a ideia de inferno e mal personificado.

Como expressão das religiões de matriz africana, essa percepção maniqueísta de Exu acarretam, também, a associação negativa para com seus fiéis. Forte na formação cultural brasileira, o cristianismo perpetuou essa visão até os dias de hoje. No campo das tensões sociais, explica Sônia, a demonização do orixá serve como mais um mecanismo de colonização ideológica: “Exu, como símbolo religioso, pode ser utilizado para a análise da cultura brasileira e das disputas existentes no campo cultural, em que hegemonias portadoras de conhecimentos e crenças consideradas superiores tentam subalternizar, invisibilizar, ou até mesmo destruir, sujeitos, subjetividades e grupos sociais. O bode expiatório é bem fácil de ser reconhecido. Na família ele é a ‘ovelha negra’; na cultura, são os grupos sociais marginalizados.”

Conforme a professora, atualmente, uma grande parcela da população negra não pertence ao campo religioso afro-brasileiro. Apesar disso, Sônia reconhece as religiões de matriz africana como componente basal da identidade negra: “Essas expressões religiosas possuem todo um modo específico de viver, de perceber o mundo, de se relacionar, o que torna singular as comunidades de terreiro. Elas são importantes não apenas para a identidade negra, mas para a identidade nacional. Nós, brasileiros, somos fruto da mistura de vários povos, e a África está fortemente presente em nossa identidade nacional. A defesa da identidade é uma questão política, é a luta pelo reconhecimento identitário, o que é necessário para a defesa dos direitos de um grupo cultural.”

Sônia percebe como fundamental a contribuição acadêmica e sua parceria com os movimentos sociais, representantes destas diversas denominações religiosas e órgãos do Estado. A partir de ações públicas voltadas ao combate das opressões, bem como o desenvolvimento sistemático de pesquisas, os envolvidos auxiliam na construção de legitimidade e visibilidade a manifestações culturais como as próprias religiões afro-brasileiras e, consequentemente, aos grupos sociais que lhes dão origem.

Outras informações:

Conheça a série especial de matérias sobre consciência negra e demais eventos organizados pela UFJF celebrando esse tema clicando aqui.

Grupo de pesquisa propõe novo olhar sobre a África por meio da História