>> Matéria atualizada em 24/02 às 16h
As flores com duas séries de filamentos de coloração vinho contrastando com as de cor branca e o miolo em tons de verde e amarelo chamaram a atenção de pesquisadores da UFJF enquanto realizavam trabalho de campo no município de Rio Preto, em um local vizinho do recém-criado Parque Estadual da Serra Negra da Mantiqueira, inserido no bioma da Mata Atlântica. Até então, eles não sabiam que se tratava de um exemplar de uma espécie ainda não descrita na literatura científica.
Por isso, a professora do Departamento de Botânica do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), Ana Paula Gelli, e o pós-graduando em Biodiversidade e Conservação da Natureza, Leonardo Lima, buscaram auxílio da taxonomista e especialista do grupo Passifloraceae, Ana Carolina Mezzonato, professora do ICB. Em 2021, Ana Carolina já havia descrito três outras espécies de maracujá: Passiflora jorgeana, Passiflora bacabensis e Passiflora ita.
A descoberta de uma espécie
“Assim como os indígenas resistem buscando resgatar a história de seu povo, os impactos antrópicos observados no local onde a P. purii foi encontrada não foram suficientes para impedir a sobrevivência e a descoberta desta nova espécie.” (Ana Carolina Mezzonato)
A nova espécie foi descrita na Revista Acta Botanica Brasilica, sendo intitulada Passiflora purii. Até o presente momento, os pesquisadores estimam que haja menos de 50 exemplares adultos. De acordo com a publicação, os indivíduos dessa planta habitam um fragmento isolado de nanofloresta nebular, circundada por pastagens, que se estabelece ao longo de um tênue curso d’água. O local de ocorrência é de propriedade privada desprotegida por Unidades de Conservação.
Por conhecer a fundo várias espécies, o taxonomista especialista é capaz de detectar quais são as características para identificar novas plantas de grupos botânicos. A especialista do grupo Passifloraceae informa que é muito importante observar o formato e número das pequenas glândulas que estão no pecíolo foliar, bem como as flores que apresentam estruturas internas diferentes em formato, disposição e coloração.
“Para validar tamanha descoberta no meio científico é necessário seguir uma série de passos. Entre eles, destacar quais características a espécie apresenta que a faz ser considerada realmente nova e a divulgação desse trabalho, por meio de uma revista científica, permitindo a ampla divulgação”, explica Ana Carolina Mezzonato.
Homenagem ao povo Purí *
A nova espécie descrita recebeu o epíteto específico “purii” em homenagem à etnia Purí, que, antes da chegada dos portugueses, habitava (e alguns ainda habitam) a região da Serra da Mantiqueira, localizada nas bacias do rio Paraíba do Sul e do alto rio Doce. Ela foi encontrada em uma nanofloresta nebular, uma das fitofisionomias mais desconhecidas e raras da Mata Atlântica, que representam apenas cerca de 2,5% das florestas tropicais do planeta.
“O contato com os colonizadores foi catastrófico para os indivíduos dessa etnia, que foram mortos, escravizados e sequestrados. Esse processo inicial de colonização, bem como a atual constante exploração da biodiversidade, impacta severamente os ecossistemas brasileiros; a exemplo, o local em que foi encontrada essa nova espécie, que é um remanescente de vegetação cercada por pasto”, aponta.
Na opinião da pesquisadora, a atribuição com os indígenas Purí se refere à capacidade de resistência: “assim como os indígenas resistem buscando resgatar a história de seu povo, os impactos antrópicos observados no local onde a P. purii foi encontrada não foram suficientes para impedir a sobrevivência e a descoberta desta nova espécie.”
Para a Ana Paula Gelli, os povos originários do Brasil sempre realizaram um manejo adequado dos recursos naturais de forma a preservar o meio ambiente e sua biodiversidade. “Dados de um recente relatório publicado pela ONU em 2021 indicaram uma forte conexão entre Terras Indígenas e a conservação de florestas na América Latina e no Caribe. Por atuarem de forma efetiva contra o desmatamento, os povos indígenas se destacam como os maiores e melhores ‘guardiões’ de nossas florestas nativas.”
Para os representantes do Movimento de Ressurgência Purí (MRP), fundado em 2014, a conexão entre o saber científico e o conhecimento vinculado ao Povo Purí – guardiões da biodiversidade em suas regiões no solo brasileiro – representa o reconhecimento da importância dos povos originários na construção do Brasil e de Minas Gerais. Eles citam a descrição de várias espécies registradas no século XIX por viajantes e pesquisadores, como Spix e Martius, e o uso dessa sabedoria pelo botânico Heinrich Schott.
“Assim como a nova espécie de maracujá descoberta, o povo Purí é como as sementes que ficaram em dormência e reacendem; ou feito a taquara: verga, mas não quebra e volta ao lugar, ao seu lugar na história”, refletem. De acordo com o MRP, segundo sua cofundadora Ñáma Telikóng Pury (Carmelita Lopes), o povo Purí ainda tem desafios ligados à própria existência, à visibilidade, ao respeito, ao território e à manutenção da memória dos ancestrais. E o maior deles é “reinserir nossa presença na história brasileira, recontando-a sob nossa ótica, depois de séculos de tentativas de apagamento”.
*Grafia utilizada conforme indicação da fonte do MRP, que segue a deliberação da segunda Reunião Brasileira de Antropologia (RBA). Como os grupos são autônomos e diversos, podem se adotar diferentes formas de grafia da etnia.
A importância da taxonomia
Para a taxonomista, a catalogação em Passiflora, em termos gerais, foi iniciada a partir da expansão dos colonizadores espanhóis nos séculos XVI e XVII, nas Américas. “Nessa época as lindas e coloridas flores despertaram o interesse dos europeus, além do misticismo, referente à paixão de Cristo que sua morfologia suscitou entre as pessoas.”
Por ter sido encontrada fora dos limites das Unidades de Conservação da região, a população de Passiflora purii foi considerada como “criticamente em perigo”, segundo critérios e categorias de ameaça de extinção estabelecidos pela IUCN (International Union for Conservation of Nature). É neste sentido que as docentes do ICB consideram a importância da ciência da classificação e identificação dos seres vivos para as Ciências Biológicas. “Como preservar a biodiversidade sem antes conhecê-la?”, indaga Ana Paula Gelli.
Como o Brasil detém uma das maiores biodiversidades existentes no mundo, existem várias áreas ainda não exploradas e que por isso permanecem com diversas espécies desconhecidas. “Muitas regiões para serem acessadas necessitam de uma grande infraestrutura que requer um extenso financiamento, o que não é fácil de se obter. Principalmente pela taxonomia se tratar de uma ciência de base, que é muito pouco valorizada e incentivada”, lamenta Ana Carolina.
Para o mestrando Leonardo Lima, a expectativa é que a descoberta incentive outros pesquisadores a aprofundar os estudos sobre a fauna, a flora e a funga da Serra Negra da Mantiqueira. “Espero também que notícias como essas ajudem a sensibilizar a população e as autoridades locais sobre a importância da preservação de lugares tão especiais como a Serra Negra da Mantiqueira.”
Heterogeneidade do povo Puri
Como forma de destacar a heterogeneidade dos povos indígenas, acrescentamos a esta matéria informações que possam ajudar no entendimento e papel desses povos na atualidade, que apesar de sua relação harmoniosa com a terra e a natureza foram historicamente invisibilizados.
Representantes do povo Puri da Serra da Mantiqueira nos informaram que muitas das anciãs e dos anciões já conheciam a nova espécie até então desconhecida pela comunidade científica. “Grande parte das flores e plantas que ainda existem hoje no nosso país estão dentro de territórios indígenas. Se não fosse a presença indígena, essas florestas não existiriam”, afirma Aline Pachamama (Churiah Puri, em nome indígena). O próprio nome da Serra é de origem indígena do tronco Tupi. Para o povo Puri, ela é conhecida como Inhã Uchô, que significa Serra Mãe das Águas.
O grupo reflete que muitas informações que sustentam a Medicina e as indústrias farmacêuticas são oriundas de saberes indígenas, que foram ressignificados ao longo do tempo: “A nossa medicina é a medicina da floresta. E isso engloba desde a erva mais pequenina até as árvores, e toda a organização coletiva da Mãe Terra. Nós sonhamos que essa sociedade continue aprendendo com a gente, porque o nosso conhecimento foi apropriado por não indígenas e apresentado com outras nomenclaturas ou nomes científicos, sem a devida honra à origem desse conhecimento.”
Outras informações: Instituto Pachamama | Campanha de mobilização pela Construção da OCA/Museu Inhã Uchô
Pesquisa está alinhada aos ODS da ONU
As ações de pesquisa da UFJF estão alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). A iniciativa citada nesta matéria se alinha aos ODS 4 (Educação de qualidade) e ODS 15 (Vida terrestre).
Confira a lista completa no site da ONU.
Acesse o artigo na íntegra: Passiflora purii (Passifloraceae), a new species in honor of the originating peoples of Serra da Mantiqueira, Southeastern Brazil
Relembre: Pesquisadora descreve três novas espécies de maracujá